Processo nº 784/2015 Data: 29.10.2015
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “burla”.
Continuação criminosa.
Prescrição.
Erro notório na apreciação da prova.
Livre apreciação da prova.
SUMÁRIO
1. Comete o crime de “burla” o arguido que cria a (falsa) aparência de uma (inexistente) situação de “arrendamento” e consequente pagamento de renda para, desta forma, se colocar em situação de poder beneficiar da atribuição de “subsídio de residência” que efectivamente recebeu, actuando de forma livre e voluntária e com intenção de obter “enriquecimento ilegítimo”, bem sabendo que proibida e punida era a sua conduta.
2. Nos crimes cometidos na “forma continuada”, o prazo de prescrição inicia-se no dia da prática do último acto; (cfr., art. 111°, n.° 1 e 2, al. b) do C.P.M.).
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 784/2015
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado como autor de 1 crime de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses, e no pagamento no I.A.C.M. de MOP$210.600,00; (cfr., fls. 470 a 475-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu.
Imputa à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “violação do princípio da livre apreciação da prova” e que prescritos estão os factos ocorridos entre Junho de 1990 a Janeiro de 1995; (cfr., fls. 484 a 506).
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Respondendo considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 511 a 515).
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Neste T.S.I. juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Encontramo-nos plenamente de acordo com as judiciosas considerações expendidas pelo Exmo Colega junto do tribunal “a quo”, as quais demonstram, à saciedade, a total falta de razão do recorrente.
Desde logo, no que tange a suposto erro notório na apreciação da prova, substancialmente adveniente da consideração a ter (na perspectiva do recorrente) relativamente ao depoimento da testemunha B, fácil é constatar a adequação e pertinência do juízo de dúvida relativamente à autenticidade e veracidade do mesmo, mormente no que respeita à afirmação de que as quantias mensais pagas pelo recorrente se destinariam não só a despesas familiares, como também ao pagamento de empréstimo predial, uma vez que foi aquela testemunha que assinou, como comprador, a escritura pública de compra do apartamento em causa, tendo o empréstimo para o efeito sido contraído através de conta bancária em seu nome, ao que acresce que, a ser verdade o que sustentou e sustenta, não lhe seria difícil a obtenção da necessária documentação atinente à compra da propriedade, com entrega nos serviços respectivos.
Por outra banda, revela-se caricato pretender-se que, partindo-se daquele princípio de que as prestações mensais para despesas familiares conteriam parte para pagamento de empréstimo predial e que, sendo assim, se mostrariam satisfeitas as condições de obtenção do subsídio de residência, inexistindo o preenchimento dos elementos típicos do crime de burla imputado.
É que, por um lado, como se viu, não se encontra demonstrado, nem o tribunal o deu como comprovado, que naquelas prestações familiares existisse qualquer conteúdo porventura atinente a pagamentos de eventual empréstimo predial, do mesmo passo que, mesmo que assim sucedesse, o recorrente não se coibiu de usar estratagema ludibriado, a fim de tentar obter e obter mesmo, junto dos serviços, o pagamento daquele subsídio de residência, com informação, que sabia ser falsa, de estar a viver em apartamento alugado, pagando a renda respectiva.
Donde, ver-se como perfeitamente preenchida a tipicidade imputada.
Por outra banda, com o que resultou apurado, revela-se evidente a intenção de obtenção, por parte do visado de enriquecimento ilegítimo, apresentando-se tal asserção como congruente, lógica e consonante com as regras da experiência, a partir das premissas alcançadas, isto é, provada a inveracidade do alegado pelo recorrente relativamente a viver em apartamento alugado e não dispondo de qualquer outro “título” que lhe permitisse legalmente aceder ao subsídio de residência, este acabou por lhe ser atribuído devido ao engano que aquele astuciosamente provocou, em seu próprio e ilegítimo beneficio, com óbvio prejuízo dos serviços que o processaram.
Finalmente, não questionando, como não questionamos, com os contornos estabelecidos, a ocorrência de crime continuado e correndo, em tais casos, nos precisos termos da al. b) do n° 2 do art° 111°, CP, o prazo de prescrição após a prática do último acto, fácil é verificar a não ocorrência, no caso, daquela forma de extinção do procedimento criminal.
Donde, pelo exposto, sermos a entender não merecer provimento o presente recurso”; (cfr, fls. 557 a 559).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 471 a 472-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem o arguido recorrer da sentença pelo Mmo Juiz do T.J.B. proferida que o condenou como autor de 1 crime de “burla”, p. e p. pelo art. 211°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 9 meses de prisão suspensa na sua execução por 1 ano e 6 meses, e no pagamento ao I.A.C.M. de MOP$210.600,00.
Imputa à decisão recorrida o vício de “erro notório na apreciação da prova” e “violação do princípio da livre apreciação da prova” considerando também que prescritos estão os factos ocorridos entre Junho de 1990 a Janeiro de 1995.
Que dizer?
Cremos que não tem o arguido razão, bastando uma leitura à decisão recorrida para se constatar que esta não padece dos vícios que lhe são assacados, (ou outros), mostrando-se de acompanhar, na íntegra, a posição pelo Ilustre Procurador Adjunto assumida, que dá clara e cabal resposta às questões colocadas, e que aqui se dá como reproduzida para todos os efeitos legais, pouco havendo a acrescentar.
Seja como for, não se deixa de consignar o que segue:
–– Começando-se pela alegada “prescrição”, evidente é a improcedência do recurso.
Aliás, a questão foi expressamente apreciada na sentença recorrida, nenhuma censura merecendo.
Aí, considerou-se que o crime pelo arguido cometido era 1 crime de “burla na forma continuada”, e, que atento o estatuído no art. 111°, n.° 2, al. b) do C.P.M., o prazo de prescrição nos crimes continuados só começa a correr no dia da prática do último acto de execução, (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 29.01.2004, Proc. n.° 308/2003, do ora relator).
Verificando-se que a conduta do arguido se prolongou até Janeiro de 2009, à vista está a solução.
–– Quanto ao “erro”, repetidamente tem este T.S.I. considerado que “O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores”.
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 23.04.2015, Proc. n.° 216/2015 do ora relator).
Como também já tivemos oportunidade de afirmar:
“Erro” é toda a ignorância ou falsa representação de uma realidade. Daí que já não seja “erro” aquele que possa traduzir-se numa “leitura possível, aceitável ou razoável, da prova produzida”.
Sempre que a convicção do Tribunal recorrido se mostre ser uma convicção razoavelmente possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve a mesma ser acolhida e respeitada pelo Tribunal de recurso.
O princípio da livre apreciação da prova, significa, basicamente, uma ausência de critérios legais que pré-determinam ou hierarquizam o valor dos diversos meios de apreciação da prova, pressupondo o apelo às “regras de experiência” que funcionam como argumentos que ajudam a explicar o caso particular com base no que é “normal” acontecer.
Não basta uma “dúvida pessoal” ou uma mera “possibilidade ou probabilidade” para se poder dizer que incorreu o Tribunal no vício de erro notório na apreciação da prova; (cfr., v.g., Ac. de 22.05.2014, Proc. n.° 284/2014 e de 23.04.2015, Proc. n.° 216/2015).
E, dito isto, também aqui, à vista está a solução.
De facto, não se vislumbra onde, como ou em que termos tenha o Tribunal a quo violado regras sobre o valor da prova tarifada, regras de experiência ou legis artis, tendo apreciado todo o material probatório posto perante si em conformidade – e não em desrespeito – com o princípio da livre apreciação da prova, não se nos apresentando assim o decidido merecedor de qualquer reparo ou censura.
Em boa verdade, limita-se o recorrente a insistir na sua versão, que não foi acolhida pelo Tribunal a quo, controvertendo “pequenos pormenores” que não alteram o que se apurou em sede de julgamento efectuado em 1ª Instância, e que, em síntese, se traduz numa conduta, pelo arguido ora recorrente levada a cabo por um longo período de tempo, intencionalmente direccionada e destinada a criar a (falsa) aparência de uma situação (inexistente) de pagamento de renda por motivos de arrendamento de uma fracção autónoma, e assim, através deste “engano” (erro), a proporcionar a decisão que lhe permitiu receber mensalmente um subsídio de residência (atribuído para aquelas situações), desta forma obtendo “enriquecimento ilegítimo” e causando “prejuízo patrimonial” a outra pessoa, agindo de forma livre e voluntária e com conhecimento que era a sua conduta proibida e punida por Lei.
Dito isto, e verificados estando todos os pressupostos do crime pelo qual foi o arguido condenado, (e outras questões não havendo), resta decidir.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o arguido 6 UCs de taxa de justiça.
Macau, aos 29 de Outubro de 2015
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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