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Proc. nº 827/2014
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Novembro de 2015
Descritores:
-Trabalhadores não residentes
-Autorização de permanência
-Reabilitação
-Ordem e segurança públicas

SUMÁRIO:

I. Enquanto o nº1, do art. 4º da Lei nº 4/2003, de 17/03 é vinculativo para a Administração, ou seja, impõe a esta uma actuação de recusa de entrada dos não-residentes que se encontrem numa das situações ali tipificadas, o nº2, por seu turno, estabelece um poder discricionário de recusa em face da ocorrência de alguma das situações ali previstas.

II. Por ser discricionário esse poder referente às situações do nº2, como tem sido dito abundantemente, só em caso de erro grosseiro e manifesto ou naqueles em que tenham sido desrespeitados os aspectos vinculados que sempre seriam de observar - como é, por exemplo, o caso da fundamentação, do acerto nos pressupostos de facto, nas formalidades que importa observar face à lei (limites externos da discricionariedade), ou ainda nos de violação dos princípios gerais de direito administrativo plasmados no art. 3º e sgs. do CPA (limites internos da discricionariedade) -, pode uma sindicância judicial ser levada a cabo com êxito.

III. Os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo.

IV. A “ordem” e “segurança públicas” que o acto disse visar garantir não poderem ser sindicados na zona de incerteza e de prognose sobre comportamento futuro das pessoas visadas, salvo em caso de manifesto e ostensivo erro grosseiro e tosco e, como também já se disse, intolerável.






Proc. nº 827/2014

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
A, titular do BIRPHK n.ºXXX, ora residente no XXX, Macau (adiante designado por recorrente),----
Recorre contenciosamente ----
do despacho n.º MIG.631/2014/TNR/R do Ex.mo Secretário para a Segurança, de 28/10/2014 que manteve a decisão do Comandante da PSP, a qual lhe havia indeferido a concessão de autorização de permanência na qualidade de trabalhador não residente.
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Na petição inicial formulou a seguinte conclusão:
«Face ao exposto, o recorrente entende que o despacho recorrido padece do erro na aplicação da lei, quanto ao caso concreto do recorrente, não se deve aplicar o disposto no art.º 4.º n.º 2 al. 2) da Lei n.º 4/2003, conjugado com o art.º 15.º n.º1 do Regulamento Administrativo n.º 8/2010, os interesses públicos prosseguidos pela Administração são evidentemente menores do que os particulares, a respectiva decisão administrativa não é adequada nem proporcional. Logo, o despacho recorrido violou as disposições da lei.»
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Nas alegações facultativas, formulou as conclusões que seguem transcritas:
«1. A razão que motiva a negação no despacho recorrido é a consideração de que o recorrente cumpriu pena no centro de detenção, que na prática equivale à pena privativa de liberdade; o recorrente não se conforma com o despacho recorrido;
2. Segundo o despacho do Comandante do CPSP que foi confirmado pelo despacho recorrido, o fundamento da decisão é o artigo 4.º, n.º2, alínea 2) da Lei n.º 4/2003, em conjugação com o artigo 15.º, n.º1 do Regulamento Administrativo n.º 8/2010.
