Processo n.º 560/2015
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 5/Novembro/2015
ASSUNTOS:
- Embargos de terceiro
- Posse versus propriedade
- Conflito de presunções
- Invocação da usucapião e afirmação do direito de propriedade
SUMÁRIO :
1. O promitente comprador com uma posse boa para usucapir, ao embargar de terceiro contra uma penhora incidente sobre a fracção por si possuída, não se deve limitar a invocar a posse, pois arrisca-se a que o embargado faça valer contra esses embargos a propriedade do executado, nos termos do art. 298º, n.º 2 do CPC.
2. No caso de conflito entre a presunção da titularidade do direito a que corresponde a posse exercida pelo embargante e a presunção do direito de propriedade resultante da inscrição no registo predial, prevalece esta se anterior ao início daquela posse, nos termos do art. 1193º.
3. A usucapião para poder operar tem de ser invocada e não pode o interessado limitar-se a invocar actos de posse, ainda que integrantes da prescrição aquisitiva, e a fundar apenas naquela posse a sua pretensão de embargar, antes devendo, numa situação dessas, fundar a pretensão no direito de propriedade adquirido originariamente.
O Relator,
João Gil de Oliveira
Processo n.º 560/2015
(Recurso Civil)
Data : 5/Novembro/2015
Recorrente : - A
Recorridos : - Ministério Público
- Empresa de Fomento e Investimento B (Macau)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, Embargante nos autos à margem referenciados, vem interpor recurso interposto da sentença de fls. 171 e seguintes que julgou improcedentes os embargos deduzidos pelo ora Recorrente absolvendo, em consequência, "os embargados, Ministério Público e Empresa de Fomento e Investimento B (Macau) Limitada, do pedido" de levantamento da penhora decretada nos autos de Execução por Custas n.º CV2-07-0042-CAO-A (de que os presentes autos constituem um apenso) sobre a fracção autónoma designada "B1", do x.° andar "x", para habitação, do prédio sito em Macau na Avenida do xxx, n.º xx, Avenida xxx, n.º xxx, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º xxxxx, a fls. 37 do livro B128, penhora que se encontra registada na dita Conservatória sob a inscrição n.º yyyyy do Livro F.
Para tanto, alega, em síntese, o seguinte:
1. Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. 171 e seguintes que julgou improcedentes os embargos deduzidos pelo ora Recorrente absolvendo, em consequência, "os embargados, Ministério Público e Empresa de Fomento e Investimento B (Macau) Limitada, do pedido" de levantamento da penhora decretada nos autos de Execução por Custas n.º CV2-07-0042-CAO-A (de que os presentes autos constituem um apenso) sobre a Fracção Autónoma.
2. O Recorrente fundou os presentes embargos na posse, com os caracteres que alegou e provou, sobre a Fracção Autónoma e não obstante o Tribunal a quo ter concluído pela existência da mesma (ao reconhecer expressamente que a posse em apreço é dotada de corpus e animus possidendi e que teve o seu início em 15/10/1992 com a entrega das chaves do imóvel ao Recorrente, não tendo sofrido qualquer interrupção) considerou que o pedido do Embargante "não pode deixar de improceder face à prevalência do direito de propriedade da embargada/executada" .
3. O raciocínio da sentença recorrida assenta na circunstância de a Executada ser a titular registada da Fracção Autónoma, gozando assim da presunção prevista no artigo 7.° do CRP e que, segundo o aresto ora posto em crise, o Recorrente não logrou ilidir pois, malgrado tenha alegado e provado um conjunto de factos que lhe permitiriam invocar a aquisição por usucapião da Fracção Autónoma, não o fez expressamente o que impede tal invocação de ser eficaz (vide artigos 296.° e 1217.° do CC), o que faz com a sua posse seja meramente formal (ou seja desacompanhada do correspondente direito real), sucumbindo perante o referido direito de propriedade da Executada.
4. Ora, ao contrário do que se afirma no aresto recorrido, tendo o Embargante alegado e provado todos os pressupostos e requisitos de que depende a aquisição por usucapião da Fracção Autónoma (ou seja, tendo demonstrado que adquiriu o imóvel por esta via) tal invocação, ainda que apenas feita de forma implícita, é eficaz e deveria ter sido conhecida pelo Tribunal a quo, a isso não obstando o disposto nos artigos 1217.° e 296.° do CC.
5. Falando na posse sobre a Fracção Autónoma, importa ter presente que a mesma foi expressamente invocada na petição inicial de embargos tendo o Recorrente logrado provar que, tal como aí alegado, há mais de 22 anos vem exercendo sobre o imóvel em apreço múltiplos actos materiais correspondentes ao respectivo direito real (direito de propriedade) de que se sente titular, exercitando desde meados de Outubro de 1992 uma posse susceptível de por todos ser conhecida, mesmo os interessados, sem violência nem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e com a consciência de não estar a lesar o direito de outrem.
6. A posse nas circunstâncias e com as características acima descritas e que constam da petição inicial e da matéria de facto assente permite concluir que o Recorrente adquiriu a Fracção Autónoma por usucapião: efectivamente, a posse do Recorrente teve o seu início há mais de 22 anos, por tradição material efectuada pelo anterior possuidor, sendo pública, pacífica, de boa fé, mantendo-se ininterrupta desde então na sua titularidade pelo que, por força das disposições legais acima citadas, a aquisição por usucapião da Fracção Autónoma por parte do Recorrente efectivou-se em meados de Outubro de 2007, 15 anos após o seu início.
7. Ora, malgrado “a usucapião necessite de ser invocada para se tornar eficaz, essa invocação pode estar implícita nos termos em que é apresentada a demanda, o que acontece quando se referem todos os requisitos que a integram", o que no presente caso sucedeu sem margem para dúvidas, conforme resulta claro da matéria de facto assente a que acima se fez menção.
8. A desnecessidade de invocação expressa da usucapião a fim de a mesma poder produzir efeitos é uma questão que há muito se encontra decidida na doutrina e na jurisprudência.
9. Veja-se quanto à doutrina a anotação ao artigo 1292.° do CC de 1966 (correspondente ao artigo 1217.° do diploma que vigora em Macau) do Código Civil Anotado dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela e onde estes insignes juristas afirmam que no "(art. 303.°) [equivalente ao artigo 296.° do CC de Macau e que trata da invocação da prescrição] afirma-se a ineficácia ipso iure ou ope legis da usucapião. Há quem distinga entre ineficácia ipso iure e a impossibilidade do conhecimento oficioso pelo tribunal, não considerando inteiramente concordantes os dois princípios. Pode ver-se sobre a questão o Prof. Dias Marques (…), mas ela tem mais interesse teórico do que prático, pois se os factos conducentes à usucapião forem articulados no processo pelo interessado, é porque este quer com toda a probabilidade (até prova em contrário) aproveitar-se dos efeitos dela, ao menos subsidiariamente".
10. No que concerne à jurisprudência, e para além do acórdão do STJ acima já referido, refira-se ainda o acórdão de 3.02.1999, também do STJ cujo respectivo sumário conclui que a "usucapião considera-se invocada desde que se mostre alegado o respectivo complexo fáctico subjacente. Tal invocação pode pois ser implícita ou tácita, se os factos alegados integrarem, de modo manifesto, os respectivos elementos ou requisitos constitutivos e revelarem a intenção inequívoca de fundar o seu direito na usucapião".
11. Destarte, sem embargo de à semelhança do que sucedeu no caso a que se refere o aludido acórdão o Recorrente também não ter formulado no presente processo qualquer pedido autónomo de reconhecimento da aquisição por usucapião da Fracção Autónoma, a causa de pedir dos presentes embargos é precisamente a mesma que serviria de fundamento caso tivesse sido formulado esse pedido: a posse sobre este imóvel por parte do Recorrente, por um período superior ao prazo que a lei exige para a invocação da usucapião.
