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Proc. nº 582/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 12 de Novembro de 2015
Descritores:
-Nulidade do negócio
-Inexistência do negócio
-Ineficácia
-Revogação do contrato

SUMÁRIO:

I. Enquanto a nulidade nos coloca ante algo que aparentemente, ou na realidade, nos remete para a existência de um negócio, a inexistência pressupõe que o negócio nem sequer se chegou a concluir

II. A ineficácia pode ser perspectivada em sentido estrito e em sentido amplo. Em sentido amplo, a ineficácia abrange todas as hipóteses em que, por qualquer motivo, interno ou externo, o negócio jurídico deixa de produzir efeitos. Em sentido estrito, existe quando a cessação dos efeitos ocorrem por força de eventos posteriores ao momento da celebração do negócio, como é o caso da resolução, da revogação, da caducidade e da denúncia.

III. A revogação – “contrato contrário” ou “distrate” - é, como se sabe, uma das formas de extinção dos contratos, a par da resolução, da denúncia e da caducidade. E uma revogação válida pode conduzir à ineficácia em sentido amplo, mas não à inexistência do negócio jurídico.

IV. Pela sub-rogação o sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.













Proc. nº 582/2015

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A, casado com B, no regime da comunhão geral de bens, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau n.º…, emitido pela Direcção dos Serviços de Identificação em 04/09/2007, residente em Macau, na…, porque tem legitimidade, vem, nos termos do art. 11º do Código de Processo Civil (adiante “CPC”), intentou no TJB (Proc. nº CV2-14-0023-CAO) uma acção de simples apreciação positiva contra: --
C, solteira, maior, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Macau nº…, emitido pela Direcção dos Serviços de Identificação em 09/11/2004, residente em Macau, na…, --------------------
Pedindo o reconhecimento e declaração da existência de uma sub-rogação feita pela Ré a favor do autor relativamente ao direito de devolução do imposto de selo indevidamente pago no valor de Mop$ 14.060,00 e a declaração de inexistência ou ineficácia do contrato-promessa de compra e venda celebrado pelas partes em 27/09/2013.
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Foi naquele tribunal proferida sentença, que julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu a ré dos pedidos.
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É contra essa sentença que ora se insurge o autor no presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A. Inconformado com a douta sentença que julgou totalmente improcedentes os pedidos formulados, veio o Autor interpôr o presente recurso por considerar que o Tribunal recorrido não apreciou correctamente todos os elementos de facto alegados nem aplicou consequentemente o Direito pertinente.
B. O Autor intentou a presente acção de simples apreciação positiva com os fundamentos constantes na petição inicial, peticionando a final, a) o reconhecimento da sub-rogação feita pela Ré a favor do Autor relativamente ao direito à devolução do imposto de selo indevidamente pago, no valor de MOP$14.060,00 e b) o reconhecimento da ineficácia do contrato promessa de compra e venda celebrado pelas partes em 27/09/2013.
C. Citada pessoalmente, a Ré não contestou, considerando-se portanto reconhecidos todos os factos alegados pelo Autor na petição inicial, nos termos do art. 405º e 406º do Código Civil.
D. Todavia, assim não entendeu o douto Acórdão ao considerar que os factos alegados nos artigos 6º e 7º do articulado inicial não foram provados, por terem carácter meramente conclusivo, não se concretizando os requisitos da coacção moral.
E. O artigo 248º do CC determina que é “feita sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter a declaração. A ameaça tanto pode respeitar à pessoa, como à honra ou património do declarante ou de terceiro.
F. Salvo o devido respeito, da matéria alegada resultam claramente demonstrados os pressupostos da coacção moral, ou seja, a natureza essencial e ilícita da coacção e a intenção de extorquir a declaração.
G. No art. 6º da petição inicial refere-se que o Autor foi forçado a assinar o contrato promessa de compra e venda dum imóvel propriedade sua, para que a mãe pudesse “saldar dívidas de jogo”.
H. Ora, constitui um facto do conhecimento geral que o reembolso de créditos de jogo em Macau é muitas vezes logrado sob a forma de ameaças dirigidas contra o devedor e/ou família com o propósito de assim forçar o devedor a assinar garantias de cumprimento da dívida.