3. Quanto aos fundamentos legais acima aplicados, o recorrente não se consente.
Nos termos do artigo 15.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 8/2010, que prescreve sobre a recusa e revogação da autorização de permanência na qualidade de trabalhador não residente, o pressuposto é a aplicação do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003;
4. Se se pertencerem às situações mencionadas no n.º 2 da Lei n.º 4/2003, as autoridades administrativas podem primeiro cogitar sobre os interesses individuais, a segurança e os interesses públicos, e depois decidir se é de proibir a entrada dos indivíduos respeitantes no Território;
5. As situações descritas no n.º 2 deste artigo, a lei não entende directamente que os indivíduos respeitantes vão certamente ou provavelmente exercer influência ou impor perigo à segurança e aos interesses públicos do Território; em vez disso, as autoridades administrativas farão uma apreciação entre os interesses individuais e públicos, para depois decidir se é de satisfazer os interesses públicos em detrimento daqueles individuais;
6. O recorrente entende que, por um lado, admite-se que o recorrente tem o direito de entrar em e sair de Macau (isto é, admitir-se indirectamente que o recorrente não coloca influência gravosa ou perigo intenso aos interesse e à segurança públicos), e por outro lado, recusar ao recorrente o direito de permanência na qualidade de trabalhador (isto é, julgar directamente que o recorrente exerce certa influência aos interesses e à segurança públicos); assim, os critérios ou os julgamentos das autoridades administrativas são inconsistentes, até se pode dizer que são irrazoáveis;
7. Além disso, o recorrente entende que a disposição legal mencionada no artigo 15.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 8/2010 deve ser a situação referida no n.º1 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003, em vez de a no n.º 2 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003;
8. Ora nos autos acima referidos não surgiu qualquer situação mencionada no n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 4/2003, portanto não é satisfeito o pressuposto previsto no artigo 15.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 8/2010, tendo o despacho recorrido, assim, o erro de aplicação de direito;
9. Nos pontos n.º 12 e n.º 13 das contestações do Secretário para a Segurança, é indicado que o recorrente foi incriminado pela adesão a uma organização criminosa; normalmente, ainda fazer parte da organização criminoso, ou pelo menos mantém certa ligação com a mesma. A falta de incriminação por algum tempo não significa a interrupção da pertença ou da ligação com uma organização criminosa;
10. Nota-se bem que a supra dedução é altamente injusta para o recorrente. No despacho recorrido, a data do trânsito em decidido dos factos criminosos do recorrente é 23 de Março de 1989, já se passaram mais do que 25 anos desde então;
11. O recorrente tinha aproximadamente 10 e 17 anos quando os factos criminosos acima descritos aconteceram. Ele foi jovem e inocente e cometeu alguns crimes, mas já se passaram 25 anos desde então. Entretanto, o recorrente não voltou a cometer mais actos ilegais; ele tem encarado a vida com o espírito positivo, e de uma forma renovada, ele reintegrou-se na sociedade, vive positivamente e trabalha afincadamente: ele obteve vários certificados de cursos de formação ao longo destes anos. De mais a mais, não há qualquer indício mostrando que ele tenha qualquer ligação com qualquer organização criminosa ou que ele constitua algum perigo à sociedade;
12. Se é de privar o recorrente para sempre de alguns direitos de liberdade devido aos crimes leves cometidos por ele há 25 anos, não serão materializados efectivamente os fins essenciais das penas (fazer com que as pessoas tirem as lições, se renovem, se reintegrem na sociedade), ou seja, uma vez cometer um erro, a vida inteira será culpada; e pode-se privá-lo de certos direitos devido a isso. O que se pode dizer com a certeza é que isto vai contra as normas morais e os fins dos legisladores;
13. Acresce que a Companhia de Obras B. Limitada, com o domicílio da pessoa colectiva em Macau, está disposto a recrutar o recorrente, para tomar o posto de orientador das obras de construção. Mas devido à decisão do despacho recorrido, não foi emitida ao recorrente a autorização de permanência na qualidade de trabalhador, não podendo ele, assim, trabalhar em Macau;
14. Aos 3 de Dezembro de 2012, o recorrente casou-se com a C em Macau, residente permanente de Macau, mas devido à recusa da autorização ao recorrente da fixação de residência na RAEM para se poder reunir com o cônjuge, é lhe obrigatório viver separado do seu cônjuge num lugar diferente na maioria do tempo, não podendo desta forma viver com a mulher e construir uma família completa como os casais normais;
15. O Secretário para a Segurança indica, no ponto n.º 17 das suas contestações, que a reunião familiar não será necessariamente realizada pela fixação de residência dum não-residente de Macau, mas também pode ser que um residente de Macau se desloca para o exterior de Macau;
16. O recorrente não considera que isso seja razoável. Numa família completa, o casal tem de se apoiar reciprocamente e vive no mesmo sítio. O amargo causado pela separação frequente não é saudável para uma família. Já para não dizer que se no futuro o recorrente tiver filhos com o cônjuge, será que os filhos terão obrigatória e frequentemente carência de um dos pais quando estão na verdadeira necessidade do cuidado de ambos dos pais?
17. Relativamente à situação do recorrente, ele entende que os interesses públicos perseguidos pelas autoridades administrativas são menores do que aqueles individuais do recorrente, e que foram violados os princípios da adequação e da proporcionalidade, previstos no artigo 5.º, n.º2 do Código do Procedimento Administrativo;
18. Nos termos acima mencionados, o recorrente entende que no despacho recorrido não é satisfeito o pressuposto referido no artigo 15.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 8/2010, existindo assim erro de aplicação da lei, portanto é de anulá-lo; além disso, os interesses públicos perseguidos pelas autoridades administrativas são menores do que aqueles individuais do recorrente, e que foram violados os princípios da adequação e da proporcionalidade, previstos no artigo 5.º, n.º 2 do Código do Procedimento Administrativo, é de revogar o despacho recorrido.
PEDIDOS
Nos termos dos factos e disposições legais acima referidos, venho pelo presente pedir ao Mm.º juiz:
(1) Admitir as alegações do recorrente; e
(2) Declarar que o despacho recorrido é “viciado por ilegalidade de erro de aplicação da lei”, e portanto deve-se declarar anular o despacho recorrido; ou
(3) Declarar que o despacho recorrido é viciado materialmente por violação dos princípios da adequação e da proporcionalidade, e portanto deve-se declarar anular o despacho recorrido.».
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A entidade recorrida respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência, em termos que damos por integralmente reproduzidos.
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O digno Magistrado do MP emitiu o seguinte parecer.
«Vem A impugnar o despacho do Secretário para a Segurança de 6/1/14 que, em sede hierárquica, manteve decisão do comandante do CPSP que lhe indeferiu a concessão de autorização de permanência na qualidade de trabalhador, assacando-lhe vícios de erro na aplicação do direito e afronta dos princípios da adequação e proporcionalidade.
Pretende o recorrente que a remissão efectuada pelo nº 1 do art.º 150 do R.A. 8/2010 deverá respeitar, tão só, às situações previstas no n.º 1 do art.º 4º da Lei 4/2003, que não às contempladas no seu n.º 2, razão por que, não se enquadrando o seu caso em qualquer das situações previstas naquele nº 1, careceria o decidido de fundamento legal.
Afigura-se-nos não ser, manifestamente, assim.
Nos termos do n.º 1 do art.º 15º do R.A. 8/2010, “A autorização de permanência na qualidade de trabalhador é recusada ou revogada quando se verifiquem os pressupostos previstos na lei, respectivamente para a recusa ou interdição de entrada a quaisquer não residentes, ou para a revogação da respectiva autorização de permanência”.
Ora, os pressupostos legais para a recusa de entrada encontram-se previstos quer no n.º 1, quer no n.º 2 do citado art.º 4º da Lei 4/2003, situando-se a diferença respectiva essencialmente no carácter vinculativo dos primeiros e discricionário dos últimos.
Donde, resultar evidente que o reporte, a remissão efectuada pelo n.º 1 do art.º 15º do R.A. 8/2010 tanto opera em relação a uns como a outros, já que, repete-se, todos eles se reportam a pressupostos de recusa de entrada de não residentes na RAEM, pelo que não faz qualquer sentido a pretendida remissão apenas para parte dela, não assistindo, pois, razão ao visado, neste específico.
Relativamente à assacada falta de adequação e proporcionalidade, pese embora o último normativo citado expresse que a autorização de permanência na qualidade de trabalhador “é recusada”, inculcando ideia de vinculação legal, cremos que, remetendo o mesmo, no caso, para pressuposto de apreciação discricionária, “Pode ser recusada a entrada...”, a decisão em causa envolverá, nos termos que se nos afiguram lógicos, também alguma margem de discricionariedade, alguma margem de apreciação acerca da conveniência e oportunidade da medida a tomar, sendo que, por norma, nesta área, a intervenção do julgador ficará reservada apenas para casos de erro grosseiro ou injustiça gritante.
Posto isto, é um facto que as decisões da Administração que, como é o caso, colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, só podem afectar essas posições em termos necessários, adequados e equilibrados, o mesmo é dizer proporcionais aos objectivos a alcançar, proibindo-se, assim, o excesso, devendo existir uma relação de adequação entre o fim a alcançar e o meio utilizado para o efeito, impondo-se, pois, que o meio utilizado seja idóneo à prossecução do objectivo da decisão, que entre todos os meios alternativos deva ser escolhido o que implique lesão menos grave para os interesses sacrificados, devendo existir justa medida entre os interesses presentes na ponderação, não se podendo impor aos particulares um sacrifício de direitos infundado ou desnecessário, sob pena de a decisão administrativa se revelar injusta.