12. Por outras palavras, o facto jurídico em que assenta a pretensão formulada pelo Recorrente nos embargos é o mesmo em que assentaria o pedido de aquisição originária, por usucapião, da Fracção Autónoma: a posse sobre este imóvel iniciada em meados de Outubro de 1992 e que, tanto num caso, como no outro constitui a causa de pedir.
13. Efectivamente o que releva na sede destes embargos - onde os Embargados não pediram o reconhecimento da propriedade da Executada - é que a posse do Recorrente tivesse - como foi dado como provado que tinha - as características de uma posse fundada num modo originário de adquirir a propriedade, posse que por isso sempre se sobrepõe à presunção da propriedade de que era beneficiária a Embargada/Executada pelo facto do registo.
14. Assim, ainda que invocada de forma implícita - através da alegação (e prova) do mesmo acervo fáctico que teria sido alegado caso tivesse sido pedida a declaração de aquisição por usucapião ou seja da alegação da mesma causa de pedir - dúvidas não podem restar que a usucapião da Fracção Autónoma por parte do Recorrente produziu os respectivos efeitos, ou seja é eficaz em juízo, pelo que o Tribunal a quo estava obrigado a tê-la em conta considerando afastada a presunção resultante do registo de que beneficiava a Executada e julgando os embargos procedentes.
15. Ademais, como admite o aresto do STJ acima citado, desde que tenham sido alegados e provados os factos que integrem os respectivos requisitos, nada impede que, a fim de produzir efeitos, a usucapião apenas seja invocada em alegações de recurso interposto da sentença de primeira instância, pelo que o Recorrente vem nesta sede expressamente invocar a aquisição por usucapião da Fracção Autónoma, nomeadamente para dela este Venerando Tribunal tomar conhecimento para todos os efeitos legais.
16. Destarte, ao negar-se a conhecer a usucapião da Fracção Autónoma pelo Recorrente com base numa pretensa necessidade de aquela ter de ser expressamente invocada ("por nunca a usucapião do imóvel ter sido invocado"), ignorando que tal invocação, como acima se explicou, pode ser apenas tácita - o que, in casu, está mais do que demonstrado uma vez que o facto jurídico (causa de pedir) de que emerge a pretensão deduzida pelo Embargante (o exercício sobre o referido imóvel, por período superior aos prazos invocados, de uma posse pública, pacífica, contínua e de boa fé) é o mesmo que seria invocado na aquisição por usucapião - o Tribunal a quo fez uma errada interpretação e violou os artigos 1217.° e 296.° do CC, com isso inquinando todo o posterior raciocínio que conduz à decisão de improcedência dos embargos.
17. Assim, uma vez que a usucapião da Fracção Autónoma pelo Recorrente produziu efeitos o Tribunal a quo deveria, em virtude da retroactividade da usucapião prevista no artigo 1213.° do CC (artigo 1288.° do diploma anteriormente aplicável), ter concluído que o Recorrente é, desde meados de Outubro de 1992 (ou seja muito antes do registo da penhora em discussão), proprietário (titular do direito real de propriedade) da Fracção Autónoma.
18. Como titular do direito de propriedade sobre este imóvel (por o haver adquirido por usucapião) a posse do Recorrente é uma posse causal uma vez que o "possuidor [o Embargante] é, em simultâneo, titular do direito em cujos termos se processe o exercício possessório" e sendo causal a posse do Recorrente - por ser baseada no direito de propriedade de que ele é titular - prevalece irremediavelmente sobre o registo de propriedade a favor da Executada e o pretenso direito que emergiria do mesmo, implicando a procedência dos embargos uma vez que "só o possuidor causal, ou o possuidor formal de coisa não pertencente ao executado, pode ter a segurança, uma vez provada a causa de pedir, de que os embargos não serão julgados improcedentes".
19. Doutro passo, como possuidor da Fracção Autónoma o Recorrente goza da presunção de ser o proprietário deste imóvel, conforme resulta do disposto no artigo 1193.° do CC (artigo 1268.° do diploma de 1966), presunção que o registo de propriedade ainda existente a favor da Executada não ilide de forma alguma.
20. Efectivamente, a invocação em sede de petição inicial dos factos que constituem fundamento (causa de pedir) da aquisição por usucapião do imóvel penhorado faz com que esta aquisição, ainda que apenas invocada implicitamente, seja, para todos os efeitos legais, eficaz e, consequentemente, se tenha por devidamente invocada para valer em juízo.
21. Assim, face à alegação do mencionado acervo fáctico (de que, repita-se, resulta a existência de uma posse causal), era aos Embargados/Recorridos que competia ilidir a aludida presunção derivada do artigo 1193.° do CC, o que só poderiam ter feito caso a matéria de facto constante da base instrutória e que demonstra aquisição por usucapião do imóvel pelo Recorrente não tivesse sido considerada provada.
22. Por outro lado, também a pretensa exceptio, consubstanciada na presunção fundada no registo de propriedade da Fracção Autónoma a favor da Executada (a que alude a segunda parte do n.º 1 do citado artigo 1193.° do CC) se tem de considerar devidamente impugnada e ilidida pelo Embargante precisamente por, na petição inicial, ter alegado factos que demonstram a usucapião do imóvel e que, consequentemente, a sua posse sobre o mesmo, por se fundar no direito de propriedade, é causal.
23. Com efeito, com a prova da matéria constante da base instrutória (que, reitere-se, demonstra a prescrição aquisitiva do imóvel por parte do Embargante) este, por seu turno, logrou ilidir a presunção derivada do artigo 7.° do CRP, uma vez que na ordem jurídica de Macau a usucapião prevalece sempre sobre o registo, o que significa que também o registo de penhora que incide sobre a Fracção Autónoma em nada afecta os direitos que para o Recorrente emergem da mencionada aquisição originária.
24. Em suma, sendo a usucapião uma modalidade de aquisição originária, que produz efeitos desde a data do início da posse, provocando a extinção de quaisquer direitos incompatíveis, a mesma não cede perante registo anterior.
25. A sentença recorrida devia, pois, ter concluído pela reunião no presente caso dos requisitos da aquisição por usucapião da Fracção Autónoma por parte do Recorrente e, conhecendo desta questão, e julgando causal a posse do mesmo sobre o dito imóvel, com a consequente ilisão da presunção do direito de propriedade a favor da Executada/Embargada derivada do registo, declarado a procedência dos embargos.
26. Ao pronunciar-se em sentido contrário, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 298.° do CPC e também os artigos 296.°, 1193.°, 1210.°, 1212.°, 1213.°, 1217.°, 1218.° e 1221.°, todos do CC e, como tal, deve ser substituída por outra que, julgando procedentes os embargos, ordene o levantamento da penhora que incide sobre a Fracção Autónoma.
Nestes termos e nos mais de Direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso sendo, como tal, proferida decisão que, revogando a sentença de fls. 171 e seguintes, julgue procedentes os presentes embargos e ordene o levantamento da penhora decretada nos autos de Execução por Custas n.º CV2-070042-CAO-A (de que os presentes autos constituem um apenso) sobre a fracção autónoma designada "B1", do x.° andar "x", para habitação, do prédio sito em Macau na Avenida do xxx, n.º xx, Avenida xxx, n.º xxx, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º xxxxx, a fls. 37 do livro B128 (doravante a "Fracção Autónoma"), penhora que se encontra registada na dita Conservatória sob a inscrição n.º yyyyy do Livro F.
O recurso não foi contra-alegado.
Foram colhidos os vistos legais.
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
Da Matéria de Facto Assente:
- Por despacho de 27/01/2011, proferido nos autos de execução apensos, foi ordenada a penhora da fracção autónoma designada “B1”, do xº andar “x”, para habitação, do prédito sito em Macau na Avenida do xxx, n.º xx, Avenida xxx, n.º xxx, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º xxxxx, a fls. 37 do livro B128, tendo tal penhora sido efectuada por termo de fls. 36 dos mesmos autos e registada por apresentação de 21/02/2011 (alínea A) dos factos assentes).