I. Portanto, crê-se que, in casu, é notório o motivo por que o Autor ficou com receio pela “vida e integridade física da mãe e por eventuais ameaças dirigidas contra a sua família”.
J. Diz-se ainda no art. 7º do libelo inicial que o Autor anuiu de imediato na assinatura do acordo “receando pela vida e integridade física da mãe e por eventuais ameaças dirigidas contra a sua família”, pelo que se extrai daqui, indubitavelmente, qual o mal concretamente ameaçado: a vida e a integridade física própria e da família.
K. Dito isto, dúvidas não podem restar quanto à essencialidade da coacção uma vez que foi dirigida contra bens de natureza pessoalíssima,
L. nem quanto à sua ilicitude, cuja relevância penal dos bens jurídicos ameaçados é insofismável.
M. Também resulta evidente dos factos assentes que o objectivo de tal ameaça foi “forçar” a assinatura do contrato promessa de compra e venda e, de imediato, lograr obter o pagamento da dívida de jogo através do sinal entregue pela Ré.
N. Quanto ao autor da ameaça, o Autor referiu expressamente que foi coagido “pela sua mãe” para obter a declaração negocial, sendo certo que a “ameaça” em si proveio de terceiro (para saldar dívidas de jogo).
O. Estipula o artigo 249º do CC que “neste caso, é necessário que seja grave o mal e justificado o receio da sua consumação”,
P. Quanto à gravidade do mal, atenta a natureza pessoal dos bens jurídicos ameaçados, vida e integridade física, crê-se que não carece de maior demonstração, por ser patente.
Q. Do ponto de vista da justificação do receio ou essencialidade da ameaça, salientou o Autor que “de imediato”, “sem atentar na verificação de especiais formalidades e das responsabilidades por si anteriormente assumidas”, assinou o contrato em questão.
R. Alegou, inclusive, factos demonstrativos do elevado grau de receio que o levou, sem ponderar, a assinar a declaração negocial que visava obter o sinal que serviria para a mãe saldar a supra citada dívida de jogo.
S. Exemplificativo do receio que o moveu, foi o facto de “aceitar” um valor (HKD1.300.000,00) inferior em mais de metade ao valor de mercado (HKD$2.450.000,00),
T. Além do facto de tal negócio importar um incumprimento dos contratos de mútuo bancários por si celebrados tendo por objecto a mesma fracção prometida vender e, consequentemente, prejuízos patrimoniais nada despiciendos.
U. Também o facto de ter sido outorgado um contrato oneroso sobre um bem comum sem o consentimento da mulher, exprime bem a “urgência” e a “pressão” que rodeou a sua celebração.
V. Ou seja, todas estas circunstâncias são elucidativas do elevado receio que moveu o Autor e de que a pressão psicológica exercida pela ameaça foi de tal modo esmagadora que o Autor assinou, sem reflectir nas lesivas consequências patrimoniais de tal acto para si próprio.
W. Resulta da matéria de facto que o mal ameaçado, dirigido contra a sua vida e a da sua mãe e ainda as ameaças dirigidas contra a sua família por 3º, provocou no Autor um medo determinante que perturbou a vontade deste decidir livremente, viciando a decisão negocial, forçando-o a assinar imediatamente um contrato promessa de compra e venda dum imóvel que lhe pertence e à mulher, para que desse modo a sua mãe pudesse “saldar a dívida de jogo”.
X. Com efeito, tudo isto consubstancia uma coacção moral exercida por terceiro sobre o Autor e a mãe deste, que apenas se pretendeu explicar para enquadrar os motivos que levaram as partes posteriormente a revogar o contrato celebrado.
Y. É sabido que tal vício consubstancia uma invalidade do negócio e importa a sua anulabilidade (art. 249º do CC) que não se suscitou, uma vez que as partes vieram entretanto revogar o contrato celebrado, de molde a destruir de forma mais célere os efeitos do negócio.
Z. Cientes de que o negócio celebrado contrariava a livre vontade do Autor, as partes resolveram, posteriormente, fazer cessar os efeitos negociais do contrato, mediante a revogação expressa do contrato celebrado.
AA. A revogação ou distrate tem normalmente uma eficácia “ex nunc”, isto é, todos os efeitos produzidos pelo contrato se mantêm e ele deixa de produzir efeitos a partir do momento da sua revogação.
