Processo nº 546/2015
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
Sociedade de Investimento Imobiliário A, S.A. veio requerer contra B e o seu marido C, ambas as partes devidamente identificadas nos autos, acção especial de rectificação judicial ordinária, prevista no artº 121º e s.s. do Código do Registo Predial, pedindo que fosse ordenado o cancelamento do registo da aquisição do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, da fracção D17 do 17º andar do prédio sito em Macau, na Baia da XX.
Citados, vieram os requeridos opor-se à requerida rectificação.
Devidamente tramitada a acção, veio afinal a ser proferida a seguinte sentença julgando improcedente a acção:
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão devidamente representadas em juízo.
Não existem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito.
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SOCIEDADE DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO A, S.A., com os demais sinais identificadores constantes dos autos veio requerer contra B e seu marido C a presente acção de rectificação judicial, com processo especial, prevista nos 121.º e seguintes do Código do Registo Predial (doravante CRP), pedindo o cancelamento do registo de aquisição do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, da Fracção “D17” do 17.º andar do prédio sito em Macau, na Baía da XX, denominado “Fecho XX – Zona XX – Lote XX”, s/n, descrito sob o n.º 2X.XX5, a fls. XX do Livro BXX, a favor dos Requeridos, conforme consta da inscrição n.º 2XX.XX0G.
Para tanto, defende a requerente, muito resumidamente, que o contrato promessa de compra e venda que serviu de base ao mencionado registo de inscrição n.º 2XX.XX0G, por não conter reconhecimento notarial, seja ele presencial,- tal como exigido pelo artigo 41.º do CRP -, ou simples - como exige agora o n.º 3 do artigo 6.º da Lei n.º 7/2013 -, constituía título insuficiente para lavrar esse registo.
A petição foi remetida a juízo nos termos previstos no artigo 122.º, do CRP acompanhada do douto parecer do Exmo. Sr. Conservador que, em síntese, reafirma que o registo em causa foi devidamente efectuado ao abrigo do regime excepcional previsto no artigo 26.º, n.º 1 da Lei n.º 7/2013.
Citados os requeridos vieram opor-se à rectificação, subscrevendo, no essencial, a posição do Exmo. Sr. Conservador do Registo Predial, tal como melhor se colhe do teor do seu articulado junto a fls. 62 a 77, que aqui se reproduz por brevidade de exposição.
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A questão de mérito é de direito e de facto, e face à matéria provada por documentos, entende-se que os autos permitem, desde já, que se profira decisão.
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Para tanto, considera-se assente, por prova documental bastante, a seguinte matéria:
A) Em 21 de Junho de 2013, B requereu, junto da Conservatória do Registo Predial, sob a apresentação n.º 145, o registo da aquisição, a seu favor e do seu marido C, da fracção autónoma “D17” do 17.º andar do prédio sito em Macau, na Baía da XX, denominado “Fecho XX – Zona XX – Lote XX”, s/n, descrito sob o n.º 2X.XX5, a fls. XX do Livro BXX, com o título constitutivo da propriedade horizontal inscrito, então provisoriamente por natureza, sob o n.º 3X.XX2F, ali registado a favor da Requerente sob a inscrição n.º 4.XX1, a fls. XX do Livro FXX.
B) O prédio supra identificado encontra-se construído em terreno concedido por arrendamento, pelo prazo de 25 anos, a contar de 30 de Julho de 1991, conforme inscrição n.º 2.XX3, a fls. XX do Livro FXX da aludida Conservatória.
C) Para o efeito, o pedido de registo foi instruído com a pública-forma do contrato-promessa de compra e venda da Fracção, celebrado por documento particular, no dia 19 de Abril de 2011, entre a Requerente, como promitente-vendedora, e os Requeridos, como promitentes-compradores, e, ainda, com a guia de pagamento do imposto do selo devido, cobrado em 25 de Abril de 2011.
D) As assinaturas dos representantes da Requerente e dos Requeridos apostas no aludido contrato-promessa não se encontram reconhecidas notarialmente, não tendo sido atribuída eficácia real ao mesmo pelas referidas partes contratantes.
E) O registo de aquisição do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção da Fracção, foi lavrado a favor dos Requeridos sob a inscrição, provisória por natureza, n.º 2XX.XX0G, com menção expressa ao n.º 3 do artigo 10.º da Lei n.º 7/2013, de 27 de Maio.
F) O registo provisório de constituição de propriedade horizontal do referido prédio havia sido feito anteriormente a favor da Requerente, através da apresentação n.º 108, de 30 de Maio de 2013, sob o n.º 3X.XX2F, tendo, entretanto, sido registada a sua conversão em definitivo sob a apresentação n.º 342, de 29 de Maio de 2014, a que corresponde o averbamento n.º 1 à aludida inscrição.
G) Em 23 de Julho de 2014, a Requerente solicitou, junto da Conservatória do Registo Predial, a rectificação do aludido registo, com fundamento em nulidade, requerendo, ainda, o averbamento à inscrição n.º 2XX.XX0G da pendência da rectificação, e, bem assim, que os Requeridos fossem notificados nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 120.º do Código do Registo Predial.
H) Por via do ofício n.º 106/CRP/2014, de 11 de Agosto p.p., recebido no dia 13 do mesmo mês, foi notificado à Requerente o despacho exarado pelo Exmo. Senhor Conservador Substituto da Conservatória do Registo Predial de Macau, que lhe inferiu liminarmente a sua pretensão.
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Cumpre decidir.
Pretende a requerente que seja ordenado o cancelamento do registo de aquisição da aludida fracção a favor dos Requeridos, inscrição n.º 2XX.XX0G, por se tratar de um registo nulo, na medida em que, segundo a sua tese, foi lavrado com base em título insuficiente para prova do facto registado, nos termos da alínea b) do artigo 17.º do Código do Registo Predial.
A recorrente discorda, pois, do entendimento seguido pelo Exmo. Sr. Conservador do Registo Predial que considera que a Lei n.º 7/2013, vigente desde o dia 01 de Junho de 2013, contém um regime excepcional de inscrição no registo predial dos negócios jurídicos de promessa de transmissão ou oneração de edifícios em construção, celebrados antes da entrada em vigor da aludida lei.
