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Processo nº 467/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 05 de Novembro de 2015
Descritores:
-Acidente de viação
-Art. 578º do CPC
-Oponibilidade a terceiros de decisão penal condenatória
I. Segundo o art. 578º, do CPC, a condenação definitiva no processo penal, em relação a terceiros, constitui simplesmente presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal em quaisquer acções cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção.

II. Assim, se o arguido condenado num processo-crime não pode voltar a discutir o caso julgado criminal em qualquer processo cível onde se aprecie a sua culpa, já essa limitação a não têm os terceiros, aos quais é reconhecido o poder de ilidir a presunção que emerge do art. 578º citado, demonstrando que os factos se passaram de uma maneira diferente da apurada no processo-crime, ou seja, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção da existência do facto e respectiva autoria.

III. A sentença penal que condena a segurada não constitui caso julgado em relação à seguradora, na sua qualidade de terceiro em processo cível.
Proc. nº 467/2015

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, do sexo masculino, casado, de nacionalidade chinesa, portador do Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º XXX, residente na XXX, Macau, ---
e ---
B, do sexo feminino, casado, de nacionalidade chinesa, portadora do Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º XXX, residente na XXX, Macau ---
Instauraram no TJB (Proc. nº CV3-11-0090-CAO) acção declarativa contra:
C, do sexo masculino, casado, de nacionalidade chinesa, portador do Bilhete de Identidade de Residente de Macau n.º XXX, residente na XXX, Macau;
D, do sexo masculino, de nacionalidade chinesa, residente na XXX, e
Companhia de Seguros da E (Macau), S.A., com sede na XXX, Macau, ---
Pedindo a condenação destes no pagamento de indemnização que quantificam, em virtude de um acidente de viação que vitimou a sua filha.
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Absolvidos os RR do pedido por sentença de 1/06/2012, viria a ser interposto recurso jurisdicional para o TSI, que, por acórdão de 11/07/2013, lhe concedeu provimento e determinou o prosseguimento dos autos na 1ª instância, o que viria a ser confirmado por aresto do TUI de 22/01/2014.
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Foi, então, o processo submetido a audiência de discussão e julgamento, na sequência do que foi proferida nova sentença na 1ª instância, datada de 16/12/2014, que julgou improcedente a acção.
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É contra essa sentença que ora se insurgem os AA, em cujas alegações formulam as seguintes conclusões:
«1. A decisão recorrida julgou que o pedido de indemnização e todos os pedidos deduzidos pelos recorrentes (A.A.) contra os três R.R. (C, D e Companhia de Seguros da E (Macau), S.A.,) não podem ser procedentes e em consequência absolveu os três R.R. da instância, por entender que não se conseguiu provar a culpa ou a responsabilidade pelo risco do veículo pesado no acidente de viação. Quanto ao entendimento da decisão recorrida, salvo o devido respeito, nunca podem os recorrentes dar a sua concordância com os fundamentos, a conclusão e o resultado da decisão recorrida nem se conformam com a mesma.
2. Os recorrentes entendem que na sua fundamentação e no seu conteúdo, a decisão recorrida incorreu, pelo menos, nos seguintes erros e vícios da nulidade:
- O acórdão recorrido violou o princípio e o valor da sentença transitada em julgado previstos no artigo 73.º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 574.º, 576.º e 578.º do Código de Processo Civil, e enfermou do vício da contradição insanável da fundamentação:
- O acórdão recorrido enferma do vício previsto no artigo 571.º n.º 1 alíneas b) e c) do Código de Processo Civil e do vício da contradição insanável da fundamentação por existir erro no julgamento, e incorreu em erros na aplicação e na interpretação do nexo de causalidade (responsabilidade por factos ilícitos) previsto nos artigos 477.º do Código Civil e S.S., por existir nexo de causalidade entre a conduta do 1.º R. e a morte da vítima;
- Caso assim não se entenda, conforme os factos provados, a vítima não teve qualquer culpa, pelo que, são manifestamente irrazoáveis os motivos e a fundamentação da decisão recorrida, violando também os artigos 492.º e s.s. do Código Civil (responsabilidade pelo risco).
A decisão recorrida violou o princípio do valor da sentença transitada em julgado
3. A decisão recorrida julgou que os pedidos dos recorrentes não podem ser procedentes por os recorrentes não conseguir invocar e provar os factos culposos do condutor do veículo pesado, razão pela qual a responsabilidade do acidente de viação não pode ser imputada ao 1.º R., pelo contrário, a decisão recorrida entendeu que a condutora do ciclomotor F não observou as regras de trânsito rodoviário previstas nos artigos 14.º n.º 2 e 22.º n.º 1 do Código da Estrada, isto é, manter distância e regular a velocidade, nem atendeu ao estado da via, pelo que, chegou a concluir que a condução imprudente da condutora do ciclomotor F foi a causa da produção do acidente de viação e esta teve culpa.
4. A nosso ver, ao entender que os A.A. não conseguiram invocar nem provar os factos culposos do veículo pesado (1.º R.), a decisão recorrida incorreu manifestamente em erro e violou o princípio e o valor da sentença transitada em julgado previstos na lei.
5. De todo o conteúdo do acórdão podemos notar que a decisão recorrida ignorou completamente uma sentença condenatória criminal transitada em julgado (isto é, a sentença proferida no processo penal n.º CR3-10-0431-PCS que transitou em julgado em 6 de Setembro de 2011). Pode-se dizer que a decisão recorrida não ponderou nem examinou tal sentença.
6. Antes de interpor o presente recurso, os recorrentes já invocaram os referidos factos (nomeadamente invocaram que a sentença proferida pelo tribunal singular do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base de Macau (Processo n.º CR3-10-0431-PCS) condenou o 1.º R., C, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão pela prática, em autoria material, de 1 crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 134.º n.º 1 do Código Penal de Macau, em conjugação com o artigo 66.º n.º 1 do Código da Estrada, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 6 meses nos termos do artigo 48.º do Código Penal de Macau), apontaram também que a referida sentença transitou em julgado em 6 de Setembro de 2011 e mencionaram a referida certidão da sentença. Ao interpor o presente recurso, os recorrentes juntaram a certidão da referida sentença, isto é, o anexo 6 da petição inicial à petição inicial e aos autos (o teor da referida sentença se dá aqui por integralmente reproduzido).
7. A sentença criminal do Processo n.º CR3-10-0431-PCS que já transitou em julgado julgou que a conduta culposa do 1.º R., C, produziu o acidente de viação e determinou directamente a morte da condutora do ciclomotor F, e na sua fundamentação, a referida sentença transitada em julgado também referiu que na ocorrência do acidente de viação, o 1.º R. conduzia o veículo pesado e dado que o referido veículo pesado seguia carregado com muitas mercadorias, o taipal traseiro do referido veículo pesado não conseguiu ser fechado, durante o qual, o 1.º R. estacionou o referido veículo pesado na faixa de rodagem onde ocorreu o acidente. Apesar de bem saber que o dispositivo de carga e a sua disposição não podiam vir a cair sobre a via ou a oscilar por forma que tornasse perigoso e não adequado o seu transporte e também bem saber que não podia estacionar o veículo na faixa de rodagem, o 1.º R. ainda praticou as aludidas condutas, desrespeitando as regras de trânsito (artigos 35.º n.º 1 alínea a) e 38.º n.º 4 alínea b) do Código da Estrada), o que causou que a vítima, na condução do ciclomotor, embatesse na parte traseira direita do veículo pesado do 1.º R., provocou-lhe graves ferimentos após o embate que lhe causaram morte, pelo que, a conduta culposa do 1.º R. causou a produção do acidente de viação e determinou directamente a morte da vítima.