BB. Todavia, as partes podem atribuir-lhe eficácia “ex tunc”, tal como sucedeu in casu tendo Autor e Ré atribuído eficácia retroactiva à declaração de revogação, repondo a situação jurídica “ex ante”, isto é, como se não tivesse sido celebrado qualquer contrato.
CC. Para o efeito, foi restituído tudo o que foi prestado à contraparte.
DD. Assim, a revogação expressa do contrato promessa de compra e venda e a atribuição de efeitos retroactivos, destruiu os efeitos do mesmo, tomando-o ineficaz “ab initio”.
EE. Esta ineficácia absoluta opera automaticamente e “erga ornnes”, sendo dessa forma oponível à Administração fiscal.
FF. Com os pedidos de reconhecimento da sub-rogação do direito à devolução do valor do imposto de selo indevidamente pago e a declaração de ineficácia do contrato promessa de compra e venda celebrado, em consequência do teor do acordo revogatório, o Autor visa o exercício posterior dos seus direitos perante a Administração Fiscal, designadamente o direito à restituição do imposto selo liquidado (art. 52º n.º 2 do Regulamento de Imposto de Selo) e o direito à anulação da liquidação oficiosa do imposto de selo e imposto especial (arts 2º n.º 1 alínea b) e 3º do Dec. Lei n.º 16/85/M de 2 de Março).
GG. Por tudo isto, ao decidir pela improcedência de tais pedidos, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não apreciou devidamente todos os elementos fácticos invocados, falhando na aplicação do Direito respectivo, violando, destarte, os artigos 405º e 406º do CPC e 248º e 399º do CC.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, revogada a decisão recorrida, devendo V. Exas. reconhecer e declarar a sub-rogação feita pela Ré a favor do Autor relativamente ao direito à devolução do imposto de selo indevidamente pago, no valor de MOP$14.060,00 e, ainda reconhecer e declarar a ineficácia do contrato promessa de compra e venda celebrado pelas partes em 27/09/2013, assim se fazendo inteira JUSTIÇA!».
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
A sentença deu como assente a seguinte factualidade:
«- O Autor é proprietário da fracção autónoma designada por “Il4”, destinada a habitação, sita em Macau, na…, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º … a fls… do Livro…, conforme inscrição n.º….
- O Autor adquiriu a referida fracção autónoma através de escritura pública de compra e venda celebrada no dia 29 de Dezembro de 2011 no Cartório do Notário Privado Marcelo Poon.
- Nessa mesma data, outorgou ainda uma escritura pública de mútuo com hipoteca, celebrado com o Banco X, SA, para obtenção de um empréstimo de HK$500.000,00, no Cartório do Notário Privado Marcelo Poon.
- Em 13 de Setembro de 2012, o Autor voltou a solicitar novo empréstimo junto do referido Banco X, SA, no valor de HK$300.000,00, conforme escritura pública de mútuo com hipoteca, celebrada no supra citado Cartório.
- Em todas essas escrituras públicas o Autor é referido como sendo solteiro, quando nas respectivas datas, já era casado em comunhão geral de bens com B.
- Em 27 de Setembro de 2013, o Autor assinou um contrato-promessa de compra e venda da supra mencionada fracção autónoma com a Ré.
- A promessa de compra e venda supra referida foi feita pela quantia de HK$I.300.000,00 quando o valor de mercado da referida fracção é de cerca de HK$2.450.000,00.
- A promessa de venda foi feita sem o consentimento da mulher do Autora.
- O Autor também não solicitou junto do Banco X, SA o distrate das duas hipotecas de HK$500.000,00 e de HK$300.000,000, inscritas na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs…e …,
- A promessa de venda do imóvel a terceiro estava condicionada à autorização prévia do Banco X, SA, sob pena de incumprimento dos referidos contratos de empréstimo.
- Na data da outorga do referido contrato-promessa de compra e venda, a Ré, entregou ao Autor um cheque no valor de HK$100.000,00, a título de sinal.
- Em 17 de Outubro de 2013, a Ré procedeu ao pagamento do imposto de selo, no valor de MOP$14.060,00.
