Proc. nº 572/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 10 de Setembro de 2015
Descritores:
-Subsídio de conduta
-Subsídio de posto
-Subsídio de guarda de casino
SUMÁRIO:
I. Quando os subsídios de “alimentação”, de “conduta”, “rank allowance” e de “guarda de casino” não estiverem previstos expressamente com força vinculativa no clausulado dos contratos de prestação de serviços celebrados entre a “B” e a “C, Lda”, não serão de conceder se uma das cláusulas expressamente previr que a sua atribuição dependerá de acordo individual entre entidade patronal e trabalhador no quadro da autonomia negocial privada.
II. Assim, mesmo que os valores de cada um dos subsídios esteja previsto em anexo aos referidos contratos, isso não significa que sejam de atribuição automática e necessária.
III. O reconhecimento judicial destes subsídios ao autor trabalhador depende da alegação e prova por parte deste de ter acordado individualmente com a Ré o seu pagamento e as condições da sua atribuição.
Proc. nº 572/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A, casado, de nacionalidade nepalesa, titular do Passaporte do Nepal n.º …, emitido pela autoridade competente do Nepal, em 28 de Março de 2013, com residência…, Macau, vem deduzir contra:
B (MACAU) - SERVIÇOS E SISTEMAS DE SEGURANÇA LIMITADA, com sede na…, Macau,
acção de processo comum do trabalho, ---
pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de Mop$ 130.632,00, a título de diferenças salariais (40.872,00), subsídio de alimentação (8.550,00), subsídio de conduta (5.700,00), subsídio de guarda de casino (10.920,00), trabalho prestado em dia de descanso semanal (43.060,00) e por trabalho prestado em dia de descanso compensatório (21.530,00).
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Foi na oportunidade proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré “B” a pagar ao autor a quantia global de Mop$ 100.448,00 a título de diferenças salariais (40.872,00), subsídio de alimentação (4.800,00), subsídio de conduta (3.200,00), subsídio de guarda de casino (10.920,00), descansos semanais não gozados (20.328,00) e trabalho prestado em dias de descanso compensatório (20.328,00).
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É contra essa sentença que ora se insurge a ré da acção através do presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«a) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços;
b) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente;
c) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador;
d) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho;
e) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho;
f) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3º e 9º;
g) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil;
h) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta;
i) As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como “contratos de prestação de serviços”;
j) Deles é possível extrair que a Sociedade “contratou” trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.;
k) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros;
l) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro;
m) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contraprestação de obrigações;
n) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro;
o) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro;
p) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços;
q) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro;
r) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário;
s) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º, nº 2 do Código Civil (princípio res inter alias acta, aliis neque nocet neque prodest);
t) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal;
u) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse;
v) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A., sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede a qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro;
w) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A., de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos;
x) Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º, nº 2 e 437º do Código Civil;
y) Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A. para reclamar quaisquer “condições mais favoráveis” emergentes destes contratos;
z) Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais;
aa) Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A. qualquer direito a título de subsídio de alimentação, de conduta ou de guarda de casino;
bb) Por outro lado, os contratos de prestação de serviços aprovados pelos Despachos nºs 00113/IMO/SEF/2004 e 00830/IMO/SEF/2005 não contêm qualquer estipulação que confira ao A. o direito a receber tais subsídios, remetendo estes para o acordo individual entre as partes, sobre o qual nada foi alegado ou provado;
cc) Ao que acresce que as listas juntas aos contratos em causa não passam de descrições exemplificativas de subsídios, alguns deles de valor variável, e que não têm a virtualidade de derrogar o que no clausulado dos pertinentes contratos se estipula sobre esta matéria.
Nestes termos, e nos mais de Direito, revogando a decisão recorrida nos termos e com as consequências expostas supra, farão V. Exas a costumada JUSTIÇA. ».
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O autor da acção respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões alegatórias:
«1. E entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência de Macau que o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, era um diploma com natureza e intencionalidade assumidamente normativa imperativa, destinado a definir um conjunto de requisitos tidos como mínimos e indispensáveis à contratação de trabalhadores não residentes;
2. A Recorrente tão-só poderia celebrar contratos com trabalhadores não residentes desde que o fizesse ao abrigo do respectivo «despacho de autorização governamental», tendo por base as condições tidas por mínimas constantes do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, as quais, por seu turno, se deveriam incorporar no clausulado do «contrato de prestação de serviços» a celebrar entre a entidade interessada (in casu a Recorrente) e uma entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (in casu, a C, Lda.);
3. O Recorrido nunca poderia ter sido admitido como trabalhador da Recorrente (ou de qualquer outro empregador na RAEM) por via de um contrato que não tivesse obedecido ao disposto nos números 2, 3 e 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, maxime por via de um «contrato individual de trabalho», porquanto a contratação de trabalhadores não residentes estava sujeita a um regime especial e imperativo que em caso algum poderia ser derrogado pelas partes, excepto para consagrar condições de trabalho mais favoráveis ao trabalhador;
4. Por outro lado, constitui igualmente jurisprudência assente ao nível do Tribunal de Segunda Instância que os Contratos de Prestação de Serviços concluídos entre a Recorrente e a C Limitada, e ao abrigo dos quais os trabalhadores não residentes (e, in casu, o ora Recorrido) eram autorizados a prestar trabalho, juridicamente se configuram como contratos a favor de terceiros;
5. Basta ver que do próprio conteúdo literal dos referidos contratos resulta que os mesmos - na sua grande totalidade - não se destinavam a regular as relações jurídicas dos outorgantes mas antes de terceiros, maxime dos trabalhadores que seriam recrutados pela C Lda. e que posteriormente eram cedidos à Recorrente (de entre os quais se inclui o ora Recorrido);
6. Assim, tratando-se de um «contrato a favor de terceiro» e repercutindo-se o mesmo na relação jurídico-laboral existente entre a Recorrente e o Recorrido é, pois, mais do que líquido que o beneficiário da promessa (in casu, o Recorrido) adquire o(s) direito(s) - ou parte dele(s) constantes do mesmo contrato independentemente de aceitação (art. 438.º, n.º 1 do CCivil de Macau) e, em consequência, pode exigir o seu cumprimento directamente do obrigado (in casu, da Recorrente), tal qual acertadamente concluiu o Tribunal a quo;
7. De onde, concluído que o Contrato de Prestação de Serviço celebrado entre a Recorrente e a C Limitada juridicamente se qualifica corno sendo um Contrato a favor de terceiros e, deste modo, repercutindo-se na relação jurídico-laboral existente entre a Recorrente e o Recorrido é, pois, forçoso concluir que o Recorrido terá direito a reclamar todas as condições que se mostrem mais favoráveis dos mesmos emergentes e, em concreto, reclamar e receber os montantes devidos a título de diferenças salariais, subsídio de alimentação, subsídio de conduta e de guarda de casino, tal qual, aliás, acertadamente concluiu o Tribunal a quo.
Nestes termos e nos de mais de Direito, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., devem as presentes Alegações de Resposta serem aceites e o Recurso apresentado pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente, assim se fazendo JUSTIÇA!».
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Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A Sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«1) A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores. (A)
2) Desde o ano de 1992, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior», entre outros. (B)
3) Entre 11/11/2004 a 20/08/2007, o Autor esteve ao serviço da Ré, exercendo funções de “guarda de segurança em Casino (Casino Security Guard)”, enquanto trabalhador não residente. (doc. 1). (C)
4) O Autor foi recrutado pela C Lda., e posteriormente exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré ao abrigo do Contrato de Prestação de Serviços n.º 1/1: (D)
- aprovado pelo Despacho n.º 00113/IMO/SEF/2004, de 14/01/2004, e válido até 31/01/2005 (Cfr. Doc. 2) ;
- foi substituído pelo Despacho n.º 00830/IMO/SEF/2005, de 08/02/2005, com efeitos a partir de 18/03/2005 a 31/01/2006 (Cfr. Doc. 3) ;
- foi substituído pelo Despacho n.º 00751/IMO/DSAL/2006, de 24/01/2006, com efeitos a partir de 15/03/2006 a 31/03/2007 (Cfr. Doc. 4) ;
- foi substituído pelo Despacho n.º 09501/IMO/DSAL/2007, de 29/05/2007, aprovado em 12/06/2006 e válido até 31/05/2008 (Cfr. Doc. 5).
5) Durante todo o tempo da relação de trabalho o A. auferiu da Ré, a título de salário anual e de salário normal diário, as quantias que abaixo se discrimina: (E)
Ano
Salário anual
Salário normal diário
2004
6855
152
2005
55982
156
2006
56065
156
2007
32092
134
6) O Autor exerceu a sua prestação de trabalho para a Ré, ininterruptamente, ao abrigo dos contratos aludidos em D). (1º)
7) Entre 11/11/2004 até 31/03/2007 a Ré nunca pagou ao Autor uma qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (3º)
8) Entre 11/11/2004 até 31/03/2007, a Ré nunca pagou ao Autor uma qualquer quantia a título de subsídio de conduta. (5º)
9) Entre 18/03/2005 a 16/03/2006 a Ré nunca pagou ao Autor uma qualquer quantia a título de subsídio de “guarda de casino”. (7º)
10) Nos termos do Contrato de Prestação de Serviços n.º 111, aprovado pelo Despacho n.º 00830/IMO/SEF/2005, com entrada em vigor em 15/03/2005, seria “ (…) sempre garantido (ao Autor) o pagamento durante um período de 30 dias, actualmente correspondente a MOP$3,500.00 (três mil e quinhentas patacas), conforme as funções e salários do Mapa II e dos anexos”. (8º)
11) Entre Março de 2005 a Março de 2006, a Ré pagou ao Autor a título de salário de base a quantia de Mop$2,100.00. (9º)
12) Nos termos do Contrato de Prestação de Serviços n.º 111, aprovado pelo Despacho n.º 00751/IMO/DSAL/2006, de 24/01/2006, válido até 31/03/2007 (mas que se manteve em vigor até Maio de 2007), foi acordado que seria “ (…) sempre garantido (ao Autor) o pagamento mensal correspondente a MOP$4,000.00 (quatro mil patacas), conforme as funções e salários do Mapa II”. (10º)
13) Entre Abril de 2006 a Dezembro de 2006, a Ré pagou ao Autor a título de salário de base a quantia de Mop$2,288.00. (11º)
14) Entre Janeiro de 2007 a Maio de 2007, a Ré pagou ao Autor a título de salário de base a quantia de Mop$2,704.00. (12º)
15) Nos termos do Contrato de Prestação de Serviços n.º 111, aprovado pelo Despacho n.º 09501/IMO/DSAL/2007, de 29/05/2007, aprovado em 12/06/2007 e válido até 31/05/2008, seria sempre garantido (ao Autor) o pagamento mensal correspondente a MOP$5,070.00 (cinco mil e setenta mil patacas), conforme as funções e salários do Mapa II. (13º)
16) Entre Junho de 2007 a Agosto de 2007, a Ré pagou ao Autor a título de salário de base a quantia de Mop$2,704.00. (14º)
17) Durante todo o período da relação de trabalho entre a Ré e o Autor, com excepção de 8 dias em 2005, nunca o Autor gozou de qualquer dia a título de descanso semanal. (15º)
18) Durante todo o período da relação de trabalho entre a Ré e o Autor, nunca a Ré atribuiu ao Autor um qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal. (16º)
19) A Ré nunca fixou ou conferiu ao Autor o gozo de um outro dia de descanso compensatório em virtude do trabalho prestado em dia de descanso semanal. (18º)».
***
III – O Direito
1 - Do Despacho nº 12/GM/88 e da Qualificação dos contratos celebrados entre a “C Limitada “ e “B”.
Este assunto, que a recorrente uma vez mais esgrime junto do TSI, está sobejamente tratado e não vemos motivo para alterar a posição que de nós tem merecido.
Por comodidade, transcreveremos o que foi dito no Ac. TSI, de 28/11/2013, Proc. nº 824/2010:
“1ª questão
Que tipo de relação administrativa se estabeleceu entre B e a Administração?
Quando a ora recorrida se dirigiu à Administração pedindo admissão, nos termos do Despacho nº 12/GM/88 (leia-se autorização) para contratar não residentes, fê-lo como mero interessado particular que, para ver proferido o acto permissivo, deveria observar certos requisitos.
Superados os primeiros obstáculos através dos pareceres pertinentes favoráveis (cfr. nº9, a, b, do referido Despacho), a entidade competente proferiu despacho de admissão, condicionando-a, porém, à apresentação do contrato a celebrar entre requerente (B) e entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (C, Lda).
Aquele despacho disse, ainda, que a autorização implicava a sujeição da requerente a determinadas obrigações específicas: a) - manter um número de trabalhadores residentes igual à média dos que lhe prestaram serviço nos últimos três meses; b) - garantir a ocupação diária dos trabalhadores residentes ao seu serviço e manter-lhes os respectivos salários a um nível igual à média verificada nos três meses anteriores; c)- observar uma conduta compatível com as legítimas expectativas dos trabalhadores residentes).
Estamos, portanto, perante um acto administrativo cuja eficácia foi diferida para momento posterior, em virtude de os seus efeitos dependerem da verificação do requisito ulterior (arts. 117º, nº1 e 119º, al.c), do CPA): apresentação do contrato de prestação de serviço com a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente.
Ora, este contrato é, para este efeito, um contrato-norma com estipulações vinculantes para ambas as partes.
Ou seja, a Administração, satisfez-se com a celebração daquele instrumento negocial em que o futuro empregador (contratante B) declarava contratar futuros trabalhadores não residentes e prometia conceder-lhes as condições e regalias a que ali mesmo, livremente, se deixou subjugar. Claro está que, em nossa opinião, deveria ser mais natural e lógico que a condição fosse mais longe ao ponto de se exigir de todo e qualquer interessado na aquisição de mão-de-obra não residente em Macau a demonstração da efectiva contratação nos moldes em que o compromisso foi assumido perante a entidade fornecedora. Faria mais sentido, realmente, que a condição do acto não se ficasse pela realização de uma mera “declaração de intenções” ou de uma simples “promessa de facere”, que podia não ser, como não foi, cumprida. Na verdade, a vinculação entre as partes contratantes iniciais (B e C) podia bem ser quebrada sem conhecimento do Governo, o qual assim nada podia fazer para repor as condições de trabalho que estiveram na base da autorização, ou até mesmo para a cancelar. Isto é, parece absurdo que se estabeleçam requisitos de contratação, que as partes iniciais acolheram no contrato-norma para que o despacho autorizativo adquirisse eficácia, e depois o autor do acto se desligue completamente da sorte dos contratos de aplicação dando azo a toda a sorte de incumprimentos e abusos eventuais. Não se deveria esquecer que os contratos de aplicação devem obediência não só ao contrato-norma, como ao acto autorizativo. E, por isso mesmo, é de questionar quais as consequências derivadas da violação dos contratos celebrados com o trabalhadores e quais os efeitos para estes (futuros e incertos) decorrentes desse contrato-norma. À primeira questão – sem sermos muito categóricos – somos de parecer que nem o Despacho 12/GM/88, nem o contrato firmado na sequência do despacho autorizativo estabelecem sanções. À segunda questão já somos obrigados a responder, e essa é tarefa que nos ocupará já de seguida.
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2ª Questão
Quais os direitos para os trabalhadores contratados na sequência daquele contrato de prestação de serviços celebrado entre B e C?
Tal como a sentença o afirma, ao caso não pode ser aplicável o DL nº 24/89/M, de 3/04, uma vez que este diploma se aplica aos trabalhadores residentes.
E também é certa, em parte, a ideia que emana da mesma decisão, segundo a qual o Despacho nº 12/GM/88 não visa estatuir sobre os contratos a celebrar entre empregadores e trabalhadores não residentes. Visa sim, e nessa medida reflecte-se sobre eles, determinar um conjunto de conteúdos mínimos que o empregador deve respeitar nos contratos a celebrar. Contudo, não desce ao pormenor dos direitos e regalias concretas, embora se refira no art. 9, d.2 ao dever de ser averiguado no contrato de prestação de serviços se se encontra satisfeita a garantia do pagamento do salário acordado com a empresa empregadora. Ora, como pode ser prestada esta garantia se depois do contrato com o trabalhador ninguém mais controla o cumprimento do clausulado! E como garantir no contrato-norma algo que só no contrato de aplicação pode ser constatado! Por conseguinte, só indirectamente se pode dizer que os contratos celebrados com os trabalhadores têm no referido despacho a sua regulação normativa.
A Lei nº 4/98/M, de 29/97, por seu turno, também não passa de um conjunto de normas programáticas inseridas naquilo que é uma Lei de Bases (Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais), não preenchendo as necessidades de regulação as normas que constam do art. 9º, uma vez que aí igualmente nada é estabelecido sobre o conteúdo das relações laborais entre aqueles.
Só a Lei nº 21/2009/M de 27/10, sim, define um conjunto de regras a que deve obedecer a contratação de trabalhadores não residentes, mas escapa ao nosso raio de alcance, atendendo ao momento em que surge a lume.
De qualquer modo, assentem os contratos celebrados com os trabalhadores não residentes indirectamente no Despacho nº 12/GM/88, ou derivem eles directamente do contrato firmado entre B e C, a verdade é que ninguém se atreve a dizer que aquele instrumento contratual e o Despacho em causa são de todo inertes e indiferentes ao clausulado que viesse a integrar o contrato entre empregador e trabalhadores. A questão só se complica na medida em que se trata de pessoas que não intervieram no referido instrumento. Daí que se pergunte a que título dele nasceram direitos para a sua esfera.
Não se pode dizer com total tranquilidade que há lacuna de regulamentação, se for de pensar que a vinculação do instrumento entre B e C é suficiente, isto é, se for de considerar que, mesmo que por causa do despacho autorizativo e do Despacho 12/GM/88, os direitos nascem com aquele instrumento. Faltaria apurar somente a que título.
A sentença em crise entende, porém, que não, por não sentir emergir daquele contrato de prestação de serviços nenhuma das figuras contratuais que costumam associar terceiros não intervenientes, como foi o caso.
Por outras palavras, a questão é a do apuramento da natureza jurídica desse contrato no que a estes terceiros concerne.
E considerando não se estar perante um contrato de trabalho, um contrato de trabalho para pessoa a nomear, ou um contrato de cedência de trabalhadores – por razões que explicita e com as quais concordamos, mas que, por comodidade e desnecessidade ao desfecho decisório do recurso nos dispensamos de reproduzir – acabou por concluir que, do mesmo modo, não se estaria em presença do contrato a favor de terceiros, mas eventualmente ante um contrato de promessa de celebrar um contrato de trabalho com pessoa a nomear (sem qualquer efeito na relação laboral contratada entre empregador e trabalhador) e que apenas permitiria à beneficiária (C) reclamar prejuízos resultantes do incumprimento.
E para assim concluir, arrancando da leitura do art. 437º do Código Civil, foi peremptório em afirmar que no conceito da figura do contrato a favor de terceiro avulta o requisito da “prestação”, que aqui julga não ser possível, uma vez que essa prestação apenas equivaleria à “celebração de outro contrato” (ver fls. 20 vº a 22 da sentença). Argumento a que ainda adita o de que de um contrato a favor de terceiro não podem nascer obrigações para este. Dois obstáculos, portanto, que, em sua óptica, o impediam de preencher os elementos-tipo desta espécie contratual.
A solução a dar a ambos estes impedimentos invocados pelo Ex.mo juiz “a quo” merece um tratamento em bloco.
Vejamos.
Segundo o art. 437º do CC:
“1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais”.
No contrato a favor de terceiro, como se vê, existem três elementos pessoais a considerar: dois contraentes e um beneficiário; de um lado, o promitente, a pessoa que promete realizar a prestação e o promissário, a pessoa a quem é feita a promessa; do outro, o terceiro beneficiário, estranho à relação contratual, mas que adquire direito à prestação. Eis aqui um bom exemplo de desvio à relatividade dos contratos ou ao princípio do efeito relativo (inter-partes) dos contratos1.
Claro que se poderia alvitrar que, para valer perante um qualquer terceiro, este deveria ser designado no contrato como beneficiário, o que implicava desde logo a sua identificação. Todavia, este eventual obstáculo tomba sob o peso da norma criada pelo art. 439º, ao permitir que a prestação pode ser estipulada a favor de terceiro indeterminado, bastando que o beneficiário seja determinável no momento em que o contrato vai produzir efeitos a seu favor.
Regra geral, portanto, do contrato nasce um direito a uma prestação2, a uma vantagem3, não uma obrigação4. Por isso se diz que o efeito para a esfera do “beneficiário” deva ser positivo5.
A questão está, agora, em saber duas coisas:
Uma, se esse efeito positivo ou de vantagem é incompatível com a atribuição de deveres; outra, como deve esse efeito ser conferido, isto é, qual a forma de manifestação da prestação.
A primeira questão, é respondida com relativa facilidade. É certo que através de um contrato entre duas partes não pode impor-se apenas uma obrigação a outra pessoa que nele não tenha figurado, enquanto objecto único dos efeitos pretendidos em relação a ela. Isso contraria o espírito da relatividade contratual na sua essência mais pura e escapa, pela letra do preceito transcrito, à sua mais estrita previsão. Não é disso, porém que aqui se trata.
Por outro lado, a imposição de deveres, num quadro mais alargado de uma posição jurídica que também envolva vantagens, não tem qualquer eficácia se o terceiro não os aceitar dentro da sua livre determinação e no quadro do exercício da sua vontade. De resto, é hoje pacífico que podem ser fixados ónus e deveres ao terceiro, sem que com isso resulte afectada a sua margem de liberdade. As partes atribuem-lhe vantagens, se de benefícios o negócio unicamente tratar. Mas, se a atribuição do efeito positivo carecer de uma atitude posterior do beneficiário da qual resulte a assunção de deveres, através da sua adesão por qualquer facto6, não se vê em que isso contrarie o objectivo do contrato. A vantagem é, para este efeito, cindível ou autonomizável. Por conseguinte, tudo ficará cometido ao seu livre arbítrio e alto critério pessoal: o terceiro é livre de acatar ou não os deveres, sendo certo que se a sua resposta for negativa, perderá o direito à vantagem e ao efeito positivo7 resultante daquele contrato.
A segunda pode ser mais problemática, mas a solução acaba por ser pacífica, segundo se crê, se for de entender que “dar trabalho”, isto é, conceder um posto de trabalho, proporcionar emprego a alguém nas condições estipuladas no contrato-norma é uma prestação de facere ou uma prestação de facto8, mesmo que incluída numa relação jurídica a constituir. O contrato a celebrar com o terceiro não seria o fim último da situação de vantagem reconhecida e prometida pelo contrato entre B e C, mas sim e apenas o instrumento jurídico através do qual se realizaria o benefício, a vantagem, o direito.
De resto, também se não deve negar que, para além do efeito positivo traduzido no próprio emprego prometido oferecer, qualquer cláusula que ali o promitente assumiu em benefício do trabalhador a contratar (v.g, valor remuneratório, garantia de assistência, etc.) ainda representa uma prestação positiva a que B se obrigou.
Por conseguinte, os obstáculos erigidos na sentença a este respeito, salvo melhor opinião, não têm consistência. O que equivale a dizer que (…), o contrato a favor de terceiro9 será aquele que melhor se adequa à situação em apreço e é nesse pressuposto que avançaremos para as consequências daí emergentes”.
Pelas razões transcritas e que com a devida vénia fazemos nossas, concluímos pelo improvimento do recurso quanto a esta parte.
*
2 - Das diferenças salariais
Quanto a esta parte do recurso, ela funda-se tão-somente na divergência que a recorrente manifesta em relação ao decidido na 1ª instância acerca da natureza do despacho 12/GM/88 e da qualificação dos contratos celebrados com a C.
Ora, tendo nós atrás reconhecido que a recorrente não tem razão nesses pontos, não se vê que haja qualquer motivo para censurar a sentença no que a este capítulo concerne.
Será, pois, o valor de Mop$ 40.872,00 a considerar para este efeito.
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3 – Subsídio de alimentação
Entende a recorrente que a cláusula 3.2 dos contratos celebrados (docs. 2 e 3 juntos com a p.i.) não prevê expressamente o subsídio de alimentação e que os contratos relegaram para a autonomia provada o eventual acordo quanto aos concretos subsídios a que os trabalhadores teriam direito.
Tem razão. Realmente, a cláusula 3.2 do contrato 1/1, na sequência dos Despachos nºs 00113/IMO/SEF/2004 e 00830/IMO/SEF/2005 não prevê expressamente tal subsídio. Ao fazer a remissão para os acordos individuais, a circunstância de os anexos os preverem não significa senão que, quando individualmente acordados entre entidade patronal e trabalhador, os limites de cada um são aqueles que os anexos contemplam.
Ou seja, estes anexos não expressam uma força vinculativa e, em vez disso, limitam-se a estabelecer os valores dos subsídios que podem vir a ser acordados entre patrão e empregado. Apresentam, por assim dizer, um carácter “normativo”; isto é, são uma extensão do próprio contrato nº 1/1, que dele só passam a fazer parte em tudo o que por este não for especialmente contrariado. Têm assim um carácter geral e abstracto, e que só em concreto, nas relações individuais entre trabalhador e patrão, serão aplicadas10, de acordo com o teor da referida cláusula 3.2.
Então, para que o trabalhador se possa achar com direito às respectivas prestações, nos montantes ali previstos (aliás, esse é o fim do anexo, fixar o valor para cada subsídio), deverá levar à matéria de facto alegada a condição necessária à sua aplicação: ou seja, deverá alegar e provar que estabeleceu com a entidade patronal a atribuição do subsídio e as condições concretas para a sua atribuição, no quadro da autonomia negocial privada.
Como nada disso foi alegado, nem provado, parece claro que não terá direito a este subsídio.
Merece, pois, provimento o recurso nesta parte.
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4 – Subsídio de conduta
No que respeita a este subsídio, além do argumento utilizado pela recorrente quanto ao de alimentação, ainda a recorrente aduz carecer de uma valorização positiva do desempenho profissional e que, portanto, não terá direito a ele o recorrente, uma vez que os autos nada revelam sobre a qualidade de tal desempenho.
Mais uma vez tem razão a ré “B”. Vale para este subsídio o que dissemos a propósito do subsídio de alimentação.
Uma vez que não está provada nenhuma factualidade de que resulte o acordo individual concreto e específico entre o A. e a Ré da acção tendente à sua atribuição, é patente que a ele não tem o A. direito.
Tem, portanto, razão a recorrente, quanto a este aspecto.
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5 – Subsídio de guarda de casino
Segundo se presume, será um subsídio, este sim, a atribuir em função do local de trabalho.
No primeiro contrato (fls. 21-27), ele não está previsto, efectivamente, nem no clausulado, nem no seu anexo. Logo, nunca seria devido no que se refere ao respectivo período, nem a sentença recorrida, sequer, o atribuiu.
Mas, também não poderá ser concedido relativamente ao período entre 18/03/2005 até 18/03/2006, face ao contrato documentado a fls. 28-31 e seu anexo a fls. 34. As razões para esta conclusão são as mesmas que acima já duzimos!
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a sentença na parte em que atribuiu ao autor da acção os subsídios de alimentação, de conduta e de guarda de casino.
No mais, vai improcedente o recurso.
Em consequência, fica a “B” condenada a pagar ao autor da acção a quantia global de Mop$ 81.528,00, acrescida de juros contados pela forma referida pelo TUI no seu acórdão de 2/03/2011, no processo nº 69/2010.
Custas em ambas as instâncias em função do decaimento.
TSI, 10 de Setembro de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudos de Direito Civil, pag. 492.
2 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pág. 410.
3 Digo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, pág. 13.
4 Ob. cit, pág. 417.
5 Margarida Lima Rego, ob. cit., pág. 493. Também, E. Santos Júnior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Almedina, pág. 165.
6 Inclusive pela forma que as partes contraentes entendam indicar: Autor e ob. cit., pág. 519. Nós entendemos que isso pode ser feito pela via do contrato a celebrar.
7 Neste sentido, por outras palavras, ver Margarida Lima Rego, ob. cit, pág. 494.
8 Neste sentido, ver Ac. do TSI no Proc. nº 574/2010, de 19/05/2011 e referências ali feitas à noção de prestar por Pessoa Jorge, in Obrigações, 1966, pág. 55, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º, pág. 336 e 338.
9 O TSI assim tem considerado de forma insistente (v.g., Ac. TSI, de 23/06/2011, Proc. nº 69/2011; 25/07/2013, 25/04/2013, Proc. nº 372/2012, 13/09/2012, Proc. nº 396/2012).
10 Desvia-se deste modo o relator de eventual posição contrária que até ao momento tenha tomado, designadamente como adjunto no Proc. nº 395/2015.
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572/2015 20