8. Porém, na presente acção de indemnização, a decisão recorrida referiu, na sua fundamentação, que os recorrentes não conseguiram invocar e provar os factos culposos do condutor do veículo pesado (1.º R.). Manifestamente, a fundamentação e a conclusão da decisão recorrida são erradas, violando o princípio fundamental da lei processual civil - valor da sentença transitada em julgado.
9. A decisão recorrida entendeu que os recorrentes não conseguiram invocar e provar a culpa do 1.º R. na condução do veículo pesado, tal entendimento, obviamente, não assiste a razão e existe contradição insanável e erro na sua fundamentação.
10. Apesar de a decisão recorrida ter referido o artigo 480.º do Código Civil, isto é, “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”, parece que a decisão recorrida não notou que antes de intentada a presente acção já existiu uma situação relevante, isto é, a presunção legal da culpa do 1.º R..
11. Antes de intentada a presente acção, a sentença do processo penal n.º CR3-10-043l-PCS já transitou em julgado (em 6 de Setembro de 2011), pelo que, a sentença do aludido processo penal é uma sentença transitada em julgado.
12. As causas e os factos básicos invocados pelos recorrentes no presente processo são idênticos aos da sentença transitada em julgado proferida no Processo n.º CR3-10-0431-PCS: “No dia 5 de Janeiro de 2007, pelas 11 horas, o 1.º R., C, conduzia o veículo automóvel pesado ME-19-XX, seguindo em circulação pela faixa de rodagem esquerda da Avenida da Amizade, na direcção do Terminal Marítimo de Hong Kong/Macau, à Rua dos Pescadores. Na altura, o veículo pesado seguia carregado com muitas mercadorias, o que não permitia fechar o taipal traseiro do mesmo, enquanto a vítima F conduzia o ciclomotor CM-XXX, circulando na mesma via, atrás do veículo pesado conduzido pelo 1.º R.. Ao chegar ao posto de iluminação 181C04 da Avenida da Amizade, o 1.º R. estacionou o veículo à berma do lado esquerdo e a vítima, na condução do ciclomotor, embateu na parte traseira do veículo pesado, caindo conjuntamente com o ciclomotor no chão, em baixo da parte traseira do veículo pesado. Posteriormente, a vítima veio a falecer por não resistir graves ferimentos resultantes do embate”.
13.O juízo dos factos, a fundamentação, a conclusão e a decisão constantes da sentença criminal transitada em julgado apontaram que na ocorrência dos factos, o 1.º R. conduzia o veículo pesado e dado que o referido veículo pesado seguia com muitas mercadorias, o taipal traseiro do referido veículo pesado não conseguiu ser fechado, durante o qual, o 1.º R. estacionou o referido veículo pesado na faixa de rodagem onde ocorreu o acidente. Apesar de bem saber que o dispositivo de carga e a sua disposição não podiam vir a cair sobre a via ou a oscilar por forma que tomasse perigoso não adequado o seu transporte e também bem saber que não podia estacionar o veículo na faixa de rodagem, o 1.º R. ainda praticou as aludidas condutas, desrespeitando as regras de trânsito (artigos 35.º n.º 1 alínea a) e 38.º n.º 4 alínea b) do Código da Estrada), o que causou que a vítima, na condução do ciclomotor, embatesse na parte traseira direita do veículo pesado do 1.º R., provocou-lhe graves ferimentos após o embate que lhe causaram morte, pelo que, a conduta culposa do 1.º R. causou a produção do acidente de viação e determinou directamente a morte da vítima.
14. A referida sentença criminal transitada em julgado julgou que no acidente de viação em causa, o desrespeito das regras de trânsito e as condutas culposas do 1.º R. causaram directamente à vítima F os graves ferimentos e a morte desta, pelo que, o 1.º R. deve assumir toda a responsabilidade. É de saber que na responsabilidade da culpa e da violação da lei penal, as exigências no âmbito penal são mais severas e elevadas do que as do no âmbito civil. Para nós, nunca podemos concordar com os fundamentos invocados pela decisão recorrida.
15. Os factos assentes e a decisão condenatória desta sentença penal transitada em julgado bastam para provar que as condutas do 1.º R. preenchem os requisitos legais da responsabilidade civil por factos ilícitos previstos no artigo 477.º do Código Civil, nomeadamente os factos ilícitos, a culpa e o nexo de causalidade.
16. Nos termos do artigo 74.º (sic) do Código de Processo Penal e dos artigos 578.º, 574.º e 576.º do Código de Processo Civil, a sentença penal constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis.
17. O artigo 74.º (sic) do Código de Processo prevê que:
“A sentença penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido de indemnização civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”.
18. O artigo 578.º do Código de Processo Civil consagra que:
“A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção”.
19. Ao abrigo do artigo 576.º n.º 1 do Código de Processo Civil, A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.
20. Pelo que, conforme os dispostos legais acima referidos, na presente acção de indemnização civil em que se impugna a matéria das relações jurídicas, o conteúdo e os factos da referida sentença penal transitada em julgado constituem, quer em relação ao 1.º R. do presente processo, quer ao 2.º ou ao 3.º R., presunção no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime.
21. Esta presunção de culpa há-de valer necessariamente para o estabelecimento de uma culpa cível, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, geradora de uma obrigação de reparação de um dano em virtude da prática de um facto ilícito (Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no Processo n.º 7/2007).
22. Quanto à responsabilidade civil ou responsabilidade pelo risco resultante dos factos ilícitos praticados pelo 1.º R. que deve ser assumida pelos 1.º, 2.º e 3.º R.R., nos termos dos artigos 490.º e 500.º do Código Penal, tais obrigações têm de ser responsáveis solidariamente, pelo que, a sentença transitada em julgado também produz efeitos em relação ao 2.º (sic.) e ao 2.º R.R ..
23.Pelo que, a não ponderação, por parte do acórdão recorrido, da decisão condenatória proferida contra o 1.º R. na sentença penal transitada em julgado e dos factos culposos deste, violou manifestamente o princípio e o valor da sentença transitada em julgado previstos no artigo 73.º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 574.º, 576.º e 578.º do Código de Processo Civil.
24.Manifestamente, ao entender que os recorrentes não conseguiram invocar e provar os factos culposos do 1.º R., a decisão recorrida incorreu em grave erro pois a sentença penal transitada em julgado já proferiu a decisão condenatória contra o 1.º R. e também provou que o 1.º R. teve condutas e factos culposos, pelo que, ao ponderar os factos do presente processo e provar os factos ilícitos do 1.º R., o tribunal colectivo a quo devia presumir a existência dos referidos factos, em vez de impugnar que os recorrentes não conseguiram invocar nem provar tais factos, pois a respectiva disposição legal já prevê a sua presunção nesta matéria.
25.Mais ainda, a decisão recorrida não ponderou nem ilidiu os factos provados na sentença penal transitada em julgado, nomeadamente não indicou novas provas ou factos para ilidir os factos da sentença transitada em julgado. A decisão recorrida negou tão-só os fundamentos de facto invocados pelos recorrentes, de forma a provar que não existe qualquer nexo de causalidade entre as condutas do 1.º R. e a morte da vítima. A decisão recorrida negou que a morte da vítima foi causada pelas condutas do 1.º R., isto, obviamente, revela que a decisão recorrida proferiu uma decisão diferente sobre o mesmo caso e os mesmos factos sem ilidir os factos provados nem indicar os fundamentos de facto e as provas para suportar a sua decisão.
26. A decisão recorrida apreciou novamente as condutas culposas que devem ser assumidas pelo 1.º R. e chegou a concluir que o 1.º R. não teve culpa, pelo contrário, entendeu que foi a vítima que causou a produção do acidente de viação, mesmo entendendo que a morte da vítima não tem nada a ver com as condutas do 1.º R.. Quanto a isso, afigura-se-nos que o juízo, os fundamentos e os motivos da decisão recorrida violam as regras da experiência comum da sociedade e os seus fundamentos também deturpam a verdade dos factos e violam o princípio de objectividade e o princípio da imparcialidade.