- Através de oficio da Direcção dos Serviços de Finanças com a ref.ª n.º 3400/NIS/DOI/RFM/2013, datado de 13 de Dezembro de 2013, o Autor foi notificado da liquidação oficiosa do imposto de selo e do imposto de selo especial, devido por transmissão de bem e a suportar pelo Autor.
- O Autor solicitou à Direcção dos Serviços de Finanças a suspensão do processo de liquidação oficiosa do imposto de selo e do imposto especial devido pela transmissão do imóvel, até que obtivesse decisão judicial de anulação do contrato celebrado.
- Posteriormente a mulher do Autor manifestou a intenção de não aceitar a alienação do bem comum prometido vender pelo Autor.
- Por isso, o Autor e a Ré perderam interesse no acordo celebrado e decidiram no sentido de este ficar sem qualquer efeito.
- O Autor e a Ré decidiram revogar expressamente o contrato em questão.
- Na sequência desse acordo, o Autor devolveu à Ré não apenas a totalidade do sinal pago por esta na data da outorga do contrato promessa de compra e venda (HKD100.000,00).
- Bem como o valor pago pela Ré a título de imposto de selo (MOP$14.060,00).
- A Ré mais declarou sub-rogar o Autor no seu direito ao reembolso do referido imposto de selo perante a administração fiscal.
- O acordo traduz na vontade livre e esclarecida do Autor e da Ré.»
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III – O Direito
1 - A questão de facto é muito simples e desdobra-se em dois dados objectivos fulcrais:
1º - O autor (que é casado), prometeu vender à ré (que o prometeu comprar) uma determinada fracção habitacional.
2º - Posteriormente, ambas as partes decidiram consensualmente revogar o contrato de promessa celebrado. O promitente vendedor devolveu, então, o sinal recebido da ré e ainda lhe entregou o valor que esta tinha pago a título de imposto de selo.
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2 - A pretensão do autor na acção compreende-se perfeitamente:
O autor, revogado o contrato e uma vez entregue à ré o valor do imposto do selo devido pela prometida alienação do imóvel, quer estar munido de uma sentença que se pronuncie sobre a dita revogação, conferindo ao contrato de promessa inexistência (inicialmente, ineficácia) a fim de mais tarde poder vir obter a anulação oficiosa da liquidação do imposto e ficar sub-rogado no direito à devolução deste. Trata-se, como se viu, de um pedido de simples apreciação.
E tal pretensão não colheu a menor oposição processual por parte da ré, o que sem esforço igualmente se percebe. À ré tudo já é matéria que lhe passou a ser neutra ou indiferente, a partir do momento em que, com o acordo revogatório e com as consequências dele advenientes (foi-lhe pago pelo A o valor do imposto), a sua esfera jurídica e patrimonial ficou satisfeita e reposta a sua situação jurídica-substantiva anterior. Para ela é alheio o resultado da acção.
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3 – A sentença entrou na análise das causas do negócio, tal como invocadas.
a) Verificou se o contrato-promessa foi celebrado sob coacção por parte da mãe do A (que devia dinheiro à ré e que com o negócio teria em vista pagar dívidas por empréstimo para jogo);
b) Produziu considerações a respeito do facto invocado pelo A, sobre se o preço do imóvel prometido era muito inferior ao do mercado;
c) Entrou na apreciação da falta de autorização prévia do credor hipotecário;
d) Pronunciou-se sobre a consequência da falta de consentimento da mulher do A. no contrato-promessa.
Ora bem. Nós até, em parte, concordamos com algumas das afirmações produzidas na sentença quanto àqueles aspectos. Por exemplo, é certo que a falta de autorização prévia do banco (credor hipotecário) é irrelevante no contexto dos presentes autos (ver sentença, pág. 9), como também é certo que a falta de consentimento da mulher do A. apresenta a mesma irrelevância porque as partes, bem ou mal, decidiram pôr termo ao contrato.
Nada mais acertado, efectivamente.
Com efeito, não interessa discutir eventuais vicissitudes do negócio a partir do momento em que os contratantes lhe decidiram pôr termo através da revogação.
Insistimos: não há mais negócio de pé; após a revogação, ele deixou de produzir efeitos na ordem jurídica “inter partes”!
Mas, então, pergunta-se: interessará agora ir ao passado e buscar causas invalidantes do contrato se elas não estão em discussão, e se, por desnecessárias, não fazem parte da causa de pedir?
