打印全文

Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau




Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 8 / 2006

Recorrente: Conselho Superior da Advocacia
Recorrido: A






1. Relatório
   A veio interpor recurso contencioso contra a Associação dos Advogados de Macau, pedindo a declaração da nulidade da deliberação desta entidade que lhe condenou na pena de advertência. Por acórdão proferido no processo n.º 163/2005, o Tribunal de Segunda Instância decidiu anular o acto impugnado.
   Inconformada com o acórdão, o Conselho Superior da Advocacia recorreu para o Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões das alegações:
   “1. Todas as questões suscitadas pelo arguido, Sr. Dr. A, no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal de Segunda Instância, foram julgadas improcedentes;
   2. O acórdão recorrido, não dando como verificadas as causas de pedir invocadas pelo interessado, socorreu-se, porém, duma causa de pedir inteiramente nova, não invocada pelas partes: a provocação, como circunstância viabilizadora da isenção da pena;
   3. Implicitamente decidiu coisa diferente do requerido pelo interessado;
   4. Com isso, modificou o objecto do processo, ofendendo assim o princípio da estabilidade da Instância consagrada no art.º 212.º do Código de Processo Civil;
   5. O acórdão recorrido ultrapassou os limites definidos pelo objecto do processo;
   6. O mesmo acórdão violou o disposto nos art.ºs 564.º n.º 1 e 571.º daquele Código, e incorreu nas nulidades previstas no n.º 1, al.s d) e e) deste último preceito;
   7. O acórdão recorrido deu como assente que a recorrente não havia chegado a ponderar a hipótese da dispensa da pena de advertência;
   8. Trata-se duma mera suposição – perfeita, completa e totalmente insubstanciada – inserida no acórdão recorrido, com violação do disposto no art.º 567.º do Código de Processo Civil, pelo que a mesma deve considerar-se não escrita por aplicação analógica no art.º 549.º, n.º 4 do mesmo diploma;
   9. Consequentemente, fica prejudicada a conclusão no sentido de que a recorrente errou no acto decisório por incorrecção na verificação dos pressupostos legais da aplicação da pena imposta;
   10. Ao impor a pena de advertência, a recorrente actuou no exercício da chamada discricionariedade imprópria, por agir no âmbito da Justiça Administrativa;
   11. Ora tal discricionariedade só é sindicável perante a evidência de erro manifesto ou grosseiro na aplicação da pena;
   12. Esse erro não ocorre no caso dos autos, no âmbito do qual foram escrupulosamente observados o comando do art.º 42.º do Código Disciplinar dos Advogados e os princípios de proporcionalidade e de justiça;
   13. A pena aplicada ao arguido, Sr. Dr. A – o qual nunca se mostrou arrependido – foi a mais leve do elenco das penas previstas no art.º 41.º do mesmo diploma;
   14. A pena imposta, bem como os pressupostos da sua aplicação, eram pois insindicáveis pelo Tribunal de Segunda Instância;
   15. Foi, assim, violado o disposto no art.º 74.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, designadamente o seu número 6;
   16. Não é viável a aplicação ao caso dos autos, ainda que por analogia, do art.º 137.º do Código Penal, disposição que assim se mostra ter sido violada;
   17. O arguido, Sr. Dr. A, não agiu com intenção de retorquir à crítica dirigida pela participante;
   18. Antes pretendeu, simplesmente e com a subscrição e remessa da carta referida nos autos, injuriar a participante, o que fez em termos ofensivos;
   19. Essa carta, escrita cerca de uma semana depois da data em que lhe foi dirigida a aludida crítica – o que resulta dos factos implicitamente dados como assentes pelo acórdão recorrido – representa antes um verdadeiro desforço;
   20. Além disso, a provocação está prevista no art.º 66.º do Código Penal como mera atenuante especial;
   21. O acórdão recorrido violou, destarte, o disposto nos art.ºs 66.º e 137.º, n.º 3, al. b), do Código Penal, 212.º, 549.º, 564.º, n.º 1, 567.º e 571.º do Código de Processo Civil, 42.º do Código Disciplinar dos Advogados e 74.º do Código de Processo Administrativo Contencioso.”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso, julgando nulo o acórdão recorrido ou revogar o mesmo.
   
   O recorrido apresentou as seguintes conclusões nas suas alegações.
   “A) Introdução
   1. Não pode a recorrente, salvo melhor opinião, apresentar duas alegações: uma, mais breve e contida no requerimento de interposição do presente recurso, de 02/12/2005; outra, datada de 14/12/2005.
   B) Da nulidade
   2. A figura da ‘provocação’ foi um dos fundamentos do recurso interposto pelo arguido disciplinar da deliberação punitiva de ora recorrente (cfr. conclusão n.º 5 das alegações), como bem chama a atenção o acórdão do Tribunal de Segunda Instância ora em recurso (cfr. pag. 3 do aresto). Assim, não há novo vício, nem nova causa de pedir, como alega a recorrente.
   3. Deste modo, e salvo mais douta opinião, toda a argumentação desenvolvida relativamente a tal item, falece ab initio.
   C) O direito penal e processual penal como primeiros integradores de lacunas do CDA
   4. Quer quanto ao vício da nulidade alegado pela recorrente, quer quanto ao restante das suas doutas alegações, nos termos do art.º 65.º do Código Disciplinar dos Advogados: ‘São aplicáveis supletivamente, no âmbito da interpretação e integração das lacunas do presente Código: a) O direito penal vigente no Território; b) O Código de Processo Civil; c) As instruções emanadas do conselho’.
   5. Ou seja, perante uma lacuna começa-se por aplicar as normas do direito penal e processual penal, e só depois, no caso de ser necessário, as do processo civil. Pois,
   6. O CDA, pela própria natureza e estrutura processual, assenta no conjunto de princípios e quadro normativo do sistema jurídico-penal, e não do processo civil.
   7. Assim, a argumentação da recorrente falece de princípio, dado que o pressuposto em que as suas alegações se fundaram está errado, o que implica a improcedência do presente recurso do acórdão do TSI.
   8. Felizmente para a justiça, os juizes ainda não estão vinculados ás alegações das partes.
   9. Restringindo-se ao objecto do processo, o Tribunal aprecia aquela conduta levada a cabo por aquela pessoa naquelas condições espaço-temporais, tomando em conta todas as circunstâncias pertinentes, independentemente de serem trazidas ao processo pelo arguido, assistente, Ministério Público ...
   10. Das regras do direito penal não se retiram fundamentos para um só dos vícios apontados pela recorrente ao aresto do TSI.”
   Pedindo que o recurso seja julgado improcedente e consequentemente seja confirmado o acórdão recorrido.
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o parecer que no essencial consiste em:
   Não há nulidade do acórdão nem violação do princípio da estabilidade objectiva da instância.
   A provocação não deve ser vista como uma nova causa de pedir.
   A consideração ou não desse elemento como circunstância viabilizadora da dispensa de pena é uma questão de direito que se prende com a qualificação jurídica dos factos.
   E valorando no âmbito do processo administrativo o princípio da investigação (do inquisitório ou da verdade material), os fundamentos da decisão do juiz não têm de se limitar aos factos carreados pelas partes.
   Também não há violação do art.° 567.° do CPC.
   A aplicação da pena disciplinar é, em princípio insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro grosseiro ou desproporção manifesta, o que não se verifica nos presentes autos.
   É inaplicável o art.° 137.°, n.° 3 do CP, relativamente à dispensa de pena, pois só é concebido para o caso especial.
   A aplicação supletiva do direito penal prevista no Código Disciplinar dos Advogados só tem lugar para efeitos de interpretação e integração das lacunas deste Código.
   As penas são taxativamente previstas neste Código.
   A admitir a dispensa de pena, só pode ser por via do art.° 68.° do CP, regra geral do instituto.
   A conduta do arguido nunca poderia configurar-se como retorsão, que, em princípio, deve ser uma reacção imediata, directa e espontânea.
   No caso sub judice e face aos elementos apurados nos autos, não nos parece que, ao dirigir uma carta a uma advogada, também profissional de foro, em que contêm expressões ofensivas e injuriosas, o arguido se limitou unicamente a exercer uma retorsão, face à crítica feita pela sua colega sobre a qualidade de trabalho por si prestado numa acção judicial.
   Nota-se ainda que a remessa da carta ocorreu cerca de uma semana depois da data em que foi feita aquela crítica, o que permite considerar que a conduta do arguido foi pensada, não se tratando duma reacção imediata e directa.
   Acresce que, mesmo verificando a circunstância em causa, a dispensa de pena nos termos do art.º 137.º do CPM só pode ser decretada quando cumulativamente se verifiquem os requisitos estabelecidos nas várias alíneas do n.º 1 do art.º 68.º do CPM.
   Pugnando pelo provimento parcial do presente recurso.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Nulidade da sentença: conhecimento a mais ou excesso de pronúncia
   O recorrente considera que o acórdão recorrido lançou mão duma causa de pedir não invocada, a provocação, como circunstância viabilizadora da isenção da pena, em violação dos art.° 564.°, n.° 1 e 571.°, n.° 1, al.s d) e e) do Código de Processo Civil (CPC).
   