27. Após o trânsito em julgado da decisão que tem natureza processual, o caso julgado formal significa que a decisão sobre a relação material controvertida começa a produzir efeitos, ficando tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objecto do litígio. A decisão transitada em julgado que recai sobre a relação processual só tem força obrigatória dentro do processo, impedindo que o juiz modifique esta decisão do mesmo processo, sem prejuízo de o mesmo tribunal ou outro tribunal julgar em termos diferentes a mesma questão processual concreta em outro processo.
28. O caso julgado é uma das eficácias importantes da decisão. Uma vez tenha eficácia do caso julgado, a decisão toma-se imutável, com excepção do recurso extraordinário. Por outro lado, o caso julgado constitui o fundamento da excepção, evitando que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
29. Sem dúvida, a decisão recorrida incorreu em erro por violar um princípio (princípio do valor da sentença transitada em julgado), pelo que, a decisão recorrida é nula, devendo ser anulada ou revogada.
Violação do artigo 571.º n.º 1 alínea b) do Código de Processo Civil e erro na interpretação e na aplicação do nexo de causalidade previsto no artigo 477.º do Código Civil
30. A decisão recorrida julgou improcedentes os pedidos de indemnização deduzidos pelos A.A. por não se conseguir provar a culpa ou a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo pesado (1.º R.).
31. Os recorrentes entendem que existe contradição manifesta entre a decisão recorrida que julgou improcedentes os pedidos de indemnização por si deduzidos e os factos provados, e a decisão recorrida também não indicou expressamente os seus fundamentos de facto e de direito.
32. A decisão recorrida reapreciou as condutas culposas que o 1.º R. deve assumir no presente processo e chegou a concluir que o 1.º R. não teve culpa, pelo contrário, entendeu que foi a culpa da vítima que causou o acidente de viação e não existe qualquer nexo de causalidade entre a morte da vítima e as condutas do 1.º R.. A nosso ver, o juízo e os fundamentos da decisão recorrida violaram gravemente as regras de experiência comum da sociedade, existe contradição notória entre si e os factos provados, os seus fundamentos deturparam a verdade dos factos e a decisão recorrida carece de fundamentos de facto e de direito para suportar o seu juízo.
33.Quanto à questão da culpa do 1.º R. no acidente de viação em causa, a decisão recorrida entendeu o seguinte:
[os factos assentes na parte referente à carga só provaram que o veículo pesado seguia carregado com muitas mercadorias, o que não permitia fechar o taipal traseiro do mesmo, porém, não há qualquer facto que indicasse as mercadorias do veículo tinham caído no chão ou tinham oscilado, de forma que constituísse perigo para outros utentes da via. Caso seja verdade que as mercadorias caíram na via, causando que o ciclomotor não conseguisse travar e embatesse no veículo pesado, é claro que o condutor do veículo pesado viola o artigo 38.º n.º 4 alínea b) do Código da Estrada vigente na altura, porém, in casu, só se provou que o taipal traseiro do veículo pesado não foi fechado, tal facto não provocou ou levou a que o ciclomotor que seguia atrás embatesse na parte traseira do veículo pesado, pelo que, não se pode entender que o não fecho do taipal traseiro do veículo pesado foi a causa da produção do acidente de viação.]
[No caso sub judice, conforme os factos dados como provados, o 1.º R. deixou o veículo pesado estacionado próximo da berma do lado esquerdo da faixa de rodagem. Para além disso, in casu, não há outros factos que provem a ocorrência das circunstâncias previstas nos artigos 34.º e 35.º do Código da Estrada, pelo que, não se pode entender que as manobras do 1.º R. constituem as contravenções aí previstas.
Mais ainda, caso seja verdade que a paragem ou o estacionamento do veículo pesado do 1.º R. na faixa de rodagem constituísse a violação do aludido disposto legal do Código da Estrada, o 1.º R. só praticou a contravenção por proibição de estacionamento, porém, se tal conduta, ou seja, proibição de estacionamento, provocou necessariamente o embate entre o seu veículo e o veículo que seguia atrás?
É de saber que, para provar a culpa do autor da lesão, para além de o mesmo ter praticado conduta imprudente ou culposa, tal conduta tem de ser a causa adequada da produção do acidente de viação, ou seja, deve existir nexo de causalidade adequada entre a conduta e o acidente de viação.
Porém, no caso em apreço, este Tribunal não vislumbra tal nexo de causalidade.
De facto, a paragem de um veículo pesado na faixa de rodagem não provoca necessariamente o embate entre este e outro veículo que circula em outra faixa de rodagem, não existindo nexo de causalidade necessária entre si. Para alem da paragem, ainda é necessário existir outras circunstâncias, como por exemplo, a súbita paragem sem qualquer indicação que causa que o veículo que circula atrás não consiga evitar o embate ou constitui perigo para outros utentes, porém, in casu, com excepção do facto de paragem, não há outros factos que provem que a paragem foi a causa do embate.]
34. Obviamente, a decisão recorrida só analisou separadamente os dois factos relacionados com o acidente, não analisando de forma sintética e global todo o caso. A decisão recorrida só apreciou o incidente sob o ponto de vista do 1.º R., ignorando outros factos, bem como não analisou cuidadosa e sinteticamente o perigo e a gravidade causados a outros utentes da via pelas manobras de condução efectuadas pelo 1.º R., e em consequência, formou um juízo errado.
35. Nomeadamente ao abrigo do artigo 14.º n.º 1 do Código da Estrada, “o condutor, ao iniciar qualquer manobra, deve previamente assegurar-se de que o pode fazer sem causar perigo ou embaraço para o trânsito”. Ao saber perfeitamente que o taipal traseiro do veículo pesado não se encontrava fechado, o 1.º R. tinha dever de fechá-lo e só assim iniciou a sua manobra, porém, ele não fez qualquer manobra adequada, constituindo, assim, certo perigo para outros utentes da via.
36. O não fecho do taipal traseiro violou o artigo 38.º n.º 4 alínea b) do Código da Estrada: “não possa vir a cair sobre a via ou oscilar por forma que tome perigoso ou incómodo o seu transporte”. Apesar de não cair na via nenhuma mercadoria, o que é muito relevante é que o 1.º R. conduzia o veículo pesado que seguia carregado com muitas mercadorias, o que não lhe permitia fechar o taipal traseiro do referido veículo.
37. Este facto relevante provou que o 1.º R. não assegurou a carga adequada do veículo pesado por si conduzido, porém, os factos dados como provados referiram que o veículo pesado seguia carregado com muitas mercadorias, o que não permitia fechar o taipal traseiro do veículo pesado. Nesta circunstância, a nosso ver, para além de violar a regra da proibição de estacionamento, o 1.º R. também violou o artigo 38.º, n.º 3 do Código da Estrada, “Sem prejuízo das normas especialmente aplicáveis aos veículos que efectuem transportes especiais, é proibido o trânsito de veículos ou animais carregados por tal forma que possam constituir perigo ou embaraço para os outros utentes das vias públicas ou danificar os pavimentos, instalações, obras de arte e imóveis marginais das mesmas”.
38. Assim, o 1.º R. não assegurou a carga adequada do veículo por si conduzido, o que constituiu perigo para outros utentes da via, pelo que, nos termos das disposições legais, a sua circulação na via devia ser proibida, nomeadamente in casu, a vítima embateu no taipal traseiro do referido veículo pesado, o que exactamente revela que o não fecho do referido taipal traseiro constituía perigo quer para outros utentes quer para a vítima. No presente caso, um dos motivos que causaram à morte da vítima é exactamente o não fecho do taipal traseiro do referido veículo pesado conduzido pelo 1.º R que causou à vítima graves ferimentos após o embate no referido taipal traseiro e à morte dela.
39. Pelo que, manifestamente, ao entender que o mero facto de não fecho do taipal traseiro do veículo pesado não foi a causa do acidente de viação, a decisão recorrida não tem nenhuma força convincente e viola as regras da experiência comum da sociedade. Por outro lado, a decisão recorrida entendeu que o estacionamento do veículo pesado à faixa de rodagem esquerda onde ocorreu o acidente de viação por parte do 1.º R. não violou as contravenções da proibição de paragem ou estacionamento previstas no artigo 34.º e 35.º do Código da Estrada, porém, a nosso ver, tal fundamento da decisão recorrida não respeitou os factos provados e é errado. Da certidão da sentença penal transitada em julgado constante do presente processo pode-se confirmar que o 1.º R. parou o veículo na faixa de rodagem sinalizada com linha amarela contínua, onde, porém, é proibido parar.
40. Para isso, a decisão recorrida entendeu que mesmo que a manobra do 1.º R. constituísse a contravenção da proibição de estacionamento, ainda era necessário provar as condutas imprudentes e culposas do 1.º R. e nexo de casualidade adequada, e a decisão recorrida também indicou que na sua condução o 1.º R. não teve qualquer situação perigosa que podia constituir perigo para outros utentes e também não há outros factos que comprovassem que o estacionamento é a conduta causadora do embate.
41. Afigura-se-nos que existe uma grande divergência entre o entendimento da decisão recorrida e os factos provados. A fundamentação da decisão recorrida negou quase todos os principais factos provados, porém, tal como já foi acima referido, da sentença condenatória resulta a presunção no que toca ao perigo, à culpa, à imputabilidade e à ilicitude. Quanto à culpa e à ilicitude das condutas do 1.º R. em relação à vítima, sem dúvida e obviamente existe nexo de causalidade entre os referidos factos ilícitos e aos danos peticionados pelos recorrentes. Visto que esta matéria já foi alegada, não vamos repeti-la mais uma vez.
42. Aquele que, com factos ilícitos culposos, causar prejuízos, tem que assumir responsabilidade civil. A culpa é nexo de imputação do facto ao agente ou de relação do agente com o facto. A ilicitude relaciona o facto com o direito, ligando-o pelo lado externo ao agente enquanto a culpa liga o facto ao agente, pelo lado interior ou de um ponto de vista interno. Os factos culposos são os factos ilícitos ético-juridicamente censuráveis. Há culpa quando o agente, tendo consciência da ilicitude, se determina ou decide pela prática do facto danoso quando podia e devia abster-se o praticar.
43. Quanto à procedência ou não do pedido da responsabilidade civil, tem que verificar o nexo de causalidade entre o dano e a conduta, uma vez que na responsabilidade extracontratual, exige-se que uma pessoa assume a responsabilidade pelo dano de outrem, transferindo o dano do ofendido ao agente. Para tal finalidade, tem de comprovar que o dano foi causado pela conduta do agente e só assim o agente assume a responsabilidade da sua conduta. Caso o dano não tenha nada a ver com o agente, não deve ser imputado ao agente, razão pela qual a lei exige a existência do nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano.
44. Há responsabilidade por factos ilícitos quando uma pessoa pratica um facto com dolo ou mera culpa, violando ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, causando danos ao lesado, havendo uma relação de causalidade adequada entre o facto. Estes são os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos. A conduta do agente é aferida pelo padrão de conduta que um homem medianamente prudente e sensato, e o agente tem de aperfeiçoar constantemente a sua conduta, de forma que não perca a confiança em si depositada pela pessoa com que vive e deve fazer todo o esforço para agir com diligência exigível em cada situação concerta, senão, tem que assumir a responsabilidade resultante por dano. (Manuel M. E. Trigo, Lições de Direito das Obrigações, ao 3º ano do Curso de Direito, 1997-98, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, traduzidas por Chu Lam Lam, página 84)
45. Contudo, conforme o nosso entendimento, nomeadamente deve-se fazer uma análise global de todas as circunstâncias do presente processo, mesmo segundo o entendimento de qualquer pessoa em generalidade, podemos concluir que ao conduzir o veículo pesado, o 1.º R. praticou o referido facto (o veículo seguia carregado com muitas mercadorias, o que não permitia fechar o taipal traseiro) e estacionou o veículo no local onde é proibido estacionar (linha amarela continuada) fica à pouca distância da curva (só com uma distância equivalente aos cinco veículos, facto esse foi confessado pelo 1.º R. na sentença penal), porém, como é sabido, a via perto do Reservatório da Avenida de Amizade é uma via onde tem maior densidade e velocidade, e na ocorrência dos factos, o 1.º R. estacionou o seu veículo pesado na referida via, daí pode-se chegar ao raciocínio de que a conduta de estacionamento do seu veículo pesado por parte do 1.º R. constituía perigo para outros utentes. Para além disso, dado que o taipal traseiro do referido veículo pesado conduzido pelo 1.º R. não foi fechado, o referido embate provocou à vítima traumas físicos num determinado local do corpo devido às pressões do embate que determinaram a sua morte. Após uma análise cuidadosa e a raciocínio contrário, pode-se dizer que caso o 1.º R. não estacionasse o veículo na referida via, seria impossível acontecer o embate entre si e a vítima nem ocorrer a morte da vítima.
46. Quanto à culpa da condutora do ciclomotor (vítima), a decisão recorrida, na sua fundamentação, entendeu que o acidente de viação do presente processo foi causado pela vítima uma vez que ao conduzir o ciclomotor, para além de não atender ao estado da via de trânsito, a vítima também não manteve distância em relação ao veículo que a procedia nem regulou a sua velocidade, o que levou a que ela embatesse directamente na parte traseira direita do veículo que se encontrava estacionado à berma da faixa de rodagem.
47. Em primeiro lugar, os recorrentes entendem que o juízo da decisão recorrida foi formado com base nos factos não provados, nomeadamente a vítima não manteve distância em relação ao veículo que a precedia, nem atendeu ao estado da via de trânsito nem regulou adequadamente a velocidade, e in casu, a decisão recorrida também não indicou os factos pelos quais a vítima foi acusada da violação das regras de trânsito, e tais factos nunca foram provados no presente processo. Mais ainda, a sentença penal transitada em julgado não indicou que a vítima violou qualquer regra de trânsito no referido acidente de viação e no presente processo também não há qualquer prova que revela que a vítima F conduziu o ciclomotor com excesso de velocidade ou não manteve distância adequada em relação ao veículo a que precedia, pelo que, manifestamente, a fundamentação do acórdão recorrido não corresponde aos factos provados e existe contradição, pelo que, carece de factos e provas materiais para suportar a sua fundamentação. Obviamente, a fundamentação da decisão recorrida não corresponde aos factos e existem muitos erros no seu raciocínio.
48. Manifestamente, o acórdão recorrido enfermou do vício da contradição insanável da fundamentação.
49. No presente acidente de viação, a vítima F não praticou qualquer facto culposo nem teve qualquer responsabilidade. Dos factos provados resulta que a vítima não violou as regras de trânsito. Na ocorrência dos factos, a vítima passou pela Avenida da Amizade, conduzindo o ciclomotor para voltar à casa como sempre, e pouco depois de virar a curva perto do Reservatório, devido ao impedimento à visibilidade, ela não conseguiu ver que estava estacionado ali o veículo pesado conduzido pelo 1.º R. que seguia carregado com muitas mercadorias. Trata-se de uma situação imprevisível, e a nível jurídico, não podemos considerar tal situação como um dever que tem de ser cumprido pela vítima, pelo que, a vítima não teve culpa no presente acidente.