***
Da Base Instrutória:
- No dia 11 de Janeiro de 1992, o Embargante celebrou com a 2ª Embargada, proprietária registada da fracção autónoma identificada em A), um acordo nos termos do qual o Embargante prometeu comprar e a 2ª embargada prometeu vender-lhe a referida fracção autónoma, acordo este titulado pelo documento cujo cópia se encontra junta a fls. 15 subscrito em nome de Embargante por C (resposta ao quesito 1º da base instrutória).
- Promitente vendedora e promitente-comprador (respectivamente 2ª Embargada e Embargante) acordaram expressamente que o preço de venda da dita fracção seria de HKD$448.800,00 (quatrocentos e quarenta e oito mil, e oitentos dólares de Hong Kong) (resposta ao quesito 2º da base instrutória).
- O Embargante havia pago à 2ª Embargada, em 28 de Dezembro de 1991, a título de sinal e antecipação do pagamento do preço, a quantia de HKD$200.000,00 (resposta ao quesito 3º da base instrutória).
- O remanescente do preço convencionado foi pago pelo Embargante à 2ª Embargada em 7 de Maio de 1992 e 15 de Outubro de 1992 (resposta ao quesito 4º da base instrutória).
- Após o pagamento integral do preço, a 2ª Embargada entregou ao Embargante, sensivelmente na mesma data em que tal pagamento ocorreu, as chaves da fracção “B1”, que o Embargante havia prometido comprar (resposta ao quesito 5º da base instrutória).
- Tendo o Embargante imediatamente ocupado o imóvel (resposta ao quesito 6º da base instrutória).
- Ocupação essa que, desde então e até hoje, o Embargante passou a exercer de forma exclusiva (resposta ao quesito 7º da base instrutória).
- Desde a data em que pagou a totalidade do preço de aquisição da fracção “B1” e recebeu as respectivas chaves (em meados de Outubro de 1992) que o Embargante sempre agiu na convicção e com a intenção de exercer sobre o referido imóvel o direito de propriedade como um verdadeiro direito próprio (resposta ao quesito 8º da base instrutória).
- Após ter recebido as chaves da fracção “B1” o Embargante decidiu proceder à sua limpeza com o fito de aí instalar o seu domicílio (resposta ao quesito 9º da base instrutória).
- Tendo igualmente, com o mesmo propósito, mobilado a fracção autónoma (resposta ao quesito 10º da base instrutória).
- Tendo instalado ainda alguns electrodomésticos, tudo na convicção de ser tratar do verdadeiro e único proprietário deste imóvel (resposta ao quesito 11º da base instrutória).
- Em data não apurada depois de receber a fracção autónoma, o Embargante procedeu à mudança para seu nome do contador relativo ao fornecimento de energia eléctrica no dito imóvel (resposta ao quesito 12º da base instrutória).
- Procedendo desde então, a suas expensas, ao pagamento das respectivas despesas (resposta ao quesito 14º da base instrutória).
- As despesas relativamente ao fornecimento de água na fracção “B1” que são exclusivamente pagas pelo embargante, não obstante nas respectivas facturas constar o nome de C (resposta ao quesito 15º da base instrutória).
- É também o Embargante quem, desde a data em que procedeu ao pagamento integral do preço estipulado para a compra e venda, e até hoje, vem procedendo ao pagamento das respectivas despesas de condomínio (resposta ao quesito 16º da base instrutória).
- Todas as supra mencionadas despesas foram suportadas exclusivamente pelo Embargante que as fez por sua conta e na plena convicção de estar a cuidar do seu imóvel (resposta ao quesito 17º da base instrutória).
- Por volta de finais de 1992 o Embargante passou a residir na fracção “B1”, na convicção de se tratar do seu verdadeiro e único proprietário (resposta ao quesito 18º da base instrutória).
- Passado algum tempo após ter começado a residir na fracção “B1” o Embargante emigrou para os Estados Unidos da América (EUA) deixando, como tal, de ter residência no referido imóvel (resposta ao quesito 19º da base instrutória).
- Isso em nada abalou a convicção do Embargante de ser o exclusivo proprietário da fracção autónoma “B1” (resposta ao quesito 20º da base instrutória).
- Foi nessa convicção que, antes da sua partida para os EUA o Embargante encarregou o seu irmão D de, em seu nome, providenciar pelo dito imóvel tendo-lhe, para o efeito, entregado as respectivas chaves (resposta ao quesito 21º da base instrutória).
- Em cumprimento das instruções do Embargante, D passou a deslocar-se periodicamente à fracção “B1”, de modo a certificar-se do seu estado de conservação e a proceder à sua limpeza (resposta ao quesito 22º da base instrutória).
- Esta situação manteve-se sensivelmente até ao ano de 2003 altura em que, devido a afazeres profissionais, o irmão do Embargante não mais se pôde encarregar da tarefa que este lhe havia incumbido (resposta ao quesito 23º da base instrutória).
- Nessa altura o Embargante solicitou a uma sua amiga, de nome E, que passasse a desempenhar as funções que anteriormente eram levadas a cabo pelo seu irmão (resposta ao quesito 24º da base instrutória).
- A Sra. E acedeu ao pedido do Embargante, tendo recebido as chaves da fracção “B1” e passado, a solicitação deste, a deslocar-se uma ou duas vezes por ano ao imóvel a fim de se certificar do seu estado de conservação e zelar pela sua manutenção (resposta ao quesito 25º da base instrutória).
- Nesse âmbito, a Sra. E continuou, à semelhança do que fazia o irmão do embargante, a, em nome e sob as instruções deste, efectuar a limpeza da fracção e a providenciar pelo pagamento das despesas de condomínio, do abastecimento de água e electricidade (resposta ao quesito 26º da base instrutória).
- Mais recentemente, a Sra. E solicitou ao Embargante que a autorizasse a residir temporariamente na fracção “B1”, juntamente com o seu marido e os dois filhos, tendo o Embargante acedido ao pedido desta, autorizando-a a residir na fracção “B1”, com o seu agregado familiar (resposta ao quesito 27º da base instrutória).
- Após receber esta autorização a Sra. E decidiu inclusive instalar na fracção “B1” uma máquina de lavar a roupa e novos armários de forma a torná-la mais confortável (resposta ao quesito 29º da base instrutória).
- Concluída a instalação dos supra mencionados equipamentos a Sra. E e a sua família passaram a residir na fracção “B1” no início deste mês de Outubro de 2012 (resposta ao quesito 30º da base instrutória).
- O embargante agiu sempre sobre a fracção autónoma penhorada com a exclusão de outrem e com a intenção e convicção de se tratar do seu legítimo e único proprietário (resposta ao quesito 31º da base instrutória).
- Desde 15 de Outubro de 1992 (data em que procedeu ao pagamento da última prestação do preço de aquisição da fracção “B1”) que o Embargante é o único responsável pela mesma já que a sua vendedora – a proprietária registada e 2ª Embargada – se desinteressou totalmente deste imóvel por não mais o considerar seu (resposta ao quesito 32º da base instrutória).
- O embargante agiu sempre sobre a fracção autónoma penhorada à vista de todos, sem violência, nem oposição de ninguém e de forma ininterrupta desde (data de entrega das chaves) e até aos dias de hoje (resposta ao quesito 33º da base instrutória).
- Para esse efeito, o Embargante pagou em 2 de Outubro de 1992 o Imposto de Sisa (resposta ao quesito 35º da base instrutória).
- Depois de se encontrar nos EUA o Embargante tentou contactar com a 2ª embargada no sentido de ser outorgada a escritura pública de compra e venda (resposta ao quesito 37º da base instrutória).
- Todas as tentativas se revelaram infrutíferas, não tendo o Embargante conseguido localizar os responsáveis da 2ª Embargada para a mencionada outorga da escritura pública (resposta ao quesito 38º da base instrutória).
III – FUNDAMENTOS
1. O caso
Conta-se em poucas palavras.