Pode ser que sim; pode ser que não. Vejamos.
*
4 – A ineficácia - pedido inicial, como nos lembramos - costuma ser apresentada sob duas perspectivas: uma ampla, outra restrita.
Em sentido amplo, a ineficácia abrange todas as hipóteses em que, por qualquer motivo, interno ou externo, o negócio jurídico deixa de produzir efeitos.
A nulidade é, neste sentido, e para alguns, uma forma de ineficácia que procede da falta ou irregularidade de qualquer dos elementos internos ou essenciais do negócio: falta de capacidade, falta ou defeito da vontade, impossibilidade física ou legal do objecto (incluindo a ilicitude). A nulidade será, então, uma ineficácia em sentido estrito, que deriva de um vício de formação do negócio.
Ineficácia em sentido estrito existe quando a cessação dos efeitos ocorrem por força de eventos posteriores ao momento da celebração do negócio, como é o caso da resolução, da revogação, da caducidade e da denúncia.
Neste sentido: Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Reimpressão, 2003, pág.411; também, Carlos Alberto Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 605).
Por conseguinte, à luz da pretensão inicialmente formulada, haveria que indagar se haveria in casu algum factor de nulidade que pudesse conduzir à pretendida ineficácia. Nomeadamente, haveria que averiguar se a revogação do contrato podia ou não conduzir à ineficácia do negócio, para que pudesse vir a produzir-se uma decisão judicial que reconhecesse a invalidade e ineficácia, para os efeitos do disposto no nº2, do art. 52º, do Regulamento do Imposto do Selo1.
Tudo está, porém, agora prejudicado.
É que, qualquer que fosse o prisma por que se devesse encarar a ineficácia pretendida inicialmente – e, sim, haveria, para não correr riscos, que encarar o problema em ambas as perspectivas – o assunto perdeu interesse a partir do momento em que o A. veio requerer a rectificação da petição inicial, com modificação do pedido, o que foi aceite, a fim de que a pretensão passasse a de declaração judicial de inexistência do negócio.
Ora, sendo assim, do mesmo modo também não interessa saber se o contrato foi feito sob coacção ou se o preço acordado foi muito inferior ao do mercado. Estas razões, se poderiam ter interesse para aquilatar da invalidade do negócio numa acção proposta com esse específico fim, no contexto dos presentes autos não passam de meros indicadores fácticos sem nenhum peso para a procedência ou improcedência da acção. São elementos meramente acessórios, colaterais, logo, irrelevantes e dispensáveis, porque em nada contribuem para a boa decisão da causa.
Avancemos, então, para os efeitos da peticionada inexistência.
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5 – A inexistência representa o quê?
A inexistência dá-se quando nem sequer aparentemente se verifica o “corpus” de certo negócio jurídico; quando não há materialidade que corresponda à própria noção do negócio.
De inexistência se fala ainda quando, embora se verifique essa aparência, a realidade não corresponde àquele conceito de negócio.
Ora, enquanto a nulidade nos coloca ante algo que aparentemente, ou na realidade, nos remete para a existência de um negócio, a inexistência pressupõe que o negócio nem sequer se chegou a concluir (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Reimpressão, Vol. II, Coimbra, 2003, pág.414; no mesmo sentido, Carlos A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág.608-609).
No caso dos autos, e como bem afirma a sentença recorrida, não só na aparência, como na sua materialidade, foi celebrado um negócio com toda a aptidão para a produção de efeitos.
E mesmo para quem entenda que a coação física ou a falta de consciência da declaração, para efeitos do disposto no art. 239º do CC, possa conduzir a uma inexistência jurídica (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, II, 2ª ed., 272-275), a verdade é que a situação concreta não tem tais contornos, pois nem se trata de dizer que o contrato foi celebrado sob coacção física, nem sem a consciência da declaração por parte de nenhuma das partes (questões, aliás, que nem sequer chegaram a ser equacionadas expressamente na causa de pedir).
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6 – Mas ainda temos por estudar uma revogação. O que dizer?
Terá ela por consequência a reposição ao estado anterior a ponto de se falar em inexistência, tal como o pretende o autor?
A revogação é, como se sabe, uma das formas de extinção dos contratos, a par da resolução, da denúncia e da caducidade.
