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Processo n.º 78/2015
Recurso extraordinário para fixação de jurisprudência
Recorrente: A
Recorrido: Ministério Público
Data da conferência: 13 de Janeiro de 2016
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Fixação de jurisprudência
 - Oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito
 - Questão de facto

SUMÁRIO
1. Se, face à matéria de facto provada num e noutro acórdão, o Tribunal considerar que os anúncios apreendidos nos respectivos autos contêm, ou não, conteúdo pornográfico ou obsceno, está a fazer a avaliação da situação de facto concreta, avaliação esta que não tem nada a ver com a interpretação de normas jurídicas.
2. A questão em causa, de considerar, ou não, os anúncios, em que se apresentam as imagens, palavras e/ou descrições, como objectos pornográficos ou obscenos, não é uma questão de direito, mas sim de facto, pelo que está fora do âmbito da uniformização de jurisprudência.

A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
A, melhor identificado nos autos, interpõe recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do Acórdão de 28 de Julho de 2015, proferido pelo Tribunal de Segunda Instância nos autos de recurso penal n.º 625/2015, alegando que esta decisão judicial se encontra em oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, com o Acórdão de 23 de Janeiro de 2013 emanado do Processo n.º 832/2013 do mesmo Tribunal de Segunda Instância.
Na tese do recorrente, existe oposição manifesta entre os dois acórdãos acima referidos no tocante à mesma questão de direito:
- No Processo n.º 625/2015, o Tribunal de Segunda Instância considera que os “anúncios” em questão representam, de facto, serviços de massagens indecentes que ofendem o pudor público e têm conteúdo pornográfico, estando enquadrados no conceito de “pornográfico” estabelecido no art.º 2.º n.º 1 da Lei n.º 10/78/M.
- No Processo n.º 832/2013, o mesmo tribunal entende que não é de considerar pornográfico o “anúncio” em que se publicita o serviço de massagens e em que num dos lados do mesmo se apresenta a imagem de uma jovem expondo parte dos seus seios, o qual não é subsumível às hipóteses indicadas no art.º 2.º da Lei n.º 10/78/M.
E pede que seja uniformizada a jurisprudência quanto aos (pelo menos) objectos pornográficos ou obscenos que ultrajem ou ofendem o pudor público ou a moral pública a que se referem o art.º 1.º e art.º 2.º n.º 2, al.s a) e b) da Lei n.º 10/78/M, de acordo com a orientação perfilhada no Acórdão do TSI prolatado no Processo n.º 832/2013.

Respondeu o Ministério Público, opinando que se deve rejeitar o recurso, em virtude da inadmissibilidade do mesmo, uma vez que:
1. Em relação aos requisitos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência previsto no art.º 419.º do CPP, o TUI já os resumiu várias vezes (cfr. Ac. TUI de 25.04.2012, proc. n.º 17/2012, autos de recurso penal)
2. Ademais, também sublinhou o TUI: “Só há oposição de acórdãos quando estes assentem em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito em que o núcleo da situação de facto seja idêntico.” (cfr. Ac. do TUI de 14.05.2008, proc. rec. n.º 10/2008; Ac. do TUI de 04.04.2006, proc. rec. n.º 31/2005; Ac. do TUI de 20.10.2004, proc. rec. n.º 29/2004; Ac. do TUI de 21.07.2004, proc. rec. n.º 16/2004, entre outros).
3. Em 23 de Setembro de 2015, o TUI asseverou, de forma mais directa, no processo n.º 59/2015 (autos de recurso extraordinário para fixação de jurisprudência em processo penal): “As questões de facto estão fora do âmbito do recurso para fixação de jurisprudência. ...”
4. Vejamos. Desde logo, no processo n.º 625/2015 do TSI (autos de recurso penal) em que foi prolatado o acórdão ora recorrido, a motivação do recurso formulada pelo recorrente A perante o Tribunal pode ser resumida no seguinte: por verificado o vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art.º 400.º, n.º 2, al. c) do CPP, não se deve condenar o recorrente pela prática do crime p. e p. pelo art.º 1.º, n.º 1 e art.º 2.º da Lei n.º 10/78/M (conjugados com o art.º 4.º do mesmo diploma legal).
5. Enquanto no âmbito do processo n.º 832/2013 do TSI (autos de recurso penal) em que se proferiu o acórdão fundamento, a recorrente B apresentou a motivação do recurso que pode ser resumida no seguinte: por verificada a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, estipulada no art.º 400.º, n.º 2, al. a) do CPP, não se deve condenar a recorrente pela prática do crime p. e p. pelos art.ºs 1.º e 2.º da Lei n.º 10/78/M; ou a pena aplicada é demasiado pesada.
6. Assim, nos dois processos de recurso penal relacionados com o presente recurso extraordinário, só se constata que, tanto num como noutro processo, os fundamentos do recurso suscitados pelo recorrente perante o Tribunal a quo apenas puseram em causa o julgamento da matéria de facto, considerando que, por violada a disposição do art.º 400.º, n.º 2 do CPP, não se devia condenar o recorrente pela prática do crime p. e p. pelos art.ºs 1.º e 2.º da Lei n.º 10/78/M.
7. Dito concretamente, em ambos os recursos penais, os fundamentos invocados pelo recorrente prendem-se com a questão de dever ou não o tribunal recorrido considerar os anúncios apreendidos como objectos “pornográficos”, “obscenos”, que “ultrajem ou ofendam o pudor público ou a moral pública”, a qual consiste em verificar se, naquele caso concreto, a apreciação das provas concretas violou ou não as regras da experiência e o senso comum, estando, pois, em causa a apreciação concreta da matéria de facto num caso concreto, mas não a apreciação da matéria de direito caracterizada pela generalidade e força obrigatória geral.
8. Por outras palavras, não pode o tribunal definir um critério uniforme de apreciação para os anúncios “pornográficos”, “obscenos”, que “ultrajem ou ofendam o pudor público ou a moral pública”, acresce que o legislador já deixou claro que tais critérios mudam à medida que avançam o tempo e a sociedade, daí ser absolutamente impossível fixá-los através da uniformização de jurisprudência.
9. Nestes termos, entendemos que o presente recurso extraordinário, interposto relativamente ao acórdão fundamento e ao acórdão recorrido, não reúne os requisitos do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência estatuídos no art.º 419.º do CPP.
10. Face ao exposto, a propósito do recurso interposto pelo recorrente A, pugnamos pela imediata rejeição do mesmo com fundamento na sua inadmissibilidade.
No seu parecer, a Exma. Procuradora-Adjunta manteve a posição já assumida na resposta à motivação do recurso.

2. Fundamentos
Cabe agora decidir se o recurso deve ser rejeitado, por ocorrer motivo de inadmissibilidade ou por inexistência de oposição de julgados, ou se deve prosseguir, nos termos do art.º 423.º do Código de Processo Penal.

2.1. Os requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, em processo penal
O art.º 419.º do Código de Processo Penal de Macau, na redacção introduzida pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20 de Dezembro, prevê os fundamentos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, dispondo o seguinte:
“1. Quando, no domínio da mesma legislação, o Tribunal de Última Instância proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o Ministério Público, o arguido, o assistente ou a parte civil podem recorrer, para uniformização de jurisprudência, do acórdão proferido em último lugar.
2. É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando o Tribunal de Segunda Instância proferir acórdão que esteja em oposição com outro do mesmo tribunal ou do Tribunal de Última Instância, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Tribunal de Última Instância.
3. Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.”

Daí decorre que são requisitos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência:
- Existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentam em soluções opostas;
- As decisões foram proferidas no domínio da mesma legislação;
- O acórdão fundamento é anterior ao acórdão recorrido e se transitou em julgado;
- Não é admissível recurso ordinário do acórdão recorrido;
- O recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (n.º 1 do art.º 420.º do Código de Processo Penal de Macau).

Analisando o caso ora em apreciação, constata-se que o único requisito cuja verificação foi posta em causa se refere à existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, o que implica que há de ver se, no nosso caso concreto, o Acórdão fundamento e o Acórdão recorrido abordam a mesma questão de direito e, no caso positivo, se encontram soluções opostas.

2.2. Existência de dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas
Relativamente ao pressuposto em questão, é de salientar, desde logo, que tanto a doutrina como a jurisprudência apontam para a identidade da questão decidida em dois acórdãos.
Como escrevem Manuel Leal-Henriques e Simas Santos, deve existir uma identidade “entre as questões debatidas em ambos os acórdãos”, que “tanto se pode traduzir em mesma questão ou em questões diversas se, neste último caso, se puder afirmar que para a sua decisão os dois acórdãos assacados de contraditórios se pronunciaram de maneira oposta àcerca de qualquer ponto jurídico neles discutido (isto é, verifica-se oposição ainda quando os casos concretos apreciados apresentam particularidades diferentes, se tal não impede que a questão de direito em apreço nos dois acórdãos seja a mesma e haja sido decidida de modo oposto)”.1
Para além disso, a questão sobre a qual se verifica a oposição deve ser fundamental, que versa sobre a matéria de direito, e não de facto, não obstante a identidade da questão decidida em dois acórdãos pressupõe que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões sejam também idênticos.
A oposição de acórdãos deve ser expressa e não apenas tácita, “não bastando que um deles aceite tacitamente a doutrina contrária do outro. Os mesmos preceitos da lei devem ter sido interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos em ambos os acórdãos”.2
E este Tribunal de Última Instância tem decidido que para efeitos de uniformização de jurisprudência a oposição entre as decisões deve ser expressa e não meramente implícita. Não basta que numa das decisões possa ver-se aceitação tácita de doutrina contrária a outra decisão.3
Ao mesmo tempo, “a questão sobre a qual há oposição tem de ser uma questão de direito. Não pode ser uma questão de facto, até porque o TUI não aprecia, normalmente, matéria de facto”4, sendo certo que “os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões, ou seja, os factos nucleares e necessários à resolução do problema jurídico, devem ser idênticos”.5

2.3. O caso dos presentes autos
Vistos os requisitos substanciais do recurso, resta decidir se, no nosso
caso concreto, se verifica a existência de dois acórdãos que, relativamente, à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas.
Ora, no Acórdão recorrido, 28 de Julho de 2015, o Tribunal de Segunda Instância considera que os anúncios em causa contêm conteúdo que ultrajem ou ofendam o pudor público ou a moral pública, pelo que devem ser qualificados como “pornográficos” ou “obscenos” e se integram no conceito legal previsto no n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 10/78/M.
No Acórdão proferido em 23 de Janeiro de 2013, Processo n.º 832/2013, o Tribunal de Segunda Instância entende que os anúncios aí em apreciação não parecem ser “pornográficos” ou “obscenos” e que ultrajem ou ofendam o pudor público ou moral pública, pelo que decide absolver a arguida do crime de “venda, exposição e exibição públicas de material pornográfico e obsceno” pelo qual foi condenada.
Na óptica do recorrente, está em causa a mesma questão de direito.
Não se trata, porém, da questão de direito.
Por um lado, nos dois acórdãos não se vê contradição ou divergência relativamente à interpretação da norma que prevê o conceito de pornografia contido no art.º 2.º da Lei n.º 10/78/M.
O que se verifica é que, face à matéria de facto provada num e noutro acórdão, o Tribunal considera que os anúncios apreendidos nos respectivos autos contêm ou não conteúdo pornográfico ou obsceno, questão esta que tem a ver com a avaliação da situação de facto, e não com a interpretação de qualquer norma jurídica.
Estamos perante a diferente avaliação da situação de facto, ou seja, tendo em consideração as imagens, palavras e/ou descrições que se apresentam nos anúncios, o Tribunal considera-os, ou não, pornográficos ou obscenos.
É de salientar que nem o próprio recorrente chegou a alegar que os anúncios referidos nos dois acórdãos continham as mesmas imagens, palavras e/ou descrições, daí que não se pode afirmar que os factos fundamentais sobre os quais assentam as decisões são idênticos.
E os elementos constantes nos anúncios afiguram-se mesmo essenciais para analisar e tirar conclusão sobre a natureza pornográfica ou obscena dos anúncios.
Assim, a questão em causa, de considerar, ou não, os anúncios, em que se apresentam as imagens, palavras e/ou descrições, como objectos pornográficos ou obscenos, não é uma questão de direito, mas sim de facto, pelo que está fora do âmbito da uniformização de jurisprudência.
É de concluir que não se vislumbra nenhuma oposição expressa entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento sobre a mesma questão de direito.
Acrescentando, não é nada prático exigir ao Tribunal de Última Instância definir critérios uniformes para efeitos de apreciar, em termos gerais, quais anúncios são pornográficos ou obscenos, que ultrajem ou ofendam o pudor público ou a moral pública, face à variedade e diversidade de imagens, palavras e/ou descrições expostas nos anúncios envolventes em casos diferentes, sendo de lembrar que a fixação de jurisprudência não é para resolver tão só uma situação concreta, mas sim para valer no futuro e para todos os casos em que se discute a mesma questão de direito, constituindo jurisprudência obrigatória.
Pelo exposto, não se verifica um dos requisitos essenciais para que se mande prosseguir o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência (art.º 423.º n.º 1 do CPPM), pelo que deve ser rejeitado o recurso.

4. Decisão
Face ao expendido, acordam em rejeitar o recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC.

Macau, 13 de Janeiro de 2016

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima

1 Código de Processo Penal de Macau, 1997, pág. 857.
2 Paulo Pinto de Albuquerque, citando a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, no Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, pág. 1171.
3 Cfr. Ac. do TUI, de 14 de Maio de 2008 e de 11 de Março de 2009, nos Processos nºs 10/2008 e 6/2009.
4 Cfr. Ac. do TUI, de 23 de Setembro de 2015, no Processo nº 59/2015.
5 Cfr. Ac. do TUI, de 14 de Maio de 2008, no Processo n.º 10/2008.
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