A, o embargante prometeu comprar há mais de vinte anos o prédio X a B, recebeu as chaves, pagou a totalidade do preço, tomou a posse do imóvel, ao longo de todo este tempo se comportando como se fosse o dono, de forma pública, contínua, pacífica e de boa fé.
Não celebrou, porém, a escritura pública e, embora tenha alegado que a não fez por culpa da promitente vendedora, p certo é que o não logrou provar – pelo menos não vem fixada tal matéria, fáctica.
Até que um belo dia se vê surpreendido com uma penhora incidente sobre X, na sequência de uma execução que C move contra B.
Reage, embargando de terceiro. Não invoca o direito de retenção - porventura por não poder provar a imputação do incumprimento ou a não celebração da escritura a terceiro, não interessa -, e não invoca o seu direito de propriedade adquirido por usucapião. Limita-se a invocar a posse sobre a coisa, posse esta que vem cabalmente demonstrada. Como se proprietário fosse, é certo, mas invocando apenas a posse. Não se diz proprietário, apenas que possuía comportando-se como tal.
Por seu lado, do lado dos embargados, apenas o MP responde, limitando-se à impugnação dos actos de posse, ora dizendo que os desconhece, ora dizendo que o alegado não conforma tal situação jurídica.
A sentença proferida julgou improcedentes os embargos, pois não obstante provada a posse do embargante, “o seu pedido não pode prevalecer sobre o direito de propriedade da embargada/executada.”
Quid juris?
2. Atentemos na doutíssima fundamentação jurídica da sentença:
“Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
Pelos presentes embargos, pede o embargante que lhe seja reconhecida a posse que alega ter sobre a fracção autónoma penhorada nos autos de execução de que os presentes embargos são apenso a fim de ser ordenado o levantamento do referido penhora.
Para o efeito, alega que é possuidora do imóvel desde 15 de Outubro de 1992 porque a embargada/executada lhe entregou as chaves da fracção autónoma em virtude de um contrato-promessa de compra e venda deste imóvel celebrado entre o embargante e a embargada/executada tenda o embargante pago integralmente o preço e, a partir daí, vindo a usar e fruir o imóvel com se sua proprietária fosse.
Contestando veio o embargado/exequente impugnar os factos alegados pelo embargante, em especial, os factos relativos à posse.
Pelo que, urge analisar sucessivamente as seguintes questões:
1. Posse;
2. Ofensa da posse;
3. Direito de propriedade da embargada/executada; e
4. Pedido do embargante.
**
Posse
Como foi referido logo no início, o embargante fundamenta a sua pretensão na posse que alegadamente tem sobre o imóvel penhorado, posse esta adquirida com a entrega das chaves do mesmo pela embargada/executada na sequência do contrato-promessa acima referido e que se manifesta com a prática dos actos indicados pela embargante no requerimento de embargos.
“Posse é o poder que se manifesta quando alguém actual por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.” – artigo 1175º do CC.
Conforme Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in Direitos Reais, Livraria Almedina, Coimbra, pgs 181, 189 a 190, “Dos artºs 1251º e 1253º do CC (a que correspondem aos artigos 1175º e 1177º do CC de Macau), verifica-se que a posse exige o “corpus” e o “animus” identificando-se o corpus “... como os actos materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos poderes sobre a coisa” e traduzindo o animus “... na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados.”.
*
Dos factos provados, vê-se que o embargante e a embargada/executada celebraram em 11 de Janeiro de 1992 um contrato-promessa em que aquele prometeu comprar e esta prometeu vender a fracção autónoma penhorada pelo preço de HK$448.000,00 tendo o embargante pago a totalidade do preço.
Apesar de estar provado que esse contrato ter sido subscrito por C e nada dos autos demonstrar que este tinha poderes de representação da embargada/executada, em nada fica afectada a apreciação que se segue. É que, o que se discute aqui é a existência ou não da posse alegada pelo embargante que não pressupõe a validade e eficácia do contrato em questão.
Mais está assente que por volta de 15 de Outubro de 1992, a embargada/executada, enquanto promitente vendedora, entregou à embargante, enquanto promitente compradora, as chaves do imóvel e, desde então, o embargante tem vindo a ocupá-lo de forma exclusiva até hoje designadamente residindo nele desde finais de 1992 até antes de emigrar para os Estados Unidos da América, tendo, para o efeito, feito limpezas e instalado nele alguns electrodomésticos nele, mobilado o imóvel, mudado para o seu nome o contador relativos ao fornecimento de energia eléctrica. Também está provado que, depois da sua emigração, encarregou sucessivamente duas pessoas para cuidarem do imóvel fazendo limpeza no mesmo tendo até deixado a última a residir no imóvel recentemente. Isso no que diz respeito a uso do imóvel.
Mais está apurado que o embargante procedeu ao pagamento das despesas de condomínio, de água e de electricidade da fracção autónoma sub judice.
Também está apurado que o embargante praticou tais actos com a intenção e convicção de se tratar do seu legítimo e único proprietário.
A tudo isso acresce que, desde 15 de Outubro de 1992, o embargante passou a ser o único responsável pela fracção autónoma porque a embargada/executada se tinha desinteressado totalmente do imóvel.
Ora, se a mera detenção de chaves resultante da entrega das mesmas pela embargada/executada, proprietária do imóvel não consubstanciar necessariamente actos típicos do titular de um qualquer direito real, pois um arrendatário ou comodatário pode ter nas suas mãos as chaves do bem arrendado ou emprestado, os actos materiais praticados pelo embargante vão muito mais além do que os actos praticados por uma mero detentor. Com efeito, a celebração de contrato de fornecimento de electricidade e a incumbência de alguém para cuidar do imóvel mesmo depois de se ter emigrado para o estrangeiro, autorizando este alguém a residir no imóvel, não são actos que meros detentores praticam. Pois, nenhum arrendatário manteria um imóvel arrendado quando se emigra para o estrangeiro, pois não necessitaria do imóvel para residir. Perspectivando as coisas do lado oposto, no caso de mera detenção em que não se considera o imóvel seu, evita-se sempre ter esse tipo de trabalho e despesas.
Isso no que diz respeito ao corpus.
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Sustenta o embargado/exequente que a embargante não tem qualquer animus possidendi porque bem sabe que o contrato-promessa não tem a virtualidade de lhe transmitir a propriedade do imóvel prometido comprar mostrando-se até preocupado com a celebração da escritura pública de compra e venda. Nessa base, o mesmo não podia legitimamente ter qualquer convicção de se ser um verdadeiro proprietário do imóvel.
Perspectivando as coisas a partir dos efeitos do contrato-promessa, assiste toda a razão ao embargado/exequente visto que, de facto, o embargante não tem qualquer expectativa legítima de se considerar proprietário do imóvel pela simples celebração do contrato-promessa. Desse contrato só lhe advém o direito de exigir a celebração do contrato de compra e venda prometido e apenas com a celebração deste contrato é que o embargante adquire a propriedade do imóvel. Assim, não pode o embargante razoavelmente considerar-se proprietário do imóvel antes da celebração da compra e venda.
Contudo, é bom não olvidar a situação dos autos.
As chaves foram entregues ao embargante o que lhe faculta o acesso sem restrição ao imóvel tendo o embargante, na sequência disto, vindo a usar o imóvel como se fosse coisa sua limpando-o, mobilando-o, instalando nele electrodomésticos, pagando as despesas pelo seu uso, incumbindo terceiros para tomar conta do imóvel mesmo depois de se emigrar para o estrangeiro. Da parte da embargada/executada, verifica-se que, depois da celebração do contrato-promessa, a mesma deixou de se interessar pelo imóvel passando o embargante a ser o único responsável pelo mesmo.
Essa atitude da embargada/executada legitima o entendimento do embargante de que, afinal, aquela deixou de se considerar proprietária do imóvel. Ora, é com base nessa atitude da embargada/executada que se pode configurar os actos acima descritos como uma manifestação do carácter real da sua actuação sobre o imóvel.
Verifica-se, pois, também animus possidendi no presente caso.
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Ofensa da posse
Com base no acima expendido, conclui-se que o embargante é, de facto, possuidor do imóvel penhorado.
Dispõe o artigo 1210º do CC que “O possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei do processo.”
Nos termos do artigo 292º, nº 1, do CPC, “Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.”
Está assente que o imóvel possuído pelo embargante se encontra penhorado nos autos de execução apensados aos autos de acção ordinária de que os presentes embargos são também apenso. Há, efectivamente, ofensa da sua posse visto que a posse do embargante pode ser posta em causa pela penhora efectuada.
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Direito de propriedade da embargada/executada
Na contestação apresentada pelo embargado/exequente, este salientou que o direito de propriedade do bem penhorado continuava registado em nome da embargada/executada.
Conforme a certidão de registo predial junta a fls 115 a 122, a embargada/executada é a proprietária da fracção autónoma penhorada, facto, aliás, nunca impugnado pelo próprio embargante.
Nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial, “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”
Tendo em conta o expendido, é de reconhecer que o direito de propriedade sobre o bem penhorado pertence à embargada/executada.
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Nem se diga que do artigo 1193º, nº 1, do CC também consta uma presunção de titularidade do direito a favor da embargante. É que, não se pode omitir a ressalva constante da segunda parte da mesma norma. Segundo o referido preceito, “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.” (sublinhado nosso).
Ora, a individualização do direito de propriedade a favor da embargada/executada teve lugar em 8 de Julho de 1992, quando foi efectuado o registo da constituição da propriedade horizontal do prédio onde o edifício de que a fracção autónoma penhorada faz parte está construído. A posse do embargante não podia ter iniciado antes de 15 de Outubro de 1992, data em que lhe foram entregues as chaves do imóvel arrestado. Do confronto das duas presunções, a da embargada/executada prevalece sobre a do embargante.
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Também não releva o facto de estar provado que a posse do embargante teve início por volta de 15 de Outubro de 1992, isto é, há mais de 22 anos, tempo suficiente para a aquisição do direito de propriedade do bem por via da usucapião.
É que, como foi já salientado no despacho de indeferimento liminar de fls 39 a 40, despacho este reparado a fls 91 a 94, em nenhum momento o embargante fez referência à aquisição originária do bem penhorado fundada na posse por si invocada para fundamentar o seu pedido de levantamento da penhora. De facto, não consta do requerimento de embargos qualquer alusão ao instituto da usucapião.
Baseando-se essa forma de aquisição originária na prescrição positiva ou aquisitiva do respectivo direito, cabe ao interessado invoca-la não podendo o tribunal conhecê-la oficiosamente. Esse aspecto também foi realçado no despacho de indeferimento liminar o qual fez referência à remissão expressa feita pelo artigo 1217º do CC ao artigo 296º do mesmo Código.
De facto, estipula o artigo 1217º do CC que “São aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição, bem como o preceituado nos artigos 293º, 295º, 296º e 298º.” (sublinhado nosso).
E nos termos do artigo 296º, nº 1, do CC, “O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita ou pelo seu representante.”
Pelo que, para os efeitos sub judice, o embargante é tão-só possuidor do imóvel penhorado sendo a embargada/executada a sua proprietária.
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Resta saber se, nestes autos, a posse do embargante prevalece sobre a propriedade da embargada/executada.
Ensina o Insigne Mestre Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol. I – Reimpressão, Coimbra Editora, Lim., Coimbra – 1992, pg 457, que “Pode realmente suceder que o embargante estivesse na posse dos bens arrestados ou penhorados e que, apesar disso, o titular do direito de propriedade seja o arrestado ou o executado. Em tal caso ao embargado é lícito contrapor e sobrepor a questão de propriedade à questão de posse. Não se arroga, ele próprio, o direito de propriedade; mas invoca o direito de propriedade do arrestado ou do executado; e se a sua alegação for julgada procedente, os embargos naufragam, embora se fundassem sobre posse pertencente ao embargante. É que, no conflito entre o direito de propriedade e o direito de posse, aquele prevalece sobre este, como já pusemos em relevo a propósito das acções possessórias.” (sublinhado nosso)
Entende José Lebre de Freitas, A acção executiva à luz do código revisto, 3ª edição, Coimbra Editora, pg 246, que “Quando os embargos de terceiro são fundados apenas na posse …, a legitimidade activa baseia-se numa presunção de propriedade (ou de outro direito real de gozo) que, como tal, pode ser ilidida, vindo o art. 357-2 proporcionar, que ao exequente, quer ao executado a alegação e a prova de que o direito de fundo (seja o direito de propriedade, seja outro direito real de gozo) pertence a este. Provada a alegação, os embargos serão julgados improcedentes. Uma vez que a questão da propriedade, após a sua invocação pelo embargado, prevalece sobre a da posse, só o possuidor causal, ou o possuidor formal da coisa não pertencente ao executado, pode ter a segurança, uma vez provada a causa de pedir, de que os embargos não serão julgados improcedentes.” (sublinhado nosso)
Por sua vez, defende Manuel Mesquita, A apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro, 2ª edição revista e aumentada, Almedina, pg 151, que “A improcedência dos embargos … pode decorrer de dois motivos: 1º - O terceiro não consegue provar a posse alegada ou o direito real limitado directamente invocado na petição dos embargos; 2º - O embargante faz prova da posse, mas vem a provar-se, após alegação nesse sentido (veja-se o nº 2 do art. 357º), que o executado é o proprietário pleno da coisa.” (sublinhado nosso)
Por nunca a usucapião do imóvel ter sido invocado, a posse da embargante não passa de uma posse formal porque a embargante não é titular de nenhum direito real1 e continua a consubstanciar-se numa situação de facto merecedora de alguma protecção jurídica prevista na lei. Porém, nunca a mesma prevalece sobre o direito de propriedade da embargada/executada.
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Aliás, nem podia deixar de ser assim visto que “Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.”
Sendo a embargada/executada a proprietária do imóvel, este bem responde pelas dívidas que esta tem perante os seus credores designadamente o embargado/exequente não podendo a posse do embargante obstar a esta responsabilização.
Impõe-se, portanto, a improcedência dos embargos face à prevalência do direito de propriedade da embargada/executada.
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Em idêntico sentido decidiu o Acórdão da Relação de Coimbra, de 28 de Março de 2000, CJ, Ano XXV, Tomo II – 2000, pgs 22 a 27, para um caso bastante semelhante ao dos presentes autos em que o embargante apenas fundamentou os embargos deduzidos na sua posse sobre vários imóveis penhorados ou a penhorar (facto não dado como provado no respectivo processo) mas que a propriedade dos mesmos ainda se encontrava registada em nome do embargado/executado.
Segundo esse aresto “… na situação de posse meramente formal, como a que resultaria da alegação produzida na petição de embargos (decorrente de um contrato de compra e venda nulo incapaz de transferir o direito de propriedade), ainda que se provasse a posse, sempre cederia perante a prova de que o direito de propriedade em nome do qual foram realizadas ou se pretendem realizar as penhoras continua a pertencer ao executado. Em primeiro lugar, porque, com ressalva das excepções legalmente previstas, todo o património do devedor está afecto ao cumprimento das suas obrigações, nos termos dos arts. 601º e 817º do CC (os correspondentes aos artigos 596º e 807º do CC de Macau), sem exclusão, é claro, dos bens que se encontrem na posse do terceiro, atento o disposto no art. 831º do CPC, os quais, apesar disso podem ser penhorados. Em segundo lugar, porque, apesar de a posse, quando realmente esteja comprovada, constituir uma situação de facto juridicamente protegida, o sistema jurídico deu prioridade, como é natural, ao direito real de gozo, ficando a situação do possuidor apenas protegida quando a presunção da posse prevaleça sobre outra presunção ou quando a sua duração seja tal que fiquem reunidos os requisitos da aquisição originária do direito de propriedade, por via da usucapião, caso em que, a par da posse, passa a coexistir o correspondente direito real absoluto. No caso concreto, tendo sido penhorados os bens no pressuposto de que pertenciam aos executados, e encontrando-se provado que esse direito de propriedade ainda se mantém, por não ter sido validamente alienado a terceiro, ainda que pudesse concluir-se por uma situação de posse, o facto de ser não titulada e de estar limitada pelo período de 9 anos mostrar-se-ia insuficiente para impor à força derivada o direito real.” (sublinhado nosso)
Idêntico desfecho teve o caso2 decidido no Acórdão do Tribunal de Última Instância, de 9 de Abril de 2014, proferido no processo nº 4/2013. Nesse aresto pode-se ler o seguinte: “Ora, quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse do direito de propriedade – como foi caso – o reconhecimento do direito de propriedade conduz a que os embargos sejam julgados improcedentes, a menos que a posse invocada pelo embargante fosse causal.”
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Contra a evidência da solução propugnada poder-se-á invocar a norma do artigo 298º, nº 2, do CPC para concluir que os embargos devem, antes, ser julgados procedentes.
Estipula o artigo 298º do CPC que “1. Recebidos os embargos, são notificadas para contestar as partes primitivas, seguindo-se os termos do processo ordinário ou sumário de declaração, conforme o valor dos embargos. 2. Quando os embargos apenas se fundem na invocação da posse, pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento, quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida.”
Nos presentes autos, o embargado/exequente, o único demandado que contestou a pretensão do embargante limitou-se a impugnar a posse do embargante e a afirmar que o direito de propriedade ainda está registado em nome da embargada/executada (cfr. artigo 15º da contestação de fls 98 a 104).
Portanto, nenhum dos embargados pediu o reconhecimento de que o direito de propriedade do bem arrestado pertence à embargada/executada nos termos do artigo 298º, º 2, do CPC.
Será, então, essa omissão motivo para deixar de atender o facto de estar provado nos presentes autos que a embargada/executada é proprietária da fracção autónoma arrestada?
Julga-se que não.
Senão, vejamos.
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Em primeiro lugar, dispõe o artigo 567º do CPC que “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 5º.”
Nos presentes autos, o embargante alega que é possuidora do imóvel penhorado e o embargado/exequente, por sua vez, defende que a embargada/executada é a proprietária do mesmo imóvel. Da abordagem feita mais acima conclui-se que o embargante detém a posse da fracção autónoma, posse esta meramente formal, e a embargada/executada é titular do direito de propriedade do mesmo bem.
A nível do direito substantivo, também na apreciação já feita, entendeu-se que a posição da embargada/executada prevalece sobre a posição do embargante, ou seja, o direito de propriedade daquela impõe-se à posse deste devendo o bem penhorado responder pelas dívidas da embargada/executada, não obstante o mesmo estar na posse do embargante.
Pelo que, em termos de direito substantivo, impõe-se a improcedência dos embargos.
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Em segundo lugar, deve-se ter em conta que a norma do artigo 298º, nº 2, do CPC é tão-só uma faculdade conferida aos embargados permitindo-lhes pedir a declaração judicial expressa de que o embargado/executado é o titular do direito de propriedade, se nisto acharem interesse. É que, não se pode olvidar que assiste aos embargados, em primeira linha, o direito de contestar a pretensão do embargante como vem cristalinamente previsto na norma do nº 1, contestação esta que abrange obviamente a faculdade de invocar a propriedade do embargado/executado para excepcionar a pretensão do embargante.
Tendo em conta a localização sistemática da norma do artigo 298º, nº 2, do CPC, essa faculdade não pode deixar de ser qualificada como meramente processual e, como tal, o seu não uso não pode pôr em causa as regras de direito substantivo quanto à hierarquização das posições relativas das partes, cuja aplicação ao caso concreto consubstancia um poder-dever do juiz nos termos da já citada norma do artigo 567º do CPC.
Qual é, então, a verdadeira natureza dessa norma do artigo 298º, nº 2, do CPC?
Novamente, o já aludido Acórdão da Relação de Coimbra pode-nos dilucidar essa questão, “ … podendo ver-se no art. 357º, º 2, do CPC (o correspondente ao artigo 298º, nº 2, do CPC de Macau), uma das formas por que pode ampliar-se o objecto do processo através da formulação de uma pretensão reconvencional (malgrado estarmos no âmbito de um incidente de intervenção de terceiros), não se esgotam aí os meios de defesa que podem ser invocados contra a improcedência dos embargos. Teixeira de Sousa acaba por confirmar esta asserção quando conclui que ‘além da exceptio dominii, os embargados podem invocar qualquer outra excepção oponível à posse e ao direito alegado pelo terceiro”, dando como exemplos, a invocação da nulidade, por simulação, da transmissão dos bens ou a impugnação pauliana. Remédios Marques, no mesmo sentido, admite expressamente que a questão da titularidade, em vez de integrar uma pretensão reconvencional, se traduza na invocação de uma excepção peremptória. E na verdade, o que resulta do art. 357º, nº 1, do CPC (o correspondente ao artigo 298º, nº 1, do CPC de Macau), é que a partir da admissão liminar dos embargos de terceiro, são notificados “para contestar” as partes primitivas, seguindo-se os termos do processo comum. Deste modo, não excluindo a lei qualquer tipo de defesa, nada obsta a que a questão do confronto entre a posse e o direito seja o resultado de defesa por impugnação ou por excepção, ambas podendo produzir um dos resultados possíveis, ou seja, a improcedência dos embargos. O facto de o nº 2, do art. 357º do CPC admitir a pretensão reconvencional deve ser visto tão só como interferência no direito processual do importante princípio da economia que, assim, confere ao embargado a possibilidade de aproveitar o processo para nele discutir e conseguir a definição, com força de caso julgado material, da questão da titularidade do direito, nos termos do art.358º do CPC. Ou seja, essa norma, em vez de ser limitativa do género de intervenções processualmente admissíveis, vem ampliar as possibilidades que, de outro modo, ficariam limitadas pelo estreiteza da norma geral reguladora da reconvenção (art. 274º do CPC)” – (sublinhado nosso)
Pelo que, também não é por força das regras processuais que os embargados devam ser julgados procedentes.
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Pedido da embargante
Pede o embargante que seja ordenado o levantamento da penhora que incide sobre a fracção autónoma a que os presentes autos se referem.
Mais acima já foi referido que houve, efectivamente, ofensa à posse que o embargante tem sobre a fracção autónoma penhorada. Por outro lado, conclui-se também que o direito de propriedade do mesmo imóvel pertence à embargada/executada.
Da análise feita conclui-se que, apesar de estar provada a posse do embargante, o seu pedido não pode deixar de improceder face à prevalência do direito de propriedade da embargada/executada.
Assim, é de julgar improcedente o pedido de levantamento da penhora. “
3. Como tivemos ensejo de dizer, não está em causa o direito de retenção expressamente conferido por lei ao promitente comprador, nos termos do artigo 745º, n.º 1, f) do CC. Ainda que o recorrente tenha invocado um alegado incumprimento pela promitente vendedora, não fundamenta o seu pedido em qualquer direito de retenção, sendo que, de todo o modo, tal não vem provado e não deixamos de ter presente que essa necessidade de alegação e invocação foi o argumento invocado pelo TUI, no Processo n.º 4/2003, para entender em sentido diverso do que decidíramos no processo Processo n.º 425/2012.
Desde já se adianta que nesse mesmo acórdão para além de se entender que não havia sido alegado de qualquer forma, nem sequer implicitamente o incumprimento, de todo o modo, não provado, não se deixa ali de referir que o embargante também ali não invocara a usucapião, pelo que a sua posse por não ser causal do pretenso direito a que corresponderia não era boa para embargar – “E é certo que não foi invocada a aquisição da propriedade por usucapião, designadamente, na réplica, daí que é seguro que a sua mera posse não causal soçobra perante a prova da propriedade.” (vd. proc. cit.)
4. Resta-nos a questão relativa aos embargos por posse do embargante versus propriedade do executado.
Por mais voltas que se dêem, o facto é que o embargante, tendo todas as condições para tal, na sua petição de embargos, esgrimiu apenas com a posse e não invocou a aquisição originária do direito de propriedade por prescrição aquisitiva resultante da sua posse sobre a coisa.
No despacho de reparação do agravo por indeferimento da petição de embargos foi proferido um despacho bem elucidativo e que premonitoriza, já, de certa forma, o desfecho do processo, constatando-se aí que não fora invocado o direito de retenção nem o direito de propriedade. Alega tão-somente uma posse como se proprietário fosse, o que é diferente de se dizer e arrogar proprietário.
Foi aquele proferido nos seguintes termos:
““Não tendo a decisão rec6rrida conhecido do mérito da causa, cabe proferir despacho de reparação/sustentação. Com efeito, não se julgaram os embargos procedentes nem improcedentes, apenas se indeferiram liminarmente, embora com fundamento na sua manifesta improcedência. Crê-se assim que há lugar ao presente despacho.
Continuamos a ter por acertada a tese que defende que o possuidor não pode defender a sua posse correspondente ao direito de propriedade contra o proprietário e contra o demandante deste.
E até há bem pouco tempo tínhamos isso por evidente no direito de Macau.
Entretanto, foram proferidos já três acórdãos do Venerando Tribunal de Segunda instância que decidiram em sentido contrário ou em sentido incompatível, um deles mandando mesmo levantar a penhora a pedido formulado em embargos de terceiro que tinham a ofensa da posse por causa de pedir3. Este acórdão não transitou ainda em julgado, tendo sido impugnado por meio de recurso para o TUI. Um outro acórdão foi proferido que, embora não tendo ordenado o levantamento da penhora, segue entendimento condizente e transitou em julgado4. E um outro determinou que, em face de um despacho de indeferimento liminar como o aqui proferido, prosseguissem os autos, tendo também transitado em julgado5.
Respeitosamente, continuamos a entender que a boa doutrina é que defende que o possuidor cuja posse é correspondente ao direito de propriedade não pode defender essa posse contra o proprietário nem contra o demandante deste.
Refira-se que os embargantes não invocaram direito de retenção ou direito à execução específica, nem posse correspondente a direito real de garantia, nem usucapião. Invocaram posse em termos de direito de propriedade. Afigura-se-nos até que dar razão aos recorrentes com base num eventual direito de retenção; num eventual direito à execução específica; em eventual posse correspondente a outro direito real que não o de propriedade ou com base em usucapião, não tendo sido esses fundamentos invocados como causa de pedir, é decidir com base em matéria não pedida nem sujeita a contraditório, podendo rondar o excesso de pronúncia ou não se conter bem no princípio do pedido. E mais, não temos por correcto concluir que o direito de retenção e a eventual posse que nele se espelhe sejam incompatíveis com a penhora.
Mas isso não interessa agora. Com efeito para sustentar o despacho de indeferimento liminar era necessário que, além de continuarmos a entender que a pretensão do recorrente não pode proceder, é também necessário que se entenda que isso é evidente. Com efeito, o art. 394°, n° 1, al. c) do CPC, onde se fundou o indeferimento liminar, dispõe que a petição inicial é liminarmente indeferida quando for evidente que a pretensão do autor não pode proceder. Ora, para nós, a pretensão do recorrente não pode proceder, mas em face do entendimento que recentemente vem sendo seguido pelo Venerando TSI, já não se pode sustentar que é evidente a improcedência, pelo que já não pode ser liminarmente indeferida a petição inicial, antes havendo que a deixar seguir para ser apreciada e decidida com mais que um destino possível. Por isso, já não podemos sustentar o recorrido despacho de indeferimento liminar, havendo que o substituir por outro que determine o prosseguimento dos autos. Na verdade, entendemos que a pretensão do embargante não pode proceder, mas já não entendemos que isso é evidente para os tribunais de Macau. Nem assim podemos entender em face da recente jurisprudência do Venerando TSI.
Em síntese, o despacho aqui impugnado por via de recurso não pode ser mantido, tendo de ser reparado. E porquê? Simples. O indeferimento liminar tem lugar quando é evidente que a pretensão do autor não pode proceder. Tem que haver evidência. Se não houver, o juiz deve deixar seguir o processo e não fazer valer a sua opinião no momento liminar. Ora, tendo em conta as referidas decisões do Venerando TSI, neste momento já ninguém poderá considerar que no sistema jurídico de Macau é evidente a improcedência da tese do embargante.
Assim, mesmo continuando nós absolutamente convictos da bondade da tese substantiva do despacho liminar, já não podemos manter a tese da evidência.
Assim sendo, nos termos do disposto no art. 617°, n° 2 do Código de Processo Civil, não tendo a decisão recorrida conhecido do mérito da causa, repara-se a mesma e substitui-se por outra que, nos termos do art. 295º do CPC, receba ou rejeite os embargos ou que determine a realização de diligências com vista à decisão da fase introdutória dos mesmos embargos.
E tendo em conta a posição dos embargados, afigura-se que é de receber os embargos sem necessidade de realização de qualquer diligência com vista a apurar se inexiste probabilidade séria da existência do direito ofendido invocado pelo embargante.
Recebem-se, pois, os embargos de terceiro. “
Tinha o recorrente todas as condições para embargar, pelo menos em relação ao direito de propriedade, tanto que alegou e logrou provar os respectivos elementos típicas da usucapião, mas o certo é que não alegou e não invocou o seu direito de propriedade.
Só agora, em sede de alegações, vem fazer aquilo que não fez inicialmente e a primeira questão que se põe é a de responder a duas questões:
- se há uma alegação implícita da usucapião; se basta essa alegação;
- se o pode fazer agora, em sede de recurso.
5. Estamos em crer que a alegação da titularidade do direito de propriedade não pode deixar de ser invocada, especialmente quando o seu modo de aquisição se faça por via da prescrição aquisitiva, neste caso, positiva, dispondo a lei que o “tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita ou pelo seu representante.” - art. 296º do CC.
Nem se poderá concluir que estamos perante uma alegação implícita da usucapião, visto que o recorrente é muto claro em dizer que tem a posse, excluindo qualquer referência à titularidade do direito de propriedade ou aos seus modo de aquisição.
Interpretar de outra forma poderia subverter a confiança e tutelar situações em que o titular do direito invocaria ou não o seu direito de propriedade, a seu belo talante, sendo e não sendo proprietário de acordo com as situações e como mais lhe aprouvesse nas suas relações com terceiros e até com o Fisco, bastando pensar nas vantagens que podem decorrer de uma não propriedade nos mais diversos domínios, desde a fuga aos credores, aos preferentes, às vinculações decorrentes da propriedade. Compreende-se que o proprietário que pretende usar do direito adquirido por usucapião, proclame urbi et orbe que é ele o dono e senhor da coisa com exclusão de qualquer outro.
Se o embargante alega apenas uma posse, ainda que com todas as características para poder usucapir, é porque situa a sua defesa apenas a esse nível e, na verdade, bem o pode fazer já que esse é um dos meios previstos para a oposição dos embargos - “Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito Incompatível…” (art. 292º, n.º 1 do CPC).
O embargante optou pela posse e não pelo direito de propriedade. E esta alegação tem muita importância, pois, consoante o embargante invoque apenas a posse ou não, poder-lhe-á ser oposto o direito de propriedade do executado sobre a coisa ( art. 298º, n.º 2 do CPC). Este não deixa de prevalecer sobre aquela.6
Ainda que os elementos da usucapião possam lá estar todos, afigura-se-nos que não se pode ter a alegação da propriedade por implícita, dadas as diferentes consequências de uma e de outra alegação.
Uma coisa é a qualificação jurídica de uma dada declaração ou relação negocial, outra, a da atribuição de um direito não reclamado pelo seu titular.