Existe manifestamente a relação de causalidade adequada/certa entre as condutas do 1.º R. e a morte da vítima
50. A decisão recorrida chegou à sua conclusão sem com base nos factos provados. Perante os factos dados como provados, a decisão recorrida violou as regras de experiência e aplicou conditio sine qua non, o que violou o princípio jurídico fundamental, isto é, “nexo de causalidade adequada”, nomeadamente o 1.º R. não efectuou manobra de condução prudente”, “estacionou o veículo num local onde é proibido estacionar” e “o 1.º R. não assegurou a carga adequada, levando a que o taipal traseiro não conseguisse ser fechado”. Quanto à aplicação do conditio sine qua non, em primeiro lugar, a decisão recorrida não ponderou globalmente todas as situações mas sim apreciou separadamente os factos, e em segundo lugar, a decisão recorrida entendeu que nenhuma das condutas culposas do 1.º R. constitui a causa da produção do acidente de viação, porém, a decisão recorrida nunca ponderou que caso o 1.º R. não estacionasse o veículo pesado no referido local ou o taipal traseiro do mesmo fosse fechado, é impossível ocorrer o referido sinistro. A nosso ver, a condução inadequada e a violação das regras de trânsito por parte do 1.º R. são a questão chave da ocorrência do acidente de viação.
51. O 1.º R. não cumpriu os deveres previstos no artigo 34.º n.º 1 alínea b), no artigo 35.º n.º 1 alínea a) e no artigo 38.º n.ºs 3 e 4 alínea b) do Código da Estrada, uma vez que o 1.º R. estacionou o veículo no local perigoso (via onde tem maior densidade e velocidade e estacionou o veículo à distância de 10 metros da curva perto do Reservatório da Avenida da Amizade). O impedimento da visibilidade na curva perto do Reservatório é um factor que provoca facilmente a ocorrência do acidente.
52. Conforme a jurisprudência do Tribunal de Segunda Instância, [o ofendido, que sem ter cumprido o dever imposto pelo artigo 41 º nº 2 do Código de Estrada, estacionou o seu veículo avariado num local perigoso, contribuindo à produção do acidente] (Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 10 de Julho, no Processo n.º 191/2002).
53. Na responsabilidade extracontratual - actividades perigosas presunção de culpa Sumário 1. Nos termos do dispostos nos artigos 487.º, n.º 1 e 493.º, n.º 2 do C. Civil (de 1967), em princípio, é ao lesado que incumbe a prova da culpa do lesante quanto aos danos que lhe imputa, assim apenas não sendo, se houver uma presunção de culpa, ou seja, se a lesão tiver sido provocada em consequência de uma actividade perigosa e se constatar que o lesante não empregou todas as providências adequadas para se evitar ou prevenir. 2. Assim, sendo de se considerar a actividade desenvolvida pela R. como “perigosa”, e resultando da matéria de facto que não empregou todos os meios adequados para evitar os danos que com aquela causou, procedente é a acção onde se peticiona a sua condenação na indemnização pelos mesmos (Acórdão datado de 25 de Março de 1004, no Processo n.º 279/2003. Relator: José M. Dias Azedo).
54. A nosso ver, o 1.º R. deve assumir todas as responsabilidades do presente acidente de viação, uma vez o 1.º R. estacionou o veículo à pouca distância da curva, constituindo perigo material para o veículo que o seguia, e o acidente de viação foi causado pela violação das várias regras de trânsito por parte do 1.º R., em vez de a vítima circular muito perto do veículo a que precedia ou não regular a velocidade. O 1.º R. bem sabia que é proibido parar e estacionar no referido local do sinistro e ele devia saber que tal local fica próximo da curva, o seu estacionamento constituiu perigo para a circulação de outros veículos que o procedia. Para além disso, a circunstância mais grave neste caso reside em que o taipal traseiro do veículo pesado por si conduzido não conseguiu ser fechado por o mesmo seguir carregado com muitas mercadorias (transporte em excesso), o que agravou os ferimentos da vítima após o embate que determinaram a morte desta.
55. Dos factos dados por provados e conforme as regras de experiência, pode-se presumir, a nível jurídico, a relação de causalidade adequada entre as condutas do arguido que causaram o acidente de viação e a morte da vítima, isto quer dizer que, não poderia ocorrer a morte da vítima caso o 1.º R. não violasse as regras de trânsito por parte do 1.º R. (incluindo: efectuou manobra imprudente, estacionou o veículo pesado na faixa de rodagem em causa, bem sabia que o dispositivo da carga e a sua disposição não podiam vir a cair sobre a via ou a oscilar por forma que tomasse perigoso ou inadequado o seu transporte e bem sabia que não podia estacionar o veículo na faixa de rodagem), pois as condutas do 1.º R. constituíram perigo para os condutores da faixa de rodagem, e conforme os factos provados, o 1.º R. não adoptou qualquer meio adequado para evitar os danos, caso não existisse a culpa e os factos ilícitos do 1.º R., é impossível ocorrer a morte da vítima F (cfr. a definição jurídica do nexo de causalidade previsto no artigo 557.º do Código de Processo Civil).
56. Pelo que, a decisão recorrida enferma do vício previsto no artigo 571.º n.º 1 alíneas c) e d) do Código de Processo Civil, existe erro na interpretação e na aplicação quanto ao conteúdo e à fundamentação da decisão recorrida e violou os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos previstos no artigo 477.º do Código Civil.
57. In casu, a culpa e os factos ilícitos do 1.º R. correspondem manifestamente aos cinco requisitos que devem ser cumulativamente verificados na responsabilidade extracontratual cível: 1) facto, isto é, acto voluntário ou omissivo; 2) Ilicitude do facto, isto é, violar o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios; 3) culpa, incluindo dolo e negligência; 4) dano, incluindo dano patrimonial e moral; 5) nexo de causalidade adequada entre os factos ilícitos e o dano.
58. Pelos acima expostos, os R.R. têm responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo que, têm de responder pelas indemnizações peticionadas pelos recorrentes.
59. Mesmo que o tribunal de recurso assim não entenda, entendemos que dos factos provados resulta que não existem quaisquer factos que comprovem que o presente acidente de viação foi causado pela vítima F, ela não é a culpada nem teve culpa. Caso o tribunal de recurso entenda que o 1.º R. não tenha culpa concreta no acidente, por mera cautela dos A.A., os R.R. têm obrigação de indemnização resultante da responsabilidade pelo risco nos termos do artigo 492.º e s.s. do Código Civil.
60. Nos termos do artigo 499.º n.º 1 do Código Civil, “Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em relação a um deles, e nenhum dos condutores tiver culpa no acidente, a responsabilidade é repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos houver contribuído para os danos; se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem culpa de nenhum dos condutores, só a pessoa por eles responsável é obrigada a indemnizar”, e outros responsáveis, comitentes previstos no artigo 493.º do Código Civil e aqueles que tiver a direcção efectiva previstos no artigo 496.º do Código Civil têm responsabilidade pelo risco.
61. Assim sendo, pelos menos, os R.R. devem assumir a responsabilidade pelo risco do veículo/responsabilidade objectiva, sendo obrigados a indemnizar.
Pelos acima expostos, solicita que o Venerando Tribunal Colectivo admita o presente recurso, julgue procedentes todos os fundamentos de facto e de direito invocados na presente petição inicial e decida os seguintes:
1. Julgue que os fundamentos de facto e de direito da decisão recorrida violam o artigo 73.º do Código de Processo Penal, e em conjugação com a aplicação do princípio do valor da sentença transitada em julgado previstos nos artigos 574.º, 576 e 578.º do Código de Processo Civil, anule a decisão recorrida, e nos termos do artigo 674.º n.º 4 do vigente Código de Processo Civil, profira nova decisão conforme os factos provados e os elementos constantes dos autos, nomeadamente conforme os pedidos de indemnização civil deduzidos pelos recorrentes na petição inicial; caso assim não se entenda:
2. Julgue que a decisão recorrida incorreu na falta, omissão, repetição, contradição e erro na parte da matéria de facto, devendo anulá-la nos termos do artigo 629.º n.º 4 do Código de Processo Civil, mandando o novo julgamento conforme os elementos e factos provados constantes dos autos. Caso assim não se entenda,
3. Julgue que a decisão recorrida violou o artigo 562.º n.os 1 e 2 do vigente Código de Processo Civil, devendo a mesma ser revogada e ser tratada adequadamente, e
4. Condene os R.R. no pagamento das custas processuais e dos honorários do mandatário judicial do presente recurso».
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A Seguradora, “Companhia de Seguros da E (Macau) S.A.”, respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
«1. Não se vislumbra em que contexto o disposto no art. 629º, nº 4 do CPC possa ser aplicável in casu, e em bom rigor, os Recorrentes também não o explicam;
2. O processo-crime e a decisão nele proferida não foi matéria seleccionada nos autos, conforme resulta do despacho saneador de fls. 453 a 461, do qual os Recorrentes não reclamaram;
3. A matéria relacionada com o referido processo-crime não foi matéria que tivesse sido discutida nos presentes autos nunca podendo, então, o Tribunal tomar qualquer decisão nos presentes autos com fundamento em factos que não foram discutidos nos autos;
4. A sentença criminal não deverá sobrepor-se a tudo quanto foi discutido e apreciado pelo Douto Tribunal a quo, mas os Recorrentes parecem querer fazer-se valer de um efeito de caso julgado da sentença criminal que a lei jamais lhe atribui;
5. Só há caso julgado quando ocorra a repetição de uma causa depois de uma outra idêntica quanto aos sujeitos, causa de pedir e pedido, ter sido decidida por sentença transitada em julgado o que não sucede no causo dos autos;
6. os Recorrentes confundem a noção de caso julgado com eficácia probatória extraprocessual da sentença penal condenatória transitada em julgado a que alude o artigo 578º do CPC;
7. A condenação definitiva do 1º Réu no processo penal e o enquadramento jurídico que o Tribunal fez dos factos tidos por provados nesse processo, não se pode impor à aqui Recorrente, que dele não foi parte, o que por si só inviabiliza o caso julgado da referida sentença penal em relação à ora Recorrida;
8. Quanto muito a sentença penal produzira em relação aos presentes autos presunção no que no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e elementos do tipo legal, presunção essa que nos termos do referido preceito legal é ilidível;
9. Face à prova produzida em julgamento e aos factos dados como provados nos presentes autos, a ora Recorrida logrou demonstrar cabalmente que o acidente de viação em questão ocorreu, não por culpa do 1º Réu, mas sim da infeliz vítima;
10. A fundamentação que afasta o nexo causal entre os supra citados comportamento e o acidente é clara;
11. É por demais consabido, porquanto a Jurisprudência é unânime nesse sentido, que nulidade da sentença por falta de fundamentação só se verifica quando a falta fundamentação é absoluta;
12. Nos autos é manifestamente evidente que a Douta decisão recorrida está fundamentada, tanto mais que os Recorrentes perceberam muito bem o sentido dessa mesma fundamentação; apenas não concordam com o seu resultado, mas isso é coisa bem diferente de nulidade de sentença;
13. No nexo de causalidade entre o facto e o dano, a nossa lei adoptou a doutrina da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão;
14. In casu, temos que para além de um veículo parado na berma esquerda, numa recta com boa visibilidade, num dia de bom tempo, e de uma porta de carroçaria aberta, nada mais tinha o Tribunal de onde pudesse retirar as conclusões que os Recorrentes ora exigem;
15. Andou, assim, bem o Tribunal a quo ao decidir que um automóvel pesado parado numa berma, ainda que com a porta da carroçaria aberta, só por si, não é susceptível de causar o embate dos veículos que o precedem;
16. Teria sido necessário, como bem entendeu o Tribunal, que se tivessem provado outras circunstâncias para estabelecer o nexo causal entre a paragem do veículo e o embate, como por exemplo, provar que o veículo automóvel parou repentinamente ou que não sinalizou a paragem, o que não sucedeu, e nem tão pouco foi alegado;
17. Seguindo o ciclomotor atrás do veiculo pesado - conforme provado na alínea C) da matéria de facto assente - e tendo em conta as circunstâncias do local do acidente - o local do acidente tinha boa visibilidade e era precedido de uma recta sem qualquer obstáculo e fazia bom tempo (cfr. alínea G) da matéria de facto assente - a condutora do ciclomotor não cumpriu com as obrigações a que estava adstrita violando os artigos 14º nº 2 e 22º, nº 1 do Código da Estrada;
18. A infeliz vitima ao violar as sobreditas regras, quando podia e devia ter agido de outro modo, procedeu de forma reprovável, sendo a sua conduta passível de um juízo de censura;
19. Tendo ficado assente que primeiramente o 1º Réu parou o ME (cfr. alínea D) da matéria de facto assente) e depois o estacionou encostado à berma esquerda (cfr. alínea E) da matéria de facto assente), fácil se torna concluir que o mesmo não parou bruscamente e que se a infeliz vitima circulasse mantendo a distância de segurança necessária e circulando a velocidade adequada a evitar acidentes teria tido tempo suficiente para reduzir a sua velocidade e evitar o embate;
20. É assim evidente que o acidente se ficou a dever unicamente a conduta temerária da infeliz vitima, e que apenas esta deu causa ao acidente, nada havendo a apontar portanto à decisão ora recorrida;
21. Tendo em conta que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva da infeliz vitima, excluída está a responsabilidade pelo risco a que os recorrentes apelam porquanto não tendo o Tribunal a quo tido quaisquer dúvidas sobre a culpa do acidente, atribuída em exclusivo à actuação da infeliz vítima, será de afastar o regime a que alude o art. 499º do CC;
22. A sentença recorrida não merece assim qualquer reparo pelo que deverá ser confirmada!».
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«Factos provados:
- No dia 5 de Janeiro de 2007, pelas 11 horas, ocorreu um acidente em que intervieram o veículo automóvel pesado ME-XX-XX, conduzido pelo 1.º R., e o ciclomotor CM-XXX, conduzido por F. (alínea A) da Matéria de Facto Assente)
- No dia e hora referidos em A) o ME seguia em circulação pela faixa de rodagem esquerda da Avenida da Amizade, na direcção do Terminal Marítimo de Hong Kong/Macau, à Rua dos Pescadores. (alínea B) da Matéria de Facto Assente)
- No mesmo dia, hora e local, a F seguia na condução do CM, atrás do ME. (alínea C) da Matéria de Facto Assente))
- Perto do posto de iluminação 181C04, daquela Avenida, o 1.º R parou o ME. (alínea D) da Matéria de Facto Assente)
- (…) estacionando-o encostado à berma esquerda da dita avenida. (alínea E) da Matéria de Facto Assente)
- A F na condução do CM embateu na parte traseira direita do ME, caindo conjuntamente com o motociclo (sic). (alínea F da Matéria de Facto Assente)
- O local do acidente tinha boa visibilidade e era procedido de uma recta sem qualquer obstáculo. Fazia bom tempo. (alínea G) da Matéria de F acto Assente)
- A data do acidente o ME estava registado em nome do 2.º R - doc. fls. 31. (alínea H) da Matéria de Facto Assente)
- Na data do acidente a responsabilidade civil emergente de acidente de viação com intervenção do veículo ME-19-21 estava transferida para a 3.a R. através de contrato de seguro válido e eficaz e até ao limite de 5.000.000,00 MOP, tudo conforme doc. de fls. 107, cujo teor aqui se reproduz para os legais e devidos efeitos. (alínea I) da Matéria de Facto Assente)
- Por via do embate descrito a F viria a falecer nesse mesmo dia pelas 11.40 horas - certidão de fls. 25. (alínea J) da Matéria de Facto Assente)
- Os AA. são pais da referida F - certidão de fls. 25. (alínea K) da Matéria de Facto Assente)
- A expectativa de vida em Macau é de 82 anos. (alínea L) da Matéria de Facto Assente)
Base instrutória:
- O ME seguia carregado com mercadorias. (resposta ao artigo 1.º da Base Instrutória)
- (…) o que não permitia fechar a porta traseira da carroçaria respectiva. (resposta ao artigo 2.º da Base Instrutória)
- Depois do acidente a F foi conduzida para o HCSJ. (resposta ao artigo 3.º da Base Instrutória)
- Os A.A. pagaram pelos tratamentos feitos para salvar a F a quantia de 760,00 MOP. (resposta ao artigo 4.º da Base Instrutória)
- Os A.A. pagaram pelo seu funeral da sua filha a quantia de 40.000,00 MOP. (resposta ao artigo 5.º da Base Instrutória)
- A F antes do acidente tinha saúde, era alegre. (resposta ao artigo 8.º da Base Instrutória)
- Após ter terminado do secundário, a F começou a trabalhar. (resposta ao artigo 9.º da Base Instrutória)
- Quando aconteceu o acidente, a F trabalhava no casino, Wynn Macau como croupier e auferindo 14.300,00 MOP. (resposta ao artigo 10.º da Base Instrutória)
- A partir de 1 de Fevereiro de 2011, o casino Wynn aumentou o salário dos seus trabalhadores em 6 por cento por ano. (resposta ao artigo 11.º da Base Instrutória)
- Entre 2004 e 2010 a inflação em Macau aumentou anualmente entre 0,98 a 8,61 por cento, tudo conforme com o doc. de fls. 61 junto aos autos. (resposta ao artigo 12.º da Base Instrutória)
- Se a F não tivesse falecido trabalharia até aos 65 anos. (resposta ao artigo 13.º da Base Instrutória)
- A Lai Chan vivia com os A.A. e contribuía a título de ajuda com a quantia de 6.000,00 MOP mensais. (resposta ao artigo 14.º da Base Instrutória)
- As dores e o receio de perder a vida foram aumenta do até que ocorreu o falecimento (resposta ao artigo 19.º da Base Instrutória)
- A causa da morte da F foi a ruptura do fígado, danos nos pulmões e no rim direito, e consequente hemorragia. (resposta ao artigo 20.º da Base Instrutória)
- Os A.A. tinham muito amor pela F (resposta ao artigo 21.º da Base Instrutória)
- E esta era-lhes muito dedicada e respeitadora. (resposta ao artigo 22.º da Base Instrutória)
- Antes da morte de F, a família composta por seis pessoas era muito feliz e alegre. (resposta ao artigo 23.º da Base Instrutória)
- Os A.A. sofreram e sofrem com a morte da F. (resposta ao artigo 24.º da Base Instrutória)
- Choraram e choram sempre que da sua morte se lembram. (resposta ao artigo 25.º da Base Instrutória)
- (…) não conseguindo dormir durante toda a noite. (resposta ao artigo 26.º da Base Instrutória).
Acrescenta-se ainda o seguinte facto:
No Processo-crime nº CR3-10-0431-PCS, foi proferida sentença, transitada em 6/09/2011, que condenou o 1º R na pena de 1 ano e 2 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 134º, nº1, do CP, cuja execução fora suspensa pelo período de 1 ano e seis meses (fls. 401-415).
***
III – O Direito
1 – Recorde-se que a causa de pedir da acção assenta na ocorrência de um acidente de viação, na sequência do qual a malograda condutora de um ciclomotor, de nome F, filha dos AA, viria a falecer por ter embatido no veículo pesado conduzido pelo 1º R., mas pertencente ao 2º R, e cuja responsabilidade civil por danos causados em acidentes de viação tinha sido transferida para a 3ª Ré.
A sentença recorrida absolveu os RR do pedido, por, face aos factos provados, não ser possível assacar qualquer culpa ao condutor do veículo pesado.
Discordam dela, agora, os AA.
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2 - Os recorrentes acham que a sentença padece da nulidade dos art. 571º, als. b) e c), do CPC.
Não têm razão. A sentença especificou os fundamentos de facto e de direito que justificaram a decisão absolutória.
Podem os recorrentes entender que a sentença deveria ter efectuado um exercício mais completo de decomposição dos factos, analisando o perigo e a gravidade da condução do 1º R, ligando-a ao disposto nos arts. 14º e 38º, do Código da Estrada.
Só que essas circunstâncias, mesmo não expressamente afloradas, não conferem a nulidade à sentença, na medida em que “Só a falta absoluta de fundamentos, e não a justificação deficiente, medíocre ou errada, é que determina a nulidade da sentença ou despacho.”1.
De qualquer maneira, e em nossa opinião, a sentença disse que inexistem factos que provem a violação dos arts. 34º e 35º do CE e que, mesmo que a paragem do veículo pesado constituísse contravenção, isso não teria por efeito necessário a ocorrência do acidente. A sentença fez, portanto, uma análise global do acidente, produziu considerações sobre a causalidade e extraiu a sua conclusão acerca do modo como ele ocorreu e sobre a culpa na sua produção. Se não tivesse tomado algum elemento que pudesse conduzir a outro resultado decisório, isso só poderia significar erro de julgamento, mas não nulidade de sentença.
Por outro lado, e como também teremos oportunidade de ver, o facto de a sentença não ter ponderado o valor da sentença condenatória do 1º réu no processo-crime não constitui motivo de nulidade, por não ser uma questão essencial que devesse merecer pronúncia expressa. Mesmo sem tal ponderação, o que releva é a análise que ela fez dos factos neste julgamento cível. Saber se o fez devidamente, isso é já questão de fundo.
*
2.1 - E o mesmo se diz em relação à alínea c), do nº1, do art. 571º, do CPC (cfr. conclusão 41ª).
Na verdade, não encontramos na sentença nenhuma contradição entre os fundamentos e a decisão propriamente dita.
Como adiante melhor se verá, o tribunal cível poderia chegar a resultado factual diferente daquele a que chegou o tribunal criminal a partir de um julgamento para o qual contribuíram terceiros que não tinham estado presentes no processo-crime. Isso não representa nenhuma contradição, para efeito da alínea c), do nº1, do art. 571º do CPC. O que há é uma prova que diverge da produzida eventualmente no processo penal, mas sem que isso possa perigar o efeito de caso julgado.
Mais uma vez somos obrigados a dizer: se os recorrentes pretendem encontrar alguma razão que os leve a discordar do julgamento efectuado pela 1ª instância, isso deve ser representado por um erro de julgamento que conduzirá à revogação da sentença, e não à sua nulidade.
Improcede, pois, esta alegação de nulidade da sentença.
*
3 – Fora disso, os AA imputam à sentença a violação dos arts. 73º e do CPP, em conjugação com o disposto nos arts. 574º, 576º e 578º do CPC. Mas, sem razão, como se verá.
Na sua óptica, deveria ser atendida a sentença proferida no processo penal nº CR3-10-0431-PCS, transitada em 6/09/2011- que condenou o 1º R na pena de 1 ano e 2 meses de prisão pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 134º, nº1, do CP.
Ora, antes de mais nada, cumpre referir que, segundo o art. 578º, do CPC, a condenação definitiva no processo penal, em relação a terceiros, constitui simplesmente presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal em quaisquer acções cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção. Ou seja, a sentença penal tem uma força intrínseca que se esgota no âmbito do processo onde é proferida, por aí se ficando a dimensão do respectivo julgado. Relativamente aos demais campos não penais, a sua força fica agora esbatida, limitada a simples presunção “iuris tantum”, ilidível, portanto, face ao disposto nos arts. 578º e 579º, do CPC2.
Quer isto, então, dizer que o efeito “erga omnes” resultante de uma condenação em processo penal encontra-se limitado no que aos terceiros respeita. Assim é que, se o arguido condenado num processo-crime não pode voltar a discutir o caso julgado criminal em qualquer processo cível onde se aprecie a sua culpa3, já essa limitação a não têm os terceiros, aos quais é reconhecido o poder de ilidir a presunção que emerge do art. 578º citado, demonstrando que os factos se passaram de uma maneira diferente da apurada no processo-crime, ou seja, transformando a absoluta e total indiscutibilidade da decisão penal em mera presunção da existência do facto e respectiva autoria.
Assim, a sentença penal que condena a segurada não constitui caso julgado em relação à seguradora, na sua qualidade de terceiro em processo cível4. Aliás, rigorosamente o problema não é, sequer, de eficácia do caso julgado da sentença penal, mas da sua eficácia probatória no âmbito de uma acção cível.
Logo, se os 2º e 3ª réus não foram parte no processo-crime, e são terceiros para efeitos do art. 578º do CPC, então nada obstava a que pudessem fazer no âmbito dos presentes autos uma prova que contrariasse a referida presunção. Dito por outras palavras, por essa via pode o processo cível adquirir factualidade diferente da que foi adquirida no processo-crime.
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3.1 - É claro que, face à presunção que se retira do art. 578º do CPC, à partida deixaria de fazer qualquer sentido apelar à primeira parte do art. 480º, nº1, do CC, segundo o qual “É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”. Como observa LEBRE DE FREITAS: “provada, no processo penal, a prática dum acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade”5.
Portanto, a sentença aligeirou o pensamento do seu autor quando disse que os AA não conseguiram provar a culpa do condutor do veículo pesado, uma vez que eles tinham a seu favor a presunção do art. 478º. Assim, deveriam ser os “terceiros” demandados na acção (2ª R e 3ª ré, seguradora) a ilidir a presunção.
Mas, independentemente desse deslize da fundamentação da sentença, o que verdadeiramente releva é a objectividade dos factos. Quer dizer, para lá da forma como a fundamentação foi utilizada pelo TJB, o que se retira da expressão utilizada na sentença é que a matéria de facto provada afastou a culpa do 1º R da acção na produção do evento. E essa prova só pode ter sido obtida com o contributo dado pelos 2º e 3º RR da acção (terceiros, para efeitos do art. 578º cit.).
Neste sentido, não podemos acolher a fundamentação do recurso, segundo a qual a sentença teria violado “o princípio e o valor da sentença transitada em julgado previstos nos arts. 73º do Código de Processo Penal em conjugação com os artigos 574º, 576º e 578º e do Código de Processo Civil”.
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4 – Depois, entendem os recorrentes que os factos provados são bem reveladores dos pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, designadamente o nexo de causalidade previsto no art. 477º do CC. E ao não o reconhecer, a sentença teria violado regras de experiência, além de aplicar a “conditio sine qua non ”.
Em primeiro lugar, não percebemos a intenção dos recorrentes quando invocam a “conditio sine qua non”. Tomaremos, no entanto, a invocação como se com ela pretendessem sustentar, no caso, a verificação do nexo de causalidade adequada, ao contrário do que o decidiu a sentença recorrida.
Ora, quanto a isso, estamos em sintonia com a sentença. Realmente, nenhum dado de facto provado nos autos demonstra que o acidente se deveu a culpa do 1º réu e que a sua conduta foi a causa directa do sinistro.
Vejamos.
Tudo se passou pelas 11,00 horas da manhã. O tempo estava bom e havia boa visibilidade. O condutor do veículo pesado estacionou-o junto à berma da Av. da Amizade perto do poste de iluminação nº 181C04 na faixa esquerda. A condutora do ciclomotor seguia atrás do veículo pesado e, após a paragem deste, foi embater na sua parte traseira. O local do acidente era precedido de uma recta sem qualquer obstáculo.
Como é bem sabido, qualquer veículo que segue na via atrás de outro deve fazê-lo em velocidade tal que se adapte às condições da via, ao veículo, às condições atmosféricas, à intensidade do tráfego e outras, de modo a fazê-lo parar no espaço livre e visível à sua frente e evitar qualquer obstáculo que lhe possa surgir em condições normalmente previsíveis (art. 22º, nº1, do CE vigente à data do acidente).
Além disso, e segundo o art. 14º, nº2, do CE, o condutor deve manter em relação ao veículo que o precede a distância necessária para evitar qualquer acidente em caso de súbita diminuição de velocidade ou paragem daquele veículo.
Ora, não sabemos se a paragem foi súbita (nada disso foi provado, nem sequer no processo-crime), nem se a condutora do ciclomotor circulava afastada ou próxima do veículo pesado. O que sabemos é que embateu na traseira deste. Isso, porém, não basta para dizer que o embate foi devido a comportamento rodoviário culposo do condutor do veículo pesado. O facto de se ter imobilizado o pesado não constitui necessariamente uma conditio sine qua non para o acidente. Ou seja, o estacionamento, mesmo se em local proibido, quando muito dá lugar a uma contravenção, mas por si só não é causa necessária de acidente, desde que os condutores dos veículos que o sigam se rodeiem das cautelas necessárias para evitar o embate (distância adequada entre veículos, velocidade, atenção).
Também não se pode dizer que para o embate tivesse contribuído, em termos de causalidade adequada, o modo como o veículo da frente tinha a sua carga acondicionada. Sabemos que ele ia carregado de mercadorias e que a porta traseira da carroçaria não iria bem fechada. Sim, e depois? Em que é que isso contribuiu para o acidente?
Rigorosamente, em nada, face aos factos provados. É que não se provou que a carga tivesse caído para a via e que, por via disso, a condutora tivesse entrado em desequilíbrio e embatido na traseira do veículo. Da mesma maneira se não provou que o simples acondicionamento da carga fosse a causa ou a razão pela qual a condutora do ciclomotor tivesse embatido na traseira da viatura pesada. Portanto, nenhum elemento de ligação entre o acidente e o acondicionamento da mercadoria foi demonstrado. Logo, a resposta ao art. 2º da BI é, para o caso, absolutamente inerte ou irrelevante para a produção do acidente. Ou seja, não é causal do acidente a forma como era transportada a mercadoria.
Assim, se o embate ocorreu isso se terá devido a uma das seguintes razões, eventualmente: a) ou a condutora estava muito próxima do veículo da frente, o que lhe não permitiu imobilizar o ciclomotor no espaço visível à sua frente; b) ou circulava a velocidade que lhe não permitia travar a tempo; c) ou o sistema de travagem estava avariado; d) ou circulava com falta de atenção ao tráfego. Alguma destas causas terá estado provavelmente na origem do acidente.
Independentemente disso, e em suma, os elementos apurados no processo cível afastam a culpa e o nexo de causalidade entre a imobilização do veículo conduzido pelo 1º réu e a produção do acidente, nem as regras da experiência convocadas pelos recorrentes servem para suprir a falta de factos.
Podemos, então, dizer que neste processo cível os terceiros ilidiram a presunção que resulta do art. 578º do CPC. E, como assim, não estando verificados todos os elementos da responsabilidade civil por factos ilícitos (art. 477º, do CC), a sentença da 1ª instância tem que ser confirmada.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
TSI, 05 de Novembro de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Ac. TSI, de 15/12/2009, Proc. nº 1027/2009
2 Cfr. Ac. TUI, de 30/11/2007, Proc. nº 10/2006; Ac. STA, de 3/06/2004, Proc. nº 047722
3 Ac. RE, 29/04/2004, Proc. nº 171/04
4 Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, pág.691; Ac. STJ, de 23/05/2000, Proc. nº 00A397, in BMJ nº 497, pág. 298;
5 Código de Processo Civil anotado, II, pág. 691.
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