Exceptuando alguns casos especiais em que a revogação não é possível (v.g., adopção, perfilhação), a revogação, podemos dizê-lo, celebra a autonomia da vontade privada, na medida em que o poder que as partes exerceram ao se vincularem pelo contrato as leva, posteriormente, a dele se desvincularem nas mesmas condições. “Assim como o fazem, assim o desfazem”. As partes, através da revogação, põem, portanto, voluntariamente termo ao contrato, extinguindo os seus efeitos (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, p. 277; Ac. TSI, de 17/10/2002, Proc. nº 79/2000), vigorando para ela, enquanto acto jurídico, o princípio da identidade da legitimidade, bem como da forma (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2008, 5ª ed., pág. 771-772).
Por isso, à revogação também se chama de “contrato contrário” ou “distrate” (José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, vol. III, 336; tb. Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 7ª ed., pág. 103-104).
Em princípio, a revogação opera apenas para o futuro2, mas, uma vez mais no quadro da autonomia privada, podem as partes atribuir-lhe eficácia retroactiva, mesmo sem prejuízo do direito de terceiros. Ou seja, a relação entre as partes pode ser destruída, mas não os direitos validamente adquiridos por terceiro (Oliveira Ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, vol. III, 336-337).
Ora, podendo nós dar por adquirido que no conceito amplo de ineficácia se inscrevem os eventos posteriores ao negócio e que lhe impedem a produção normal dos seus efeitos - de entre eles, a resolução, a revogação, a caducidade e a denúncia (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed. actualizada, pág. 606) – podemos dizer, então, que uma revogação válida pode conduzir à ineficácia.
Mas, e como já se disse, o autor modificou o pedido: abandonou a pretensão primitiva que tinha em vista a declaração de ineficácia, para depois pedir a declaração de inexistência do negócio.
Todavia, a inexistência, pelo que acima já se viu, não pode dar cobertura ao caso.
A situação criada pela revogação em nada se assemelha a qualquer causa de inexistência. A revogação, “ex tunc” ou “ex nunc”, consoante o ponto de vista divergente da doutrina, destrói ou paralisa os efeitos do negócio; incide sobre ele, mas é-lhe posterior.
O facto de a revogação extinguir o contrato não equivale a dizer a que tudo se passa como se inexistisse juridicamente o negócio. O que trava é a produção de efeitos deste, mas o instituto da revogação não apaga o contrato como se nada se nunca ele tivesse existido. A circunstância de as partes terem dado efeito retroactivo à revogação levou o autor a pensar que a consequência dela seria a reposição da situação substantiva ao status quo ante e que o contrato deixou de existir, quando na verdade o que deixou é de produzir os seus efeitos típicos. Daí, talvez, a confusão conceptual do autor em se desviar do bom caminho trilhado inicialmente e, abandonando o pedido de declaração de ineficácia, vir pedir depois a declaração de inexistência.
Inexistência, portanto, que o tribunal não podia declarar.
*
7 – Como se teve oportunidade de ver, tendo o autor entregado à ré, por força da revogação, o montante do imposto de selo por ela pago, o que ele pretende na acção é obter uma sentença favorável com a qual, e pela via da sub-rogação, junto das Administração Tributária alegadamente tentaria tentar obter a restituição, a si mesmo, do valor do imposto de selo pago por aquela.
Ora, dá-se a sub-rogação quando um terceiro cumpre a obrigação em lugar do devedor, substituindo-se no lugar do credor, ora por convenção (cfr. arts. 583º e 584º do CC), ora por determinação legal (art. 586º, do CC). O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam3.
Acontece que a ré na acção, cumpriu, ela própria o dever que sobre si (pessoalmente) impendia (art. 53º, nº1, Lei nº 17/88/M, de 27/06), na qualidade de adquirente do bem, em pagar o imposto de selo junto das Finanças (art. 51º, nº 3, al. b), Lei cit.).
Portanto, não houve in casu nenhuma satisfação da obrigação fiscal feita por terceiro. Aliás, o A, ora recorrente, nem sequer podia ser terceiro em relação ao negócio realizado, se neste figurou como parte contratante!
A ré da acção reunia no caso a posição de contribuinte, devedor e sujeito passivo do imposