Reclamação nº 16/2015
No âmbito dos autos de acção especial de despejo, movida pela Associação de Piedade e de Beneficência A contra o Banco Delta Ásia S. A., registada sob o nº CV3-14-0020-CPE, que correm os seus termos no 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, e na sequência da aceitação pela Autora da parte dos factos articulados pelo Réu nos artº 2º, 3º, 4º e 5º da contestação, foi proferido pelo Exmº Juiz a quo o seguinte despacho que, tendo qualificado a aceitação pela Autora desses factos como o pedido da alteração de causa de pedir, admitiu-a nos termos permitidos pelo artº 217º/1 e 2 do CPC e determinou a rectificação da distribuição passando da acção especial de despejo a ser acção ordinária:
Da alteração da causa de pedir.
Introduzida a presente acção como acção especial de despejo com processo ordinário nos termos do art°930° do C.P.C., preenchendo-se cabal e competentemente a respectiva causa de pedir, veio a A., em face da contestação e porque nela se defende que a detenção da coisa está titulada por via de um comodato, alegar o que consta do artº9: “aceitam-se, para todos os efeitos legais, os factos articulados pelo R. nos artº2º, 3º, 4º e 5º da sua douta contestação”.
É inteligente a opção do A., ficará o R. com título que legitima a ocupação, mas mais frágil, tanto mais que o comodato alegado é a non prazo.
Todavia o A. não se apercebeu que o que fez foi alterar a sua causa de pedir, aceitando por adesão à que foi trazida pelo R., alteração essa que é possível na réplica nos termos do artº217ºnº1 do C.P.C.: “Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada na réplica, se o processo a admitir, a não ser que a alteração ou ampliação seja consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor”
“Voilà !!!!”
Dirá a A. que não foi isto que quis. Pois, se não foi isso também não poderia ser outra coisa, em concreto a mera aceitação da tese do R. e com a consequência que pretende: a absolvição da contraparte.
Para isto tinha a desistência do pedido e não a aceitação da tese do réu, desta sorte mantendo-se a instância reconvencional e, no quadro legal, e por a acção continuar ser especial de despejo, se aquilatando da sua legalidade, de resto como doutamente explora.
Não o tendo feito, apenas desistindo de parte da sua causa de pedir (reportável ao contrato de arrendamento) e aceitando a que lhe foi “franqueada” pelo R., muito bem, vista a natureza do título por este assumido e com as características alegadas, a A. não mais fez do que transformar a sua própria causa de pedir.
Acresce a isso que o pedido deduzido, e que se manteve (não se alterou), é ainda aproveitável a benefício da pretensão da A, não havendo a propósito qualquer obstáculo de ordem formal, qual seja a desconformidade do que se pede com a nova causa de pedir.
Na verdade, há uma parte do pedido, em concreto aquele através do qual se pede a entrega da coisa e a condenação em montante relativo ao valor locativo pela ocupação, que mantém “actualidade” e vocação à satisfação da pretensão da A.. E este pedido é, naturalmente, um pedido típico de uma acção declarativa de condenação na entrega de coisa que foi objecto de comodato e no qual se permaneceu para além do prazo “acertado”, ou, no caso de comodato sem prazo (será o caso), depois de ter sido exigido a sua entrega (o que de resto se alegou e, quanto mais não fosse, tal resultaria da citação).
Enfatizando o referido importa referir que o pedido mais não é do que o efeito jurldico pretendido, o efeito útil que com a acção se pretende obter e não propriamente as palavras utilizadas - Cfr. Ac. RP., de 11.06.92, CJ ano XVII, t.VII, pag. 308.
Esse efeito jurídico traduz-se, ao fim e ao cabo, na afirmação do efeito jurídico substantivo, potenciado pela estatuição da norma aplicável ao caso singular. Consiste, portanto, na afirmação, feita pelo peticionante, de pretender um certo aproveitamento prático, concreto, a coberto de uma determinada posição juridicamente tutelada.
Mais, na interpretação de tal efeito empírico pretendido, o tribunal não se cingi à qualificação jurídica do autor, mas apela ao fim prático visado, convolando, se necessário, essa qualificação.