6. Não tendo alegado na petição de embargos o seu direito de propriedade, devendo para tanto ter invocado expressamente a aquisição originária daquele direito, não pode agora emendar a mão.
O tribunal é livre na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir.7
Na verdade, "(...) o juiz está limitado pelos pedidos das partes e não pode deles extravasar; a decisão não pode pronunciar-se sobre mais do que foi pedido ou sobre coisa diversa da que foi pedida. Não pode ultrapassar nem em quantidade nem em qualidade os limites do pedido formulado.
Não basta, contudo, que haja coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado; é necessário, além disso, que haja identidade entre a causa de pedir e a causa de julgar, com a cautela de não confundir a causa de pedir com a qualificação ou enquadramento jurídico dado aos factos .
«O juiz é soberano na órbita estritamente jurídica, move-se dentro dela com inteira liberdade ... bem se compreende que em tudo quanto respeita a operações ou juízos de carácter jurídico ele se encontre inteiramente liberto de quaisquer limitações postas pelas partes ... Se é da competência do juiz indagar e interpretar a regra de direito, pertence-lhe evidentemente a operação delicada da qualificação jurídica dos factos. As partes fornecem os factos ao juiz; mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime legal é função própria do magistrado...» Deste modo, «é livre o tribunal na qualificação jurídica dos factos, contanto que não altere a causa de pedir» (…)"8
Assim, em termos de Jurisprudência Comparada tem-se considerado que, podendo embora o tribunal “qualificar diversamente os factos alegados e provados, está legalmente impedido de julgar o litígio com base numa causa de pedir não invocada. O princípio dispositivo obriga a que haja total coincidência (identificação) entre a causa de pedir e a causa de julgar, ponto este perfeitamente assente desde há muito, quer na doutrina, quer na jurisprudência.” 9
Noutra decisão, refere-se que o princípio dispositivo impede o juiz de decidir com fundamento numa causa de pedir não alegada (por isso se diz que tem de existir coincidência entre a causa de pedir e a causa de julgar), assim como o impede de condenar em objecto diverso do que se pedir e de apreciar questões não suscitadas pelas partes, com excepção das que sejam de conhecimento oficioso.
Nesta linha, o tribunal não pode condenar por uma causa de pedir não invocada pelas partes, tal como também se vem decidindo, por diversas vezes, nesta instância.10
Ora, se assim é em geral, por maioria de razão, em sede de recurso, em que o seu “objecto é a decisão impugnada ou recorrida e não a questão em litígio sobre que recaiu a decisão impugnada.”11 Na verdade, ainda aí, ne eat iudex ultra vel extra petita partium.
Tivesse o embargante invocado a aquisição do seu direito real, adquirido por usucapião e a questão ficaria resolvida por aí, como bem o atesta a abundante Jurisprudência e Doutrina Comparada.12
Tanto assim, tão necessário individualizar a causa de pedir para embargar, que, se invocada a propriedade nos embargos, já não será possível ao embargante, numa acção de reivindicação, fazer valer o seu direito; já não assim, não vindo invocada a propriedade. (Vd. nesta linha o Ac. STJ, de 8/1/2009, Proc. n.º 08B3797 e a posição aí vertida)
7. Posto isto, temos apenas uma posse, boa e com as característica de uma posse boa para embargar, não fora o caso de poder esbarrar contra o direito de propriedade da executada.
É verdade que a posse faz presumir o direito a que corresponde, como resulta do artigo 1193º, n.º 1 do CC, mas essa presunção não deixa de ceder perante a propriedade da executada, propriedade essa que se mostra registada e se tem por prevalecente aos direitos que eventualmente pudessem advir da posse do embargante.
Poder-se-ia aqui argumentar que também os embargados, na resposta aos embargos, não invocaram a propriedade da executada sobre o prédio em questão, tal como aponta o art. 298º, n.º 2 do CPC. “ Quando os embargos se fundem na invocação da posse, pode qualquer das partes primitivas, na contestação, pedir o reconhecimento, quer do seu direito de propriedade sobre os bens, quer de que tal direito pertence à pessoa contra quem a diligência foi promovida”.
Será que aqui, ao invés da conclusão a que se chegou para a embargante, já se pode suprir a necessidade de alegação e comprovação da propriedade a que alude o art. 282º?
O que se verifica é que o MP embargante se limita a evidenciar uma falta de animus possidendi, quando devia, para além da alegação de uma presunção de propriedade do registo alegar e provar a propriedade.
Como se decidiu, no STJ, que aqui se cita em termos de Jurisprudência Comparada, “Fundando-se o embargante exclusivamente na posse, que exerce sobre o bem penhorado, correspondente ao exercício do direito de propriedade, importa, para que a invocação de ser o executado proprietário desse bem, feita pelo exequente-embargado, possa ser atendida com o efeito de tal direito de propriedade do executado se sobrepor à posse do embargante, que seja formulado pelo embargado o correspondente pedido de reconhecimento desse direito de propriedade.”13
Não sendo feita essa alegação, o que temos é o contraponto entre duas presunções: uma, a do embargante, resultante da sua posse, que faz presumir a titularidade do direito e retroage ao início da posse; outra, a da executada, que resulta do registo e é anterior àquela data.
Os embargados deviam ter insistido pela comprovação da propriedade e não instalar-se na comodidade resultante da presunção. Esta preocupação vemo-la plasmada na Jurisprudência Comparada, como se alcança do Proc. n.º 2748/08.2TBBCL-B.G1, de 29/11/2012, da Relação de Guimarães.
8.Posto isto, o que fica?
De um lado, a presunção derivada da posse; do outro, a posse derivada do registo.14
Ora, perante isso, o artigo 1193º é muito claro ao determinar que “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.”
Na verdade, “A presunção derivada do registo predial pode entrar em conflito com a presunção da titularidade resultante da posse de outrem sobre o mesmo prédio. Resultando do art. 1268.º[1193º] do CC que a presunção derivada do registo apenas prevalecerá se for anterior ao início da posse, pois, de contrário, será a presunção a favor do possuidor que prevalecerá. (…).”15
O registo da inscrição no registo predial data de 1991; o início da posse situa-se em 1992.
Prevalece aquela.
Nesta conformidade, com os fundamentos aduzidos, resta decidir, no sentido de confirmar a decisão proferida.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 5 de Novembro de 2015,
João Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 Segundo José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, pg 565, “a posse diz-se causal quando o possuidor é simultaneamente titular do direito real a que a posse se reporta; diz-se formal quando essa titularidade falta.”
2 Nesse caso, contrariamente ao que acontece no presente caso, a embargada/exequente pediu o reconhecimento de que o direito de propriedade pertencia ao embargado/executado, nos termos do artigo 298º, nº 2, do CPC.
3 Acórdão n.º 425/2012, relator – Dr. Gil de Oliveira
4 Acórdão n.º 247/2010, de 10/10/2012, relator – Dr. Lai Kin Hong
5 Acórdão referido no despacho recorrido, relator - Dr. Ho Wai Neng.
6 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, I, 457; Lebre de Freitas, CPC Anot., vd. anotação ao art. 357º.
7 - Alberto dos Reis, CPC Anotado, vol. V, 92-94.
8 - Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 4317/07.5TVLSB.L1-2
9 - Ac. STJ, de 10-1-2008, Proc. n. º 07A3814
10 - Processos n.º 386/2014 e 503/2013 deste TSI.
11 - Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, 2ª ed., 1994, 175.
12 - Vd., por todos, e na medida em que aí se cita inúmera jurisprudência do STJ, vd. A. RL, 8/5/2008, Proc. n.º 1331/2008-6
13 - Ac. STJ, de 27/3/2007, Proc. n.º 07ª491
14 - Ac. RP, de 31/9/2006, Proc. n.º 0634313
15 - Ac. STJ, de 14/11/2013, Proc. n.º 74/07.3TCGMR.G1.S1
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560/2015 1/42