No caso, para além da séria afectação dos seus interesses pessoais, familiares e profissionais, esgrime o recorrente com o facto de as condenações que sofreu em Hong Kong terem ocorrido há muito tempo, quando era ainda menor, devendo ter-se como reabilitado, pretendendo ainda que o seu internamento em “detention centre”, tem meramente natureza de reeducação através do trabalho, não podendo ser considerada “pena de prisão efectiva”, a que a norma fundamentadora da decisão se reporta.
É óbvio que a detenção em “detention centre” de um menor não corresponderá a cumprimento de pena de prisão efectiva.
Contudo, não poderá, cremos, deixar de qualificar-se, designadamente para os efeitos que agora nos ocupam, como sanção, como pena privativa de liberdade. E, é a tal condição que a norma se reporta, pelo que no plano objectivo não poderá o recorrente colher sucesso por esta via.
Seríamos, nesta altura, tentados a referir que, mesmo a existir reabilitação penal, tal não inibiria a entidade administrativa de usar, como usou, a existência das condenações do recorrente, já que de diferentes valores e interesses a prosseguir se trata, do mesmo passo que revelando a entidade recorrida, para além da condenação em causa, como razão do indeferimento a potenciação de “assinalável perigo para a segurança e ordem públicas”, com a presença do recorrente na Região, o interesse público na salvaguarda da segurança e paz social justificaria a medida tomada, não se vendo, perante tal que outra ou outras medidas capazes de travar tal perigo pudessem ser tomadas com menor afrontamento dos interesses em jogo.
Convirá, porém, não esquecer que a condenação penal que determinou a medida controvertida ocorreu há mais de 25 anos, quando o recorrente era ainda menor - 17 anos - não se lhe conhecendo, aparentemente, qualquer outro desvio, pelo menos a nível criminal.
Ora, c’os diabos, sendo esse o único motivo objectivo para a decisão em questão, perante um homem agora com 44 anos, quer-se-nos afigurar que, face à séria afectação dos consideráveis interesses pessoais, familiares e profissionais enunciados e, de alguma forma, demonstrados, a medida em questão se configura manifestamente exagerada, não se revelando razoável o juízo de prognose de perigosidade do visado pela sua permanência na Região, seja por aquela condenação, seja pela anterior em que aquele teria apenas 10 anos de idade, razão por que por atropelo da adequação e proporcionalidade, somos a entender merecer provimento o presente recurso».
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
Face aos elementos dos autos, damos por provada a seguinte factualidade relevante para a decisão:
1 - O recorrente solicitou em 12/12/2012 a concessão de autorização de permanência, o que lhe foi negado por despacho do Comandante da PSP de 28/07/2014.
2 - Em 15 de Agosto de 2014, o recorrente recebeu a notificação do CPSP que foi feita pelo comandante do CPSP no uso das competências ora subdelegadas pelo Secretário para a Segurança, com o seguinte teor parcial:
«Considerando que o interessado tinha registo criminal em Hong Kong (isto é, em 23 de Março de 1989, tinha sido condenado pela prática de crimes de assalto e de pertença à sociedade secreta (Triad)), pelo que, foi indeferida a concessão de autorização de permanência na qualidade de trabalhador ao interessado nos termos do art.º 4.º n.º 2 al. 2) da Lei n.º 4/2003 e do art.º 15.º, n.º 1 do Regulamento Administrativo n.º 8/2010.»
3 - O recorrente interpôs recurso hierárquico necessário em 12 de Setembro de 2014 ao Secretário para a Segurança, pedindo a revogação da decisão administrativa supracitada.
4 - Em 14 de Novembro de 2014, o recorrente recebeu a notificação do CPSP, pela qual o Secretário para a Segurança negou provimento ao recurso hierárquico necessário do recorrente.
5 - Foi prestada a seguinte:
INFORMAÇÃO
ASSUNTO: Recurso Hierárquico. Indeferimento de pedido de emissão de TITNR
RECORRENTE: A
1. O recorrente, visitante da RAE de Hong Kong, de nome A, titular do HKIC nº XXX, vem impugnar o despacho através do qual lhe foi indeferido o pedido de autorização de permanência na qualidade de trabalhador, invocando na sua petição de recurso, o seguinte:
2. Que em Hong Kong, existem vários tipos de execução de penas, para idades compreendidas entre os 14 e 24 anos, concedendo sempre liberdade condicional; que, no ordenamento jurídico de Macau, os cadastros são limpos ao fim de 5 anos; que, assim, desde 1989 até à presente data já decorreu tempo mais do que suficiente para se extinguirem os efeitos; que, na altura dos factos era um jovem de 18 anos e agora é um homem de 42, não se podendo comparar as personalidades, uma vez que já decorreram 25 anos;
3. Que é necessário ser reintegrado na sociedade; que está casado com uma residente da RAEM; que, uma empresa de Macau, contratou-o para encarregado de obras; que, por estar casado com uma residente até podia ter BIR, mas também lhe negam o TITNR; que por não poder estar mais próximo da família e ajudá-la, tal facto vai seguramente afectar a sua relação matrimonial.
4. Pedindo por estes fundamentos e por razões excepcionais, a revogação do despacho e, consequentemente, o deferimento do pedido.
5. Compulsado o processo de recorrente, verifica-se o seguinte:
6. Que, por despacho de 4 de Setembro de 2013, exarado pelo Exmo. Secretário para a Segurança, lhe foi indeferido o pedido de fixação de residência, nos termos da alínea 1), do nº 2, do artº 9º, da Lei nº 4/2003, com fundamento nos crimes praticados conforme demonstra a informação de uma corporação policial regional, constante nos autos e que regista de entre outros delitos, o de a pertença a uma associação criminosa.
7. Fundamentos estes, de que igualmente se socorreu o órgão recorrido para indeferir o pedido de emissão de TITNR, uma vez que, apesar do tempo decorrido, considera-se que os receios de prática de actos idênticos na RAEM, se mantêm, mormente se lhe for autorizada uma permanência continuada e, por outro lado,
8. Porque estão reunidos os pressupostos para aplicação de medidas de recusa ou interdição de entrada, pelo que nos termos do artº 15º do RA nº 8/2010, o pedido foi negado.
9. Assim, pelo exposto, considerando-se que o despacho que indeferiu a emissão de TITNR, ao recorrente, não se encontra ferido de qualquer vício que possa levar à sua anulabilidade, não deve ser concedido provimento ao presente recurso.».
6 - O despacho recorrido, datado de 28/10/2014, apresenta o seguinte teor:
«Não são apresentadas, pelo recorrente, especiais razões de molde a fazer ponderar a revogação do acto administrativo impugnado, que é legal e adequado em face, designadamente, da natureza e perigosidade dos crimes constantes do seu curriculum;
Na verdade, colhe-se do registo criminal de Hong Kong, do recorrente. a fls. do processo instrutor, que o mesmo foi condenado a internamento em “detention centre”, o que na prática equivale a “pena privativa de liberdade, não obstante as assinaláveis diferenças de regime entre o Direito Penal de Macau e a “Criminal Procedure Ordinance” da RAEHK; aliás por crimes (assalto e pertença a sociedade secreta) numa idade em que no ordenamento jurídico de Macau é possível a condenação em pena de prisão, e que fazem com que na pessoa do recorrente se potencie um assinalável perigo para a segurança e ordem públicas.
Pelo que ao abrigo do art.º 161.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, confirmo a decisão impugnada, negando provimento ao presente recurso».
7 - Já por despacho do Secretário para a Segurança de 4/09/2013 fora indeferido o pedido de autorização de residência para reunião familiar com o cônjuge titular de BIRM (fls. 66 do apenso “traduções”).
8 - Consta dos autos que o recorrente, nascido em 1971, cometeu em Hong Kong os crimes de furto em 1982 e de assalto e de pertença a sociedade secreta (tríade) em 1989, tendo por estes dois últimos sido internado em “detention centre”.
9 - Casou com C, natural de Macau e residente na RAEM, em 3/12/2012 (doc. fls. 29 dos autos).
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IV – O Direito
1 – Na sua fundamentação, o acto administrativo sindicado teve em conta o facto de o recorrente ter sido internado em Hong Kong em “detention centre” e de ter cometido o crime de assalto (roubo) e de pertença a uma sociedade secreta, por factos praticados em 1982 e 1989.
O recorrente acha que não estão verificados os pressupostos substantivos previstos no art. 4º, nº2, al. 2), da Lei nº 4/2003 e do 15º, nº1, do Regulamento Administrativo nº 8/2010. Razão pela qual, com base em erro na aplicação do direito, o acto em apreço seria ilegal, além de considerar o acto desadequado e desproporcional.
Além disso, e recordando que os factos ilícitos ocorreram quando tinha 10 e 17 anos de idade, entende que a decisão relativa ao crime referido no despacho já transito há mais de 25 anos, o que significa que a pena se deve dar por extinta por reabilitação, nos termos do art. 23º, nº1, al. a) e 24º, nº1, al. b), do DL nº 27/96/M.
Apela ainda para a circunstância de ter refeito a sua vida totalmente, de dispor de vários cursos de formação, estar casado com uma cidadã natural de Macau e residente na RAEM.
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1-1 – Convém, antes de mais nada, explicar que a apreciação dos fundamentos do recurso não deixará de tomar em atenção também as conclusões das alegações facultativas do recorrente. É que, se a “conclusão” da petição inicial se resumiu a um simples parágrafo, a verdade é que nele se concentra aquilo que nas conclusões das alegações se encontra melhor explicitado. Quer dizer, não consideraremos as conclusões das alegações como instrumento que traz ao processo novos fundamentos (tal não seria possível, nos presentes autos), mas como uma peça que esclarece aquilo que muito sinteticamente já havia sido expressado na “conclusão” inicial. Move-nos o princípio pro actione nesta matéria.
Apreciando, então.
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2 – Tem razão o recorrente quando, interpretando o art. 4º, da Lei nº 4/2003, de 17/03 (Princípios gerais do regime de entrada, permanência e autorização de residência), conclui que existe uma diferença entre a previsão do nº 1 e a do nº2.
Efectivamente, o nº1 é vinculativo para a Administração, ou seja, impõe a esta uma actuação de recusa de entrada dos não-residentes desde que se encontrem numa das situações ali tipificadas.
O nº2, por seu turno, estabelece um poder discricionário de recusa em face da ocorrência de alguma das situações ali previstas. E elas são:
1- A tentativa de iludir as disposições sobre permanência e residência, mediante entradas e saídas da RAEM, próximas entre si e não adequadamente justificadas;
2- A condenação em penas privativas de liberdade, na RAEM ou no exterior;
3- A existência de fortes indícios de terem praticado ou de se preparem para praticar quaisquer crimes.
4- A ausência de garantia de regresso á proveniência e existência de fundadas dúvidas sobre a autenticidade do documento de viagem ou inexistência de meios de subsistência para o período de permanência ou título de transporte de regresso.
Ora, por ser discricionário esse poder, e tal como tem sido dito abundantemente, só em caso de erro grosseiro e manifesto ou naquelas situações em que tenham sido desrespeitados os aspectos vinculados que sempre seriam de observar - como é, por exemplo, o caso da fundamentação, do acerto nos pressupostos de facto, nas formalidades que importa observar face à lei (limites externos da discricionariedade), ou ainda nos de violação dos princípios gerais de direito administrativo plasmados no art. 3º e sgs. do CPA (limites internos da discricionariedade) -, pode uma sindicância judicial ser levada a cabo com êxito (Ac. do TUI, de 14/12/2011, Proc. nº 54/2011; do TSI, de 18/04/2013, Proc. nº 647/2012; 23/07/2017, Proc. nº 559/2014, entre tantos).
Ora, não se mostra desacertado nos seus pressupostos o despacho sindicado que assentou a sua dispositividade na circunstância de o recorrente ter cometido ilícitos criminais em Hong Kong, como ele mesmo, aliás, reconhece.
Assim, se o art. 15º, nº1 do Regulamento Administrativo nº 8/2010 (regulamentação da Lei da contratação de trabalhadores não residentes) remete a decisão de recusa, ou de revogação, da autorização de permanência na qualidade de trabalhador para os pressupostos para a recusa ou interdição de entrada a quaisquer não residentes (ou para a revogação da respectiva autorização de permanência), então é patente que o art. 4º citado se mostra ajustado à situação.
É certo que o internamento em “detention centre”, mesmo não deixando de ser uma privação da liberdade do indivíduo, não é uma verdadeira pena, mas sim uma medida de prevenção tomada para corrigir os desvios sociais de um menor em desenvolvimento da sua personalidade.
Mas, não há dúvida de que os ilícitos foram de gravidade elevada, o que não deixa de se subsumir à previsão da al. 3) do nº2, do art. 4º.
E, por assim ser, não parece que o tribunal tenha poder para se imiscuir nos poderes discricionários administrativos utilizados neste caso, se nos lembrarmos do princípio da separação de poderes que caracteriza o modelo jurídico-constitucional da RAEM, uma vez que se não detecta nenhum erro grosseiro na aplicação da lei e no exercício do poder administrativo no caso concreto.