Como refere o Prof. Anselmo de Castro, “o que interessará não é o efeito jurídico que as partes formulem, mas sim o efeito prático que pretendam alcançar”, pertencendo ao juiz a respectiva “qualificação jurídica (...) que a fará com plena liberdade, adoptando ou rejeitando a qualificação jurídica fornecida pelas partes” - Cfr. Castro, Artur Anselmo de. Direito Processual Civil Declaratório, V.I, pag.203.
Ora, no caso, não é necessário fazer grande esforço para perceber que o que A. pretende é a entrega da coisa (com condenação também do valor devido pela detenção e com referência ao valor locativo da coisa) e, para o efeito, substanciou agora o pedido com a causa de pedir que lhe foi fornecida pelo R., à qual se agregam alguns elementos da primitiva, em concreto a alegação de que o prédio se encontra registado em seu nome na Conservatória Registo Predial RP, assim se aproveitando da presunção a que alude o art°7 do CRP, outrossim os prejuízos derivados da ocupação.
Se assim é, está o pedido relevante (naqueles dois segmentos) - os outros cairão na decisão final - ainda em situação de compatibilidade com a nova causa de pedir, desta sorte nada obstando que a instância da acção prossiga com nova roupagem ainda que “alheia” .
Resultado precípuo desta decisão: colocar já nela, a benefício das partes, o conteúdo da acção que a A. já estaria a projectar para retirar o R. do espaço que, sendo seu, por ele é ocupado.
Destarte admite-se a alteração da causa de pedir nos termos do art°217°nº1, 2 do C.P.C.
Notificado e inconformado e mediante o requerimento a fls. 50 dos p. autos, o Réu Delta Ásia interpôs recurso do mesmo despacho, que é interpretado pelo Réu no sentido de que “decide, a dado passo, sobre o pedido formulado pela A. na sua réplica, no sentido de ser o ora R. absolvido da presente acção”.
Por douto despacho do Mmº Juiz a quo, foi admitido o recurso com subida diferida com o primeiro que depois dele haja de subir imediatamente, nos próprios autos ou em separado, e com efeito meramente devolutivo.
E porque o recurso lhe tivesse sido admitido com subida diferida, veio formular a presente reclamação nos seguintes termos:
A presente reclamação tem por objecto o douto despacho de fls. 244 que, ao admitir o recurso ordinário interposto do douto despacho de fls. 216 a 222, lhe fixou o regime de subida com o primeiro recurso que, depois da sua interposição, tenha de subir imediatamente, de acordo com o regime de subida do mesmo, quanto a ser nos próprios autos ou em separado e com efeito meramente devolutivo.
A decisão sob reclamação baseou a fixação do efeito meramente devolutivo do mencionado recurso nos artigos 600.º, 602.º e 607.º, todos do Cód. Proc. Civil.
Ora, salvo e devido respeito, não é este o entendimento da recorrente, ora reclamante, como em seguida se esclarece.
A presente acção foi inicialmente configurada pelo Autor como processo especial de despejo.
Face à contestação bem como a reconvenção e a excepção peremptória ali deduzidas pelo Réu, veio o Autor na sua réplica, aceitar e confessar a inexistência de qualquer contrato de arrendamento, tendo pedido a procedência da aludida excepção peremptória invocada e, em consequência, a absolvição do Réu relativamente ao pedido - cfr. art. 13.º da Réplica.
Porém, no despacho proferido a fls. 261 a 222, foi entendido pelo Tribunal a quo que o Autor apenas alterou a causa de pedir em face da qualificação (contrato de comodato) dada unilateralmente por este à relação jurídica sub judice, desconsiderando a desistência do pedido por parte do Autor.
Face à supra referida decisão, entende o ora Reclamante que o que está aqui em causa é uma decisão sobre o pedido formulado pelo Autor - cfr. art 607, n.º 2, aI. a) do Cód. Proc. Civil.
Por isso, ao abrigo desta última norma, o recurso que versa sobre o despacho de fls. 261 a 222 deve ter efeito suspensivo ao invés de ser meramente devolutivo como se fixou no douto despacho de fls. 244.
Senão, vejamos:
Ao abrigo do disposto no art. 601.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, os recursos interpostos nas circunstâncias ali plasmadas sobem imediatamente, enquanto os restantes têm subida diferida (art.º 602.º do mesmo diploma).
Além disso, os recursos podem subir nos próprios autos ou em separado, conforme expressamente determinado nos artigos 603.º e 604.º do Cód. Proc. Civil.
Assim, não obstante o legislador de Macau ter determinado que no sistema processual local todos os recursos ordinários têm efeito devolutivo (cfr. Manual de Direito Processual Civil, Viriato Manuel Pinheiro de Lima, edição 2005, pág. 675), há que saber aqui em que circunstâncias tais recursos também possuem efeito suspensivo quanto à execução da decisão impugnada - a qual tem como consequência, in casu, entre outras, o processo continuar, mesmo depois da desistência do pedido por parte do Autor, expressa na réplica.
Resulta do artigo 607.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil, que têm efeito suspensivo os recursos que subam imediatamente nos próprios autos, sendo que esse efeito se traduz na paralisação da execução da decisão impugnada e da suspensão do andamento do processo - cfr. Manual de Direito Processual Civil, Viriato Manuel Pinheiro de Lima, edição 2005, pág. 676.
E para além das circunstâncias previstas no supra referido normativo, o legislador criou, no seu número dois uma excepção para os recursos ali discriminados, os quais também têm o mesmo efeito suspensivo, embora subam em separado, e que, por causa desse efeito, conduzem também à impossibilidade da execução imediata da decisão recorrida - in casu, a saber, o prosseguimento dos autos.
E a decisão recorrida decide, neste aspecto, sobre o pedido, integrando-se na aI. a) do n.º 2 do art.º 607.º do CPC, porque, segundo o princípio dispositivo, o autor em processo civil é livre de desistir da pretensão que apresentou em litígio, verificando-se neste caso, uma disposição da situação jurídica que é objecto da pretensão ou pedido (cfr. Código de processo Civil Anotado, Volume 1.°, José Lebre de Freitas, Coimbra Editora, 1999, pág. 522).
Por outras palavras, salvo melhor opinião, tanto se enquadram na aI. a) do n.º 2 do art.º 607.º do CPC, as decisões sobre o mérito material da causa (procedência ou improcedência, total ou parcial do pedido), como aquelas que fazem ou não cessar a instância quando o autor prescinde, no todo ou em parte, do pedido formulado - como sucede in casu.
Isto, porque o autor é tão livre de formular pedidos, como de deles prescindir ou desistir.
Destarte, atento que a causa em questio implica uma decisão sobre um pedido formulado pelo Autor - procedência da excepção peremptória invocada e, em consequência, a absolvição do Réu relativamente ao pedido - o recurso há-de ter efeito suspensivo, por aplicação do disposto da aI. a) do no 2 do art. 607.º do CPC.
Por outra banda, afigura-se à ora reclamante que, salvo melhor entendimento, a retenção do recurso interposto, ao qual se defende atribuir efeito suspensivo como acima se expendeu, decretará necessariamente, por isso, a suspensão por tempo indefinido da instância - sendo que, por essa razão, este efeito ditará a sua subida imediata.
Vejamos:
Se o douto despacho recorrido ordena, entre outros, o prosseguimento dos autos mesmo após a desistência do pedido por parte do autor, então a suspensão dos seus efeitos como resultado da aplicação da al. a) do n.º 2 do art.º 607.º do CPC, resulta logicamente na não continuação (suspensão) do processo.
E, se se considerar que o aludido recurso não tem subida imediata, então, porque os autos não prosseguem, nunca virá a surgir outro com o qual o primeiro possa subir, ficando a instância parada indefinidamente, porque suspensa - absurdo processual que não se afigura coadunar-se com a intenção do legislador.
Por conseguinte, a retenção do recurso objecto da presente reclamação torná-lo-ia absolutamente inútil, porque nunca chegaria a ser apreciado nem as partes veriam o seu litígio resolvido.
Assim, afigura-se ao reclamante que, face aos valores em jogo, a decisão quanto ao momento, regime e modo de subida do recurso interposto apenas poderia ter sido a de o fazer subir de imediato, em separado e com efeito suspensivo, para que se possa, a final, proferir sentença nos autos.
Nestes termos, e os demais de direito aplicável com o sempre douto suprimento de V. Exa., requer se digne deferir a presente reclamação, alterando o regime de subida do recurso interposto a fls. 238, e determinando que este suba de imediato, em separado e com efeito suspensivo conforme o estipulado nos artigos 601.º, 604.º e al. a), n.º 2. do art. 607.º, todos do CPC.
Passemos então a apreciar a reclamação.
Ora, a única questão levantada pela Reclamante é saber se o recurso em causa deve subir imediatamente.
Na óptica do Réu, ora Reclamante, a retenção do recurso implica a inutilidade absoluta do mesmo.
Ao que parece, para chegar a esta conclusão de que a retenção implica a inutilidade absoluta do recurso, o raciocínio do Reclamante é o seguinte:
* Tendo por objecto a decisão sobre o pedido da acção, ao recurso de cuja retenção ora se reclama deve ser atribuído efeito suspensivo, face ao disposto no artº 607º/2 do CPC;
* O efeito suspensivo que ao recurso deve ser atribuído implica a paralisação da execução da decisão recorrida e a suspensão do andamento do processo;
* Assim, se ao recurso tivesse sido fixado o regime de subida diferida, ou seja, só sobe com o primeiro recurso a subir imediatamente, o recurso não teria a oportunidade de subir, uma vez que nunca poderia haver lugar a esse “primeiro recurso a subir imediatamente”, por o processo ficar paralisado por força do efeito suspensivo que ao recurso deveria ser atribuído nos termos disposto no artº 607º/2 do CPC;
* Não sendo possível o surgimento de um outro recurso por causa da paralisação do andamento do processo, o presente recurso nunca pode apanhar a boleia para ser levado ao Tribunal de recurso a fim de ser ali apreciado;
* Ficando eternamente no processo parado na primeira instância, o recurso é absolutamente destituído de qualquer inutilidade;
* Portanto, não se pode fixar senão ao recurso o regime de subida imediata.
No fundo, o Reclamante procura tentar convencer primeiro o Tribunal de que o recurso merece efeito suspensivo.
E depois, a partir do efeito suspensivo hipotético procura tirar a conclusão de que o processo tem de parar por força desse feito suspensivo.
Como fica parado o processo, a condição de que depende a subida do recurso ora retido nunca se pode verificar, de modo a que o recurso nunca pode subir ao Tribunal de recurso para ali ser apreciado e julgado.
O que implica a inutilidade absoluta do recurso.
Assim, deve ser fixado o regime de subida imediata para que possa ser feito subir ao Tribunal de recurso.
Bom, não é de acolher esta tese.
Ora, bem ou mal, o despacho recorrido não decidiu sobre o pedido, uma vez que se limitou a configurar a aceitação pela Autora na réplica da parte dos factos alegados pelo Réu na contestação como o pedido da alteração de causa de pedir e a admití-la, tendo mantido inalterado o pedido que é “retirar o Réu do espaço”.
Não estamos assim perante um recurso interposto do despacho que decidiu sobre algum ou alguns dos pedidos formulados que, à luz do disposto no artº 607º/2 do CPC, tem efeito suspensivo.
Bem pelo contrário, ao recurso foi atribuído pelo Exmº Juiz a quo o efeito meramente devolutivo, efeito esse que não implica a suspensão, quer da execução da decisão recorrida, quer do andamento do processo.
Portanto, o processo não fica parado, antes pelo contrário, prossegue.
Assim, cessa a preocupação do reclamante de que fica parado o processo e caem por terra todos os argumentos subjacentes à tese do Reclamante.
Sem mais delonga, cremos nós que são bastantes as razões acima expostas, para que indefiramos, como indeferimos, a reclamação deduzida, mantendo o modo de subida diferida fixado no despacho que admitiu o recurso, de cuja retenção ora se reclama.
Custas pelo Reclamante.
Fixo a taxa de justiça em 1/8.
Cumpra o disposto no artº 597º/4 do CPC.
RAEM, 26NOV2015
O presidente do TSI
Recl.16/2015-10