Analisemos, pois, a lei aplicável ao vertente caso.
O artigo 41.º do CRP, sob a epígrafe (Aquisição e hipoteca antes de titulado o negócio) prescreve que:
1. O registo provisório de aquisição de um direito ou de constituição de hipoteca voluntária, antes de titulado o negócio, é feito com base em declaração do proprietário ou titular do direito.
2. A assinatura do declarante deve ser reconhecida presencialmente, salvo se for feita perante o funcionário da conservatória.
3. O registo provisório de aquisição ou de hipoteca pode também ser feito com base em contrato-promessa de alienação ou de oneração, com reconhecimento presencial da assinatura dos outorgantes.
A subsunção dos factos ao direito permite-nos concluir, aliás como o faz o Exmo. Sr. Conservador, que, com base nas regras previstas no Código do Registo Predial, os requeridos não teriam logrado registar provisoriamente a aquisição, a seu favor, do prédio descrito em A), uma vez que as assinaturas apostas no aludido contrato-promessa, pelas partes contratantes, não se encontravam reconhecidas notarialmente.
Com a aprovação da Lei n.º 7/2013, de 27 de Maio, vigente desde 01 de Junho desse ano, que estabelece o Regime Jurídico da Promessa de Transmissão de Edifícios em Construção, o legislador de Macau teve em vista a regularização do funcionamento do mercado imobiliário, o reforço da transparência das suas transacções e a garantia dos legítimos direitos e interesses dos contratantes relativamente, entre outros, aos negócios jurídicos que tenham por objecto a promessa de transmissão de edifícios em construção (cf. artigo 1.º).
Estes objectivos estão expressos e resultam claros da Nota Justificativa1 à respectiva proposta de lei, sendo certo que da leitura deste documento fica a certeza que o legislador teve uma preocupação clara em assegurar a validade dos contratos promessa de aquisição anteriores, obviamente quando os mesmos não respeitassem os requisitos impostos pela nova lei.
Note-se que o ponto 8 da citada Nota Justificativa esclarecia, desde logo, que se manteriam válidos os contratos de venda de edifícios em construção celebrados antes da entrada em vigor da citada lei, devendo, todavia, a venda da parte restante do edifício obedecer ao nela disposto, como por exemplo, a venda de edifícios em construção carecia de autorização prévia e o contrato de venda deveria ser reconhecido notarialmente.
O problema surgirá (aparentemente) quando se pretende que o campo de acção desses contratos pretéritos, que são formalmente válidos segundo a nova lei, se estenda ao nível do registo predial.
Actualmente, no ordenamento jurídico de Macau a celebração de um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção, num edifício em construção, tem de obedecer a vários requisitos: tem de ter autorização prévia da DSSOPT (com os precedentes requisitos previstos no artigo 5.º da mencionada Lei), tem de ser celebrado por escrito particular típico (dado que esse documento terá de obedecer a um clausulado mínimo também definido na Lei), tem de ter as assinaturas dos contratantes reconhecidas, e está (passou a estar) sujeito a registo predial.
Com efeito, no artigo 10.º da citada Lei “exige-se” que os negócios jurídicos em questão sejam sujeitos a registo, no prazo de 30 dias a contar do reconhecimento notarial das assinaturas dos contratantes.
Actualmente, o citado preceito legal, ao estatuir que o contrato promessa de aquisição de uma fracção num edifício em construção está sujeito a registo predial, aumentou o elenco dos factos sujeitos a registo previstos no artigo 2.º do CRP e sujeitou esse negócio jurídico ao regime previsto nos artigos 4.º e seguintes do CRP, o que antes não acontecia, a não ser que as partes lhe atribuíssem eficácia real (asserção que não sai prejudicada com o facto de a inscrição ter de ser feita como provisória por natureza).
Neste contexto, e ressalvando sempre melhor opinião, julgamos que se a Lei 7/2013 veio, no seu artigo 26.º, n.º 1, definir que os negócios jurídicos de promessa de transmissão ou oneração sobre parte do edifício em construção celebrados antes da entrada em vigor da presente lei se mantêm válidos (mesmo quando lhes falta, entre outros requisitos, o reconhecimento notarial das respectivas assinaturas), essa validade formal satisfaz os requisitos necessários para submissão a registo predial nos termos do artigo 10.º da Lei 7/2013, mesmo sem assinaturas reconhecidas notarialmente.
Isto é, segundo ajuizamos, para que exista coerência no regime jurídico aplicável aos negócios em questão, se o contrato de pretérito é válido – porque assim o afirma a lei e as partes não o negam – então está, fica sujeito a registo predial, nos termos dos artigos 10.º, n.º 1 a 3.º, 3.º, n.º 1 e 2, 1) parte final, e 26.º todos da Lei 7/2013, se vier a ser requerido, tal como foi.
Se existirem dúvidas relativamente ao valor probatório dos contratos promessa de pretérito, nomeadamente quanto à validade das assinaturas neles apostas, na medida em que não estão reconhecidas notarialmente, podem as partes impugná-los judicialmente, arguindo a sua falsidade. Ora, esse não é, manifestamente, o caso, dado que a própria requerente assume a plena validade do contrato objecto dos autos e, pasme-se, só não o quer registado…
O contrato promessa de compra e venda que os requeridos, na qualidade de promitentes-compradores, outorgaram com a requerente é, pois, no nosso modesto juízo, título válido para registar provisoriamente a seu favor a respectiva fracção, na medida em que esse contrato, por força da aprovação da Lei 7/2013 e da declaração da sua validade, ficou sujeito ao regime legal que decorre da conjugação das citadas normas legais, nomeadamente ao seu artigo 10.º, não havendo qualquer nulidade a declarar.
DECISÃO:
Posto isto, e sem necessidade de maiores considerações doutrinárias, julgamos totalmente improcedente o pedido de cancelamento do registo de aquisição do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, da Fracção “D17” do 17.º andar do prédio sito em Macau, na Baía da XX, denominado “Fecho XX – Zona XX – Lote XX”, s/n, descrito sob o n.º 2X.XX5, a fls. XX do Livro BXX, a favor dos Requeridos, sob a inscrição n.º 2XX.XX0G, e, em consequência, dele absolvemos os requeridos.
Custas pela requerente.
Comunique à respectiva Conservatória a presente sentença.
Notifique e registe.
Inconformada, a requerente veio recorrer da sentença para esta segunda instância, concluindo e pedindo:
A. A douta sentença ora em crise encontra-se ferida de nulidade por falta de fundamento de direito, omissão e excesso de pronúncia, tudo nos termos das alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC;
B. Por falta de fundamento porque não logrou demonstrar a falta de unidade do sistema jurídico que deriva da interpretação da Recorrente, nem como é que a solução defendida pelo Tribunal a quo, apesar de esta não se encontrar prevista no teor literal da lei, garante e protege essa unidade;
C. Por omissão de pronúncia, porque não se debruçou sobre os argumentos de direito da Recorrente e que, em suma, se traduziram na interpretação da novel lei, nos termos do artigo 8.° do CC, bem como na necessidade de observar os princípios da não retroactividade, da consensualidade e da certeza e da segurança jurídicas;
D. E excesso de pronúncia porque a douta sentença ora recorrida, entende dar por assente a fls. 170 v. que a Recorrente, ao confirmar, na presente acção - intentada em 2014 -, assinou o contrato em 2011, reconheceu que, no momento em que foi apresentado a registo, em 2013, este permanecia válido, apenas só o não quer ver registado;
E. O Tribunal a quo não dispunha de todos os factos, nem estava em posição de se pronunciar sobre a intenção da Recorrente, nem sobre a validade do contrato dos autos, sendo certo que o registo da acção judicial de execução específica se encontra lavrado, provisoriamente por natureza, sob a inscrição n.º 3XXX1F da Conservatória do Registo Predial;
F. Defende o douto Tribunal a quo que, se a Recorrente quiser suprir a falta do reconhecimento notarial das assinaturas apostas no contrato, deve intentar acção própria para arguir a falsidade das assinaturas, considerando, no fundo, que o registo só pode ser cancelado se inexistir declaração do promitente vendedor e proprietário inscrito a confirmar a promessa de transmissão, ignorando, assim, a causa de pedir e o pedido da Recorrente, que se limitou a arguir a nulidade do registo com base na falta de um requisito legal e em consequência pediu o seu cancelamento;
G. E não conheceu de tais factos porque estes não lhe foram, nem tinham que ser oferecidos, pois não se pediu ao douto Tribunal a quo que se pronunciasse sobre a validade do contrato, porquanto a Recorrente limitou-se a pedir, tanto e só, que fosse cancelado um registo nulo com base na insuficiência do título que lhe serviu de base;
H. O douto Tribunal a quo quis vislumbrar no pedido da Recorrente o que o legislador de 2013 visou penalizar e impedir, incorrendo em excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 571.º do CPC;
I. Neste processo especial, não se discute a validade do contrato, nem tem de se discutir, cabendo apenas ao requerente ou autor alegar os factos constitutivos do direito que invoca, nos termos do n.º 1 do artigo 335.º do CC;
J. Num processo especial de rectificação de registo, como o previsto nos artigos 121.º e seguintes do CRP, o requerente apenas tem de alegar, sob pena de ineptidão ou improcedência do pedido, factos que demonstrem a insuficiência do título que serviu de base ao registo que pretende ver rectificado ou cancelado;
K. Por essa razão, a Recorrente não alegou, nem tinha de o fazer, por o presente processo especial não ser a sede própria, que o contrato-promessa já se encontra resolvido por Notificação Judicial Avulsa de 22 de Maio de 2014, ou que as partes acordaram no direito da Recorrente à resolução convencional discricionária, também chamado direito ao arrependimento - cfr. cláusula 2.2 do contrato;
L. Ao fazê-lo, sustentado na conclusão de que o contrato permanece válido, o Tribunal a quo, com o devido respeito, que é muito e merecido, sobrepôs-se à vontade das partes contratantes, atribuindo-lhes retroactivamente um desiderato - permitir o registo provisório da promessa - que, todavia, nenhuma delas quis à data da celebração daquele;
M. É que o contrato celebrado deve produzir os efeitos que, à altura da sua celebração, ambas as partes quiseram que produzisse. Nem mais, nem menos. E nenhuma delas quis, então, levá-lo a registo, nem sujeitá-lo a eficácia real;
N. Ora, não se encontrando na lei nova a norma que dispensa, para fins de registo, o reconhecimento notarial das assinaturas, relativamente aos contratos de pretérito, o registo impugnado é nulo por ter sido indevidamente lavrado com base em título insuficiente para prova legal do facto registado e pode ser cancelado, nos termos do disposto nos artigos 17.°, alínea b) e 117.° do CRP;
O. Ao pronunciar-se sobre a validade do contrato-promessa, a sentença recorrida foi para além dos efeitos limitados pela vontade da Recorrente e autora, violando o princípio do dispositivo, cuja manifestação se encontra nos artigos 5.°, 407.°, 408.°, 564.°, n.º 1 e 571.°, n.º 1, alínea d) todos do CPC;
P. A Lei n.º 7/2013, ao abrigo da qual foi feito o registo em questão nos autos, não contém norma que determine que o contrato-promessa, celebrado antes da respectiva entrada em vigor, sem reconhecimento notarial das assinaturas dos outorgantes, possa servir de base ao registo provisório de aquisição, sendo inaplicável ao caso em apreço;
Q. A decisão ora recorrida falha interpretar correctamente a lei, por ter ignorado os elementos (i) sistemático, (ii) histórico e (iii) teleológico segundo os quais outra coisa não se pode concluir a não ser que a validade existia mas não para registo, ficcionando a manutenção de uma validade que inexistia, pois o legislador não disse em parte alguma que os contratos anteriormente celebrados que não eram bons para registo se transformavam agora em bons para registo, mesmo sem o reconhecimento notarial das assinaturas;
R. A sentença recorrida viola a presunção legal de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados;
S. Resulta claro da letra do n.º 3 do artigo 8.° do CC e do teor da própria sentença recorrida, que ao falar no n.º 1 do artigo 26.º da Lei n.º 7/2013 de validade contratual e não em suficiência de título para servir de base ao registo, o legislador não o fez por não saber exprimir o seu pensamento, mas porque o soube fazer em termos adequados;
T. O legislador não confundiu, nem quis confundir, validade com registabilidade, pois quando no artigo 26.º disse que os contratos de pretérito se mantinham válidos, não quis dizer que estes passavam a ser bons para registo, nos termos do artigo 10.° da referida Lei n.º 7/2013;
U. O legislador afirmou expressamente no n.º 1 artigo 3.° da Lei n.º 7/2013 que a mesma não se aplica aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor e não dispensou de reconhecimento notarial aqueles que nos termos do seu artigo 26.º viessem a ser inscritos no registo predial;
V. A ter confirmado na petição inicial que celebrou a promessa, em 2011, a Recorrente não dispensou, nem quis dispensar, o reconhecimento notarial das assinaturas, não ratificou, não supriu, a deficiência que esteve na base do registo indevidamente lavrado.
W. A sentença recorrida viola a unidade do sistema jurídico;
X. Em sede de registo predial, a intervenção do notário não era irrelevante antes, nem o passou a ser depois da entrada em vigor da Lei n.º 7/2013;
Y. O Ilustre Conservador e com ele o douto Tribunal a quo, admitem como válido o registo do contrato-promessa a pedido do promissário, desvalendo a posição do promitente que o artigo 41.º do CRP protegia;
Z. O douto Tribunal a quo não pode aproveitar o documento particular, considerando a intervenção do notário substantivamente irrelevante, admitindo o registo da transferência do direito com base na mera declaração de que este foi celebrado, in casu, em 2011, dois anos antes de ter sido admitido a registo, a 21 de Junho de 2013;
AA. Com a sua interpretação, o douto Tribunal a quo permite que o Ilustre Conservador dispense o arquivamento exigido pelo n.º 3 do artigo 9.° da nova lei, a que está obrigado o notário depois de efectuado o reconhecimento notarial e até impedir a emissão das respectivas certidões nos termos da alínea g) do n.º 1 do artigo 6.° e do n.º 1 do artigo 171.° do Código do Notariado;
BB. A interpretação do Tribunal a quo não atende ao enquadramento da nova lei, e não leva "sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico" como manda o n.º 1 do artigo 8.° do CC, nem tão-pouco do sistema registral;
CC. O Tribunal a quo decidiu em total detrimento dos elementos literal, sistemático, histórico e teleológico da Lei n.º 7/2013, afastando, em particular, a aplicação da alínea 1) do n.º 2 do artigo 3.° e aplicando erroneamente o n.º 1 do artigo 26.° da Lei n.º 7/2013;
DD. Tal desaplicação arreda os princípios basilares e orientadores do direito registral, em sede de registo predial, desde logo, (i) o princípio da legalidade, (ii) o princípio do trato sucessivo, (iii) o princípio da eficácia declarativa, (iv) o princípio da instância e o (v) da fé pública registrai ou presunção de verdade e exactidão, e, ainda, o princípio da segurança e certeza jurídicas;
EE. É o princípio da segurança jurídica que, nos termos do artigo 1.º do CRP, constitui os alicerces do direito registral, estipulando que o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, que garante a eficácia dos actos e contratos celebrados sobre os imóveis, com base em duas vertentes fundamentais: que o registo é oponível a terceiros e que constitui presunção de que o direito pertence ao titular inscrito nos termos em que nele se encontra definido, conforme dispõem, respectivamente, o artigo 5.° e o artigo 7.º do CRP;
FF. A sentença recorrida viola o princípio da legalidade, plasmado no artigo 59.º do CRP, também chamado de qualificação, em que assenta a própria credibilidade do sistema do registo predial e estruturante do direito registral de Macau;
GG. Com a sua decisão, o conservador mais não fez do que inscrever no registo um facto que não estava contido no documento apresentado: a vontade das partes em sujeitá-lo a registo - nem do promitente, nem do promissário; nem em conformidade com a lei nova, nem em conformidade com a lei anterior;
HH. Ao não declarar o cancelamento do registo indevidamente lavrado, o douto Tribunal a quo, mantém uma situação que viola as regras definidas pela lei e, assim, confere fé pública a um acto que não preenche todos os requisitos legais para a ter;
II. O princípio do trato sucessivo em que se baseia a aquisição tabular e a fé pública do registo sai ferido com a decisão recorrida, pois reconhece um direito susceptível de ser transmitido que não existe;
JJ. Os resultados legais e práticos da decisão recorrida vêm, por isso, colocar na cadeia do trato sucessivo do registo da fracção uma peça que, tanto por razões formais como materiais, deveria inexistir: um registo nulo e indevidamente lavrado;
KK. À data da celebração do contrato, nenhuma das partes pretendia atribuir-lhe eficácia real, sujeitá-lo a um registo que nada tem de provisório e que, mais até do que o tornar oponível a terceiros, quase o investe de um efeito atributivo, para além dos efeitos ad probationem do registo;
LL. Isto é, os Recorridos não adquiriram nenhum direito real através do contrato-promessa, o seu titular era e continua a ser a Recorrente, mas da sua inscrição no registo, ao abrigo da Lei n.º 7/2013, resulta a aquisição, ainda que provisoriamente, do direito real pelos Recorridos;
MM. Por conseguinte, ainda que, ao tempo da celebração do contrato, fosse admissível o seu registo, o que não se concede, nenhuma das partes contratantes poderia prever que o seu registo provisório produzisse, sem mais, tais efeitos;
NN. Pois deste novo regime resulta não só um registo provisório que se renova automaticamente como a oponibilidade a terceiros nos termos gerais, entendida como eficácia real;
OO. As partes não convencionaram nem quiseram convencionar a atribuição de tais efeitos;
PP. Nos termos do artigo 34.º do CRP, salvo nos casos especialmente previstos na lei, o registo não pode ser efectuado oficiosamente mas apenas a requerimento dos interessados, sobre quem recai o ónus de carrear para o processo os elementos necessários para a decisão do conservador;
QQ. O processo não foi instruído com documento que atestasse a vontade das partes de registar o contrato-promessa, como exigido antes da Lei n.º 7/2013, nem com documento que cumprisse os requisitos que esta impõe;
RR. Não se pode aceitar que, contrariamente ao que impõe a fé pública do registo, o douto Tribunal a quo venha permitir que o registo do contrato-promessa produza aquilo que as partes não quiseram produzir com a celebração do contrato, substituindo com a legalidade registral o que a legalidade substancial não permite.
SS. Ao recusar declarar a nulidade do registo in casu, o douto Tribunal a quo, com o devido respeito, mantém uma presunção que não devia existir no sistema registral, conferindo fé pública a um facto inscrito com base em título insuficiente.
TT. A douta sentença de fls. 167 a 171, ora recorrida, é nula, nos termos do artigo 571.º, n.º 1, alínea b) e d) do CPC, e viola o artigo 7.º, a alínea b) do artigo 17.º e os artigos 34.º,37.º,41.º e 59.º, todos do CRP, o artigo 8.º, o n.º 1 do artigo 402.º e o n.º 1 do artigo 407.º CC, o artigo 5.º e o n.º 1 do artigo 564.º do CPC e, ainda, a alínea 1) do n.º 2 do artigo 3.º, o artigo 10.º e o n.º 1 do artigo 26.º da Lei n.º 7/2013 e, bem assim, os princípios da legalidade, do trato sucessivo, da eficácia declarativa, da instância e da fé pública registral ou presunção da verdade e exactidão do registo, bem como o princípio da segurança e certeza jurídicas.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente, sendo, em consequência, revogada a douta sentença de fls. 167 a 171, ora recorrida, por ser nula, nos termos do artigo 571.º, n.º 1, alíneas b) e d) do CPC, e por violação do artigo 7.º, da alínea b) do artigo 17.º e dos artigos 34.º, 37.º, 41.º e 59.º, todos do CRP, do artigo 8.º, do n.º 1 do artigo 402.º e do n.º 1 do artigo 407.º CC, do artigo 5.º e do n.º 1 do artigo 564.º do CPC e, ainda, da alínea 1) do n.º 2 do artigo 3.º, do artigo 10.º e do n.º 1 do artigo 26.º da Lei n.º 7/2013 e, bem assim, dos princípios da legalidade, do trato sucessivo, da eficácia declarativa, da instância e da fé pública registrai ou presunção da verdade e exactidão do registo, bem como o princípio da segurança e certeza jurídicas, e substituída por outra que determine o cancelamento do registo de aquisição do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, da Fracção dos autos a favor dos Recorridos, conforme consta da inscrição n.º 2XX.XX0G, por ser nulo e ter sido indevidamente lavrado, assim se fazendo a costumada
JUSTIÇA!
Os requeridos responderam ao recurso pugnando pela improcedência do mesmo.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Conforme se vê nas conclusões do recurso, a recorrente imputou à sentença ora recorrida as nulidades por falta de fundamento de direito, omissão e excesso de pronúncia.
Por sua vez, os recorridos suscitaram, nas contra-alegações, as questões da alegada ilegalidade da alegação pela recorrente dos factos novos e da apresentação de um documento novo em sede de recurso, no âmbito da questão da alegada nulidade por excesso de pronúncia.
Todavia, só se tornará necessária a apreciação das tais invocadas nulidades se se mantiver a sentença recorrida, ou pelo menos, a solução jurídica consubstanciada na sentença recorrida, ou se precisarmos de atender os factos novos e o documento novo trazidos pela recorrente para a solução de mérito.
Portanto, passemos por cima das invocadas nulidades e das questões, entremos directamente na apreciação da questão de fundo.
No fundo, a única questão sobre a qual temos de nos debruçar é a de saber se, em face da Lei nº 7/2013, é permitido o registo do contrato, já celebrado antes da entrada em vigor dessa lei sem o reconhecimento notarial das assinaturas dos contraentes, que tem por objecto aquisição do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção de um edifício em construção.
Ora, sobre a mesma questão, este Tribunal já se pronunciou recentemente em vários Acórdãos, nomeadamente no Acórdão de 16JUL2015, tirado no processo nº 266/2015, donde consta a fundamentação nos termos seguintes:
2 - «(…) - Discute-se, então, no presente recurso se a Lei supra citada permitiria ou não o registo provisório a que se refere a inscrição nº 254.495G lavrado a favor do requerido, (…).
Vejamos o que dizem as disposições legais.
É efectivamente nulo, segundo o art. 17º, nº1, al. b), do CRP, o registo que “tiver sido lavrado com base em título insuficiente para a prova legal do facto registado”.
Esta questão da prova assume particular importância, na medida em que “Só podem ser registados os factos constantes de documentos que legalmente os comprovem” (art. 37º, nº1, do CRP).
Ou seja, o que está em causa é um título “suficientemente” comprovativo do facto registando.
Claro está que a declaração negocial é importante, pois é nela que se descobre a densificação do acto jurídico e, portanto, do direito em apreço, mas as assinaturas mostram-se, neste plano do registo, elementos ainda mais reveladores da intenção subjacente, sendo como que o garante de uma paz para o comércio jurídico.
É nessa senda que se alcança o disposto no art. 41º do CRP, ao prescrever a necessidade de reconhecimento presencial das assinaturas dos declarantes/outorgantes. Atente-se no seu conteúdo:
«1. O registo provisório de aquisição de um direito ou de constituição de hipoteca voluntária, antes de titulado o negócio, é feito com base em declaração do proprietário ou titular do direito.
2. A assinatura do declarante deve ser reconhecida presencialmente, salvo se for feita perante o funcionário da conservatória.
3. O registo provisório de aquisição ou de hipoteca pode também ser feito com base em contrato-promessa de alienação ou de oneração, com reconhecimento presencial da assinatura dos outorgantes».
Ora, estamos seguros que as assinaturas apostas neste contrato-promessa não foram objecto de reconhecimento presencial. Parece ser, por isso, firme que à sombra do CRP estar-se-ia perante um título insuficiente, que não permitiria o registo provisório.
Todavia, o registo foi feito sob a expressa e declarada égide da Lei nº 7/2013!
Poderia sê-lo?
*
(…) – A lei nº 7/2013, de 27/05 veio regular os negócios jurídicos que tenham por objecto a promessa de transmissão de edifícios em construção, bem como a sua promessa de oneração. E introduziu parâmetros e critérios mais apertados, tendo em vista, precisamente, a regularização do funcionamento do mercado imobiliário, o reforço da transparência das suas transacções e a garantia dos legítimos direitos e interesses dos contratantes (cfr. art. 1º).
De acordo com este diploma, os negócios jurídicos de promessa de transmissão e oneração de edifícios em construção obedecem a determinadas regras:
a) Sob pena de nulidade, só podem realizar-se após autorização prévia da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, adiante designada por DSSOPT (art. 4º);
b) Os contratos de promessa são titulados por documento particular com as assinaturas reconhecidas notarialmente (art. 6º, nºs 2 e 3; 9º);
c) Os contratos devem conter determinados elementos, sob pena de anulabilidade (art. 7º, nº1);
d) O conteúdo do contrato deve estar em conformidade com o disposto na lei, o que deve ser declarado por advogado (art. 8º)
É claro que esta lei não se aplica aos negócios jurídicos celebrados antes da sua entrada em vigor (art. 3º, nº2, al. 1)). No entanto, excepcionalmente haverá que ter em conta o disposto no art. 26º (art. 3º, nº2, al. 1), “fine”).
O que contém o art. 26º? A resposta está na sua epígrafe: disposições transitórias.
Vejamos o seu conteúdo integral:
«1. Mantêm-se válidos os negócios jurídicos de promessa de transmissão ou oneração sobre parte do edifício em construção celebrados antes da entrada em vigor da presente lei, devendo, todavia, os negócios jurídicos sobre a parte restante do edifício obedecer ao disposto na presente lei.
2. Caso hajam sido celebrados negócios jurídicos de promessa de transmissão ou oneração de edifícios em construção, antes da entrada em vigor da presente lei, sem que o registo provisório de constituição de propriedade horizontal tivesse sido efectuado, deve o promotor do empreendimento requerer o registo em causa no prazo de 90 dias a contar da entrada em vigor da presente lei.
3. Após o decurso do prazo referido no número anterior sem que tivesse sido requerido o registo provisório de constituição de propriedade horizontal, qualquer interessado nos negócios jurídicos de promessa de transmissão ou oneração de edifícios em construção celebrados antes da entrada em vigor da presente lei, pode requerer o registo em causa, sendo os emolumentos suportados pelo promotor do empreendimento.
4. O promotor do empreendimento goza de redução de 10% dos emolumentos de registo provisório de constituição de propriedade horizontal, desde que, aquando do pedido, nos termos do n.º 2, apresente a pública-forma de todos os negócios jurídicos em que tenha intervindo, e que tenham sido celebrados antes da entrada em vigor da presente lei, relativos aos contratos-promessa de compra e venda, contratos de cessão da posição contratual e contratos-promessa de oneração.
5. Está isento de emolumentos o registo dos contratos-promessa de compra e venda, contratos de cessão da posição contratual e contratos-promessa de oneração, celebrados antes da entrada em vigor da presente lei, nas seguintes situações:
1) O promotor do empreendimento requeira o registo nos termos do n.º 4;
2) Caso o registo provisório da constituição de propriedade horizontal de edifício em construção tenha sido efectuado antes da entrada em vigor da presente lei, seja requerido o registo no prazo de 1 ano a contar da data de entrada em vigor da presente lei;
3) Caso o registo provisório da constituição de propriedade horizontal tenha sido requerido nos termos do n.º 2 ou n.º 3, seja requerido o registo no prazo de 1 ano a contar da data de realização do registo provisório.
6. Relativamente aos contratos-promessa de compra e venda celebrados antes da entrada em vigor da presente lei, a cessão da posição contratual ou promessa de oneração supervenientes estão sujeitas às disposições da presente lei, excepto o disposto sobre autorização prévia, confirmação por advogado e elementos necessários do contrato».
Deste artigo, destaquemos duas normas: a do nº1 e a do nº6.
O nº1 preceitua que os contratos celebrados antes da entrada em vigor da lei «sobre parte do edifício em construção» se mantêm válidos. E dele resultam, desde logo, duas ordens de considerações:
Em primeiro lugar, trata-se de uma disposição que só se aplica aos contratos de promessa de partes do edifício, nomeadamente, a fracções de residência ou de aparcamento.
Em segundo lugar, e como é evidente, só se manterão válidos os negócios que eram válidos ao tempo da sua celebração. Quer dizer, esta lei não tem virtudes sanatórias de modo a tornar válidos os negócios que sofriam de algum tipo de invalidade.
O nº6 estipula que, em relação aos contratos de promessa de compra e venda celebrados antes da entrada em vigor da lei, a cessão da posição contratual ou promessa de oneração supervenientes ficam sujeitas às disposições da presente lei, excepto quanto à “autorização prévia”, “confirmação por advogado” e “elementos necessários ao contrato”.
Não nos iludamos quanto ao alcance das palavras deste inciso: as disposições da presente lei só se aplicam à cessão da posição contratual e às promessas de oneração (supervenientes) que venham a ocorrer após os contratos de promessa celebrados antes da entrada em vigor da lei 7/2013.
Isto parece querer dizer que as disposições da lei em causa, “a contrario sensu”, não se aplicam directamente aos contratos de promessa, em si mesmos, celebrados anteriormente.
*
......
E assim sendo, se tais contratos eram válidos, assim continuarão a ser, face à nova lei (6º, nº1). Mas, o facto de colherem a sua validade na lei anterior (CRP) não significa que bebam da nova os requisitos da sua registabilidade. Isso não é dito em lado nenhum da lei.
Quer dizer, a conjugação dos nºs 1 e 6 do art. 26º está perfeitamente em consonância com a trajectória do âmbito de aplicação definido no art. 3º, nº2, al. 1).
Ou seja, o novo diploma não se aplica, em princípio (em regra) aos contratos de pretérito, porque assim o estatui imperativamente o art. 3º, nº2, al.1), a não ser nos casos (de excepção) previstos no art. 26º, entre os quais se não prevêem, declarada e expressamente, os contratos de promessa celebrados anteriormente, podendo até dizer-se que, com a literalidade restritiva do nº6, teria querido o legislador intencionalmente afastá-los.
Aliás, se na lei anterior o registo não podia ser feito por falta de reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes, mal se perceberia que, à luz do novo diploma - que sabemos entretecido de malhas mais apertadas para controlo do mercado imobiliário especulativo e reforço da transparência, segurança e certeza jurídicas - ele pudesse ser feito, tendo em conta, inclusive, que o próprio artigo 6º até continua a exigir o reconhecimento notarial das assinaturas dos contratantes!
Repare-se que o nº6 do art. 26º referido, exclui expressamente o disposto na lei sobre “autorização prévia” do art. 4º, sobre “confirmação por advogado” do art. 8º e sobre os “elementos necessários do contrato” do art. 7º, mas não exclui o reconhecimento notarial previsto no art. 6º, nº3. Quer dizer, além de o nº6 do art. 26º apenas ter na sua mira as cessões de posição contratual e as promessas de oneração posteriores aos contratos-promessa de compra e venda, em relação a estes (contratos-promessa) não excluiu a necessidade de reconhecimento notarial.
Por conseguinte, estamos seguros que tanto o CRP, como a lei 7/2013 exigem o reconhecimento das assinaturas dos outorgantes (presencial, além; notarial, aqui) e nenhuma interpretação sensata pode legitimar a ideia de que um negócio validamente celebrado ao tempo do CRP bastará para o registo, se tanto o diploma vigente ao tempo da sua celebração, como o actualmente imperante obrigam ao reconhecimento das assinaturas dos contraentes.
Não faria, aliás, o menor sentido – nem isso tem o menor apoio na lei – dizer que só por ser válido, nada já mais obsta ao registo provisório, até porque são coisas diferentes: uma coisa é a validade do negócio, que tem que ser analisada sob o comando das disposições substantivas do Código Civil – outra é a sua registabilidade, que deve obedecer aos comandos das regras registrais prediais.
Aceitar uma diferente interpretação seria o mesmo que reconhecer um anacronismo. Isto é, seria o mesmo que admitir a aplicação da nova lei, porém expurgada do requisito do reconhecimento notarial que ela impõe aos novos contratos celebrados sob o seu império. Ora, nada disso está no articulado da lei em forma de preceito, nem isso emerge, sequer longinquamente, do espírito normativo.
O lapso do recorrente reside, cremos nós, na circunstância de olhar para a “validade” mantida pelo art. 26º, nº1 da Lei 7/2013, como sendo uma fonte excludente dos requisitos da registabilidade.
Mas, como pode ousar ler no texto dessa lei uma tal permissividade, se todo o diploma vai no sentido contrário?!
Olhar para o nº1 do art. 26º dessa forma equivale a aceitar que o legislador, apesar de obrigar ao reconhecimento notarial das assinaturas dos contratantes, quis dar um “bónus” registral aos contraentes dos negócios celebrados ao tempo do CRP, passando uma esponja sobre a exigência contida no art. 41º, que impunha o reconhecimento presencial.
Assim, é de entender que quanto aos contratos-promessa celebrados antes da entrada em vigor da Lei 7/2013, o seguinte:
- Se eles eram válidos, assim continuarão a ser face à nova lei, o que bem demonstra que não houve um propósito de interferir na sua substância e no seu conteúdo;
- As disposições que a nova lei acolhe não se lhes aplicam (art. 3º, nº2, al. 1));
- Aplicam-se as disposições da lei nova apenas no que se refere aos contratos de cessão de posição contratual e promessa de oneração fundados no contrato-promessa (e mesmo assim, com a exclusão alusiva à autorização prévia, confirmação por advogado e quanto aos elementos necessários do contrato (nº6, do art. 26º);
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......
E não se diga que a interpretação que sufragamos impede a celebração de contratos de cessão da posição contratual ou de promessa de oneração supervenientes, ao contrário do que o afirma o recorrente.
Expliquemo-nos.
Realmente, de acordo com a nova lei, o reconhecimento notarial das assinaturas (art. 6º, nº3) implica um pedido que deve ser acompanhado da respectiva certidão de registo predial (art. 9º, nº1). A tese do recorrente é a de que sem registo prévio, isto é, sem a possibilidade de o promitente comprador efectuar o registo provisório, não há lugar a reconhecimento notarial dos contratos de cessão da posição contratual ou de promessa de oneração supervenientes. E a maioria dos contratos de pretérito celebrados ao abrigo do CRP seriam insusceptíveis de aquisição derivada por uma daquelas vias.
Mas, sobre isso, apenas nos cumpre dizer o seguinte:
Em primeiro lugar, no que se refere aos contratos-promessa em si mesmos, não se lhes aplicando o regime da nova lei, como dissemos, impor-se-á o reconhecimento presencial, nos moldes do CRP já vistos. Uma vez obtido esse reconhecimento, nada imporá o registo provisório e, dessa maneira, os contratos de cessão contratual ou de promessa de oneração supervenientes, celebrados ao abrigo já da nova lei (art. 26º, nº6) já poderão ser celebrados sem dificuldade com observância do reconhecimento notarial a que alude o art. 9º obtido, uma vez que o reconhecimento notarial que se lhes aplique já pode ser acompanhado do respectivo registo predial.
Em segundo lugar, não nos pode torpedear, pela interpretação, aquilo que é estatuição normativa. Realmente, o intérprete não deve ir à procura de uma solução que a lei rejeita. Se o legislador quis que os contratos de cessão contratual e de promessa de oneração subsequentes a um contrato de promessa celebrados ao abrigo da nova lei fiquem sujeitos às disposições desta, escapa ao poder do julgador saber se a solução é a melhor para os interesses das partes. Nesta matéria o que é preciso é ver se há alguma lógica no aperto da malha, se a restrição a este tipo de negócios tem fundamento. E, quanto a esse aspecto, já vimos que o objectivo é, precisamente, controlar a especulação e fomentar a transparência, a certeza e a segurança jurídicas. Ora, o benefício de um tão grande interesse público não se obtém sem algum sacrifício de alguns interesses privados.
De maneira que, (…), a lei não impede a formalização de tais contratos de cessão de posição contratual ou de promessa de oneração. Simplesmente, obriga as partes a um registo, a partir do qual se obterá a respectiva certidão e o consequente reconhecimento notarial. E aquele registo, reportado que seja a um contrato-promessa celebrado antes da Lei nº 7/2013 implicará, como já se viu, um reconhecimento presencial das assinaturas dos outorgantes (art. 41º, nº3, do CRP). Portanto, os promitentes que se encontrem numa dessas situações terão se reconhecer as assinaturas e partir daí já não haverá obstáculos ao accionamento das regras da nova lei para os contratos supervenientes de cessão de posição contratual e de promessa de oneração celebrados já ao abrigo da nova lei.
*
......
No que respeita à invocação da nota justificativa que acompanhou a proposta de lei, bem como ao parecer da AL que precedeu a lei, importa dizer que não passam de meros elementos de interpretação, mas que, por acaso, não têm correspondência directa no articulado da lei. Isto é, aquilo que podia ser um conteúdo normativo a partir desses textos, não foi vazado para o diploma em termos, pelo menos, claros.
Por exemplo, quando na nota justificativa se diz que “relativamente aos edifícios em construção antes da entrada em vigor da presente lei, a respectiva transmissão ou oneração só é permitida depois de ter sido efectuado o registo predial, sob pena de nulidade do contrato” (pág. 5, a fls. 87 dos autos), tal é apresentado com uma tal força dispositiva que mais parece a expressão de um comando normativo. Realmente, não pode prescrever-se a nulidade através de uma simples nota justificativa; a nulidade, sendo uma sanção severa para uma invalidade, tem que estar expressamente prevista. Todavia não vemos a emanação de uma tal sanção no articulado da lei. Apenas encontramos afirmado no art. 10º, nº1, que “Estão sujeitos a registo os negócios jurídicos relativos a promessa de transmissão ou de oneração de edifícios em construção” ou no art. 23º que “Às transmissões ou onerações de edifícios em construção que se pretendem efectuar, seja a que título for, aplica-se com as devidas adaptações o disposto na presente lei”, sem que, no entanto, se estabeleça aí qualquer sanção de nulidade. E, de qualquer maneira, sempre é bom lembrar que são disposições aplicáveis aos negócios posteriores à entrada em vigor da lei.
No que se refere aos negócios de promessa de transmissão ou oneração celebrados antes da entrada em vigor da lei, apenas o nº2 do art. 26º prescreve que se o registo provisório de constituição de propriedade horizontal não tiver sido efectuado, deve o promotor do empreendimento requerê-lo no prazo de 90 dias a contar da entrada em vigor da lei, sendo que, se não o fizer, qualquer interessado nos negócios o pode fazer (nº3, art. 26º).
Ora, esse registo da constituição da propriedade horizontal não estava em causa no caso em apreço, uma vez que ele já se encontrava efectuado pelo empreendedor/requerente.
Portanto, não se pode apelar a regras concernentes a um tipo de registo para daí se extrair efeitos relativamente a outro.
Relativamente ao registo de aquisição a favor do promitente-comprador a que se refere o art. 10º, nº 3 da Lei 7/2013 (esse é o que está em causa) a sua disciplina apenas se aplica aos negócios celebrados após a entrada em vigor da Lei, afigurando-se-nos importante dizer que o art. 9º, nº2 da proposta alternativa citado pelo recorrente nas suas alegações como modo de convencer o tribunal a optar por uma determinada interpretação iluminado pelo espírito e intenção do legislador ou pela mens legistoris – preceito que, relativamente a contratos-promessa celebrados antes da entrada em vigor da lei, pretendia fazer depender a cessão da posição contratual ou a promessa de oneração do registo de aquisição – não passou para o texto do diploma.
Estamos, enfim, de acordo que as normas do art. 26º, nomeadamente a do nº6, têm um carácter excepcional. Mas é, precisamente, por isso mesmo e por causa do art. 10º do Código Civil, que, se nem a analogia é permitida, também a interpretação extensiva se não justifica aqui no sentido que nos é proposto pelo recorrente, uma vez que as razões que invoca concernentes às exigências de segurança e certeza jurídicas neste comércio imobiliário já também implicam, pela nova lei, o reconhecimento notarial das assinaturas, como já vimos»
Não vemos razão para não manter esta tese unanimemente acolhida por este TSI e portanto damos aqui por integralmente reproduzido esse segmento do Acórdão de 16JUL2015 para servir de fundamento do presente Acórdão, julgando procedente o recurso e declarando a nulidade do registo em causa.
Com essa solução, fica prejudicado o conhecimento das questões das invocadas nulidades da sentença, imputadas pela recorrente e das questões da alegada ilegalidade da alegação dos factos novos e da apresentação dos documentos novos em sede de recurso, suscitadas pelos recorridos.
Tudo visto, resta decidir.
IV
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
* Julgar procedente o recurso pela requerente; e
* Declarar a nulidade do registo, sob o nº 2XXXX0G da inscrição, a favor dos requeridos B e marido C, da aquisição do direito resultante da concessão por arrendamento, incluindo a propriedade de construção, da fracção D17, do 17º andar do prédio sito em Macau, na Baía da XX, descrito sob o nº 2XXX5, a fls. XX do Livro BXX.
Custas pelos recorridos em ambas as instâncias.
Registe e notifique.
RAEM, 12NOV2015
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Lai Kin Hong
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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Ho Wai Neng
1 Disponível no site http://www.al.gov.mo/lei/leis/2013/2013-07/nota_justificativa.pdf
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Ac. 546/2015-28