   É evidente que não procede este fundamento. O recorrente do recurso contencioso, ora recorrido, suscitou expressamente a questão da existência de provocação como causa de exclusão da culpa ou da ilicitude que poderia conduzir à anulação do acto de aplicação da pena.
   Esta questão constitui realmente uma das causas de pedir do recurso contencioso de que podia naturalmente o Tribunal de Segunda Instância conhecer.
   
   
   2.2 Violação do art.° 567.° do CPC: consideração de factos não alegados
   Em nome do princípio dispositivo, o recorrente entende que o tribunal recorrido, ao afirmar que “... a entidade recorrida, ao decidir a final no texto da sua deliberação ora sob impugnação, não chegou a ponderar a hipótese da dispensa da pena de advertência, ...”, carece de qualquer suporte probatório e constitui uma suposição indevidamente inserida no acórdão recorrido.
   
   A questão ora alegada também não é mais do que um equívoco do recorrente, pois o que está em causa na afirmação citada do acórdão recorrido é uma conclusão que o Tribunal de Segunda Instância tirou a partir do texto do acto impugnado.
   Não há, portanto, violação do art.° 567.° do CPC por parte do tribunal recorrido, na vertente de se servir dos factos não alegados pelas partes.
   
   
   2.3 Insindicabilidade da pena disciplinar
   O recorrente alega que a pena disciplinar de advertência imposta ao recorrido, para além de ser insindicável por situar no campo de discricionariedade imprópria da entidade aplicadora, é proporcionalmente adequada, não tendo ocorrido erro grosseiro ou palmar que legitima o controlo judicial.
   
   Tem sido entendido que a fixação da pena disciplinar constitui o exercício do poder discricionário, em princípio insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, total desrazoabilidade ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo.
   Tal como foi decidido no acórdão do Tribunal de Última Instância de 28 de Julho de 2004 proferido no processo n.º 27/2003, “a aplicação pela Administração de penas disciplinares, dentro das espécies e molduras legais, é, em princípio, insindicável contenciosamente, salvo nos casos de erro manifesto, notória injustiça ou violação dos princípios gerais do Direito Administrativo como os da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.”
   
   Antes de mais, é de notar que o conteúdo do acórdão recorrido na parte em que foi apreciada a questão da existência de provocação, que agora está em causa, não deixa de causar perplexidade.
   Pois entende que a entidade recorrida, recorrente no presente recurso, “não chegou a ponderar a hipótese da dispensa da pena de advertência”, concluindo que “a entidade recorrida errou no acto decisório de imposição da pena disciplinar de advertência, por erro na verificação dos pressupostos legais de aplicação da pena efectiva de advertência, devido precisamente à omissão da ponderação da possibilidade de dispensa da mesma pena ao arguido.”
   Precisando que “não se está a pretender questionar o mérito (...) da opção pela pena de advertência, mas sim tão-só controlar a legalidade stricto sensu da verificação dos pressupostos de direito conducentes à aplicação efectiva desta pena”.
   
   Ora, se o tribunal recorrido considera que a entidade recorrida devia ponderar a aplicação de determinado mecanismo legal, como a dispensa de pena, e se esta ponderação não é o passo necessário que a lei impõe para o raciocínio do decisor, o acto impugnado só pode ser anulado por falta de aplicação (efectiva) do mecanismo, se for o caso, e não por falta de ponderação da sua aplicação, sendo certo que para a decisão de aplicação da pena disciplinar a lei não impõe a menção ou exposição da ponderação da dispensa de pena na fundamentação do acto decisório.
   E falta sempre relevância à verificação da realização da ponderação da dispensa de pena no caso concreto. Independentemente da questão da sua aplicabilidade no processo disciplinar dos advogados, a dispensa de pena disciplinar, a admitir, situa ainda no âmbito da determinação da pena disciplinar, portanto, em princípio fora do controlo judicial.
   
   Segundo a decisão punitiva do ora recorrente, objecto de impugnação no recurso contencioso, após troca de palavras entre o ora recorrido e a advogada queixosa Dr.ª B, em que esta criticou os serviços forenses prestados por aquele, o recorrido dirigiu uma carta à advogada com as seguintes expressões, entre outras: “... aquando da sacanice que me pregou no dia 27 de Junho ...”, “... tramóia montada por si ...”, “... por esta entranha forma angariar clientes, recorrendo aos esquemas já muito conhecidos na classe de advogados deste Território, ou seja, recorrendo a funcionários judiciais”, “... estar a exercer, associada a outros, a actividade de agiotagem” e “... objecto de um comportamento tão sujo por parte de uma Colega de profissão ...”.
   Concluiu o ora recorrente que o arguido não procedeu com a correcção e urbanidade que deve caracterizar as relações entre os advogados e além disso dirigiu um ataque pessoal à pessoa da participante.
   Foram considerados o estado de saúde do recorrido que se encontrava fragilizado por uma grave e continuada crise nervosa, na sequência da discussão provocada pela própria participante, e ainda expressamente a atenuante de provocação.
   A final, foi aplicada a pena de advertência ao recorrido.
   Não se vislumbra no acto impugnado nenhum sinal de erro grosseiro ou total desrazoabilidade na fixação da pena disciplinar, nomeadamente em violação do princípio de proporcionalidade.
   
   Em relação à aplicação analógica, para o caso em apreço, do disposto na al. b) do n.º 3 do art.º 137.º do Código Penal (CP) sobre a dispensa de pena no caso de o agente do crime de ofensa à integridade física ter unicamente exercido retorsão sobre o agressor:
   Sem entrar aqui em discussão sobre a eventual existência de lacuna no Código Disciplinar dos Advogados relativa ao instituto de dispensa de pena disciplinar, é incorrecto ao Tribunal de Segunda Instância aplicar a referida norma para o presente caso de injúria praticada pelo recorrido.
   Estão previstas no n.º 3 do art.º 137.º do CP duas situações em que a pena pode ser dispensada, concebidas para a prática do crime de ofensa simples à integridade física. É evidente que aquela norma é especialmente concebida para o caso de ofensa à integridade física, não sendo aplicável ao presente caso de injúria. Não é a partir da verificação da provocação ou retorsão para encontrar um regime de dispensa de pena. A manter válido o processo racional do tribunal recorrido, bem poderia fundamentar a decisão no art.º 180.º do CP que regula a dispensa de pena para os crimes contra a honra de pessoas singulares.
   A entender aplicável analogicamente o instituto de dispensa de pena, seria de observar o disposto no art.º 68.º do CP. Mas não parece que estão reunidos os pressupostos para aplicar esta norma ao presente caso.
   Deve assim proceder o recurso jurisdicional.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso e revogar o acórdão recorrido, negando provimento ao recurso contencioso.
   Custas nesta e na segunda instância pelo recorrido, com as respectivas taxas de justiça em 3 UC e 4 UC.
   
   
   Aos 15 de Dezembro de 2006.




Juízes : Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

A Procuradora-Adjunta
presente na conferência: Song Man Lei

Processo n.° 8 / 2006 13