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3 – É certo que o recorrente invoca o regime da reabilitação que decorre dos arts. 23º, nº1, al. a) e 24º, nº1, al. b), do DL nº 27/96/M.
Todavia, os valores e interesses que o regime da autorização de residência na qualidade de trabalhador não residente defende são distintos dos valores que justificam a eliminação do registo criminal dos ilícitos cometidos pelas pessoas criminalmente condenadas.
Como se esclareceu num aresto do TUI, «Não é possível aplicar pura e simplesmente as disposições de reabilitação ao regime de entrada, permanência e autorização de residência, uma vez que são totalmente distintos os interesses que estão em jogo: no regime de reabilitação o que se visa é a ressocialização dos delinquentes condenados e no segundo relevam-se mais os interesses de ordem pública e segurança social da comunidade» (Ac. TUI, de 14/12/2012, Proc. nº 76/2012)1.
Ou como se assinalou num acórdão deste mesmo TSI «Os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo». (Ac. TSI, de 5/12/2013, Proc. nº 340/2013).2
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4 – Resta o argumento referente aos efeitos do tempo decorrido desde a prática daqueles ilícitos cometidos em Hong Kong.
Verdade que terão sido cometidos ainda o recorrente era menor. Mas, por outro lado, não se pode perder de vista que o recorrente também praticou o crime de “assalto” (roubo), sem dúvida nenhuma grave.
A sua personalidade pode ter entretanto evoluído em conformidade com as regras societárias? Pode o recorrente ter interiorizado o dever de adaptar a sua conduta ao modelo de sociedade dominado pelas regras do respeito pela pessoa do outro e pelas coisas deste? O casamento pode ter contribuído para isso? A necessidade de “ganhar juízo” e de se tornar “homem de bem” contribuiu para essa mudança? Não cometeu nestes 25 anos qualquer outro ilícito? O acto administrativo não irá contribuir para o fim de um casamento eventualmente feliz com uma cidadã natural de Macau e aqui residente permanente?
Tudo isso é possível, não o podemos negar.
Aquilo que o recorrente invoca neste domínio, e que por outras palavras parece desempenhar o papel de uma pesada “cruz” que diz ter que carregar para todo o sempre enquanto vivo, um amargo, penoso e injustificado castigo, e ao qual o digno Magistrado do MP se mostrou sensível, a uma certa luz talvez possa caracterizar uma ideia de imerecimento, uma espécie de condenação perpétua por factos praticados durante a juventude.
Todavia, não podemos ultrapassar a barreira que se coloca ao tribunal quando, como se disse já, aqui faltam mesmo assim os indispensáveis elementos reveladores de um erro grosseiro, intolerável, manifesto na aplicação dos poderes discricionários, o que seria necessário para se poder considerar desadequado e desproporcional (art. 5º, do CPA) o acto em crise (citado Ac. do TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014).
Entre o mais, o recorrente não conseguiu afastar a prova de ainda pertencer a uma sociedade secreta, facto que também não deixou de ser relevado na prática do acto administrativo aqui sindicado.
E, assim sendo, a perigosidade para a ordem e segurança públicas que o art. 4º, nº2 acima citado tem por pressuposto foi expressamente considerada no acto administrativo em apreço, sem que o tribunal possa efectuar um juízo censório à actuação administrativa, se nesta se descortinar em concreto a prossecução do interesse público e se for de considerar adequado o comportamento da Administração tendo em vista a realização daquele interesse (Ac. TSI, de 23/07/2015, Proc. nº 560/2014).
Igualmente, a “ordem” e “segurança públicas” que o acto disse visar garantir não poderem ser sindicados na zona de incerteza e de prognose sobre comportamento futuro das pessoas visadas, salvo em caso de manifesto e ostensivo erro grosseiro e tosco e, como também já se disse, intolerável (Ac. do TSI, de 18/10/2012, Proc. nº 127/2012).
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Por tudo isto o recurso contencioso não pode proceder.
***
V – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça em 4 UC.
TSI, 19 de Novembro de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong

Presente
Vitor Coelho

1 Ver ainda, Ac. TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014
2 No mesmo sentido, os Acs. do TSI, de 3/05/2012, Proc. nº 394/2011; 25/05/2006, Proc. nº 305/2005; 26/07/2012, Proc. nº 766/2011
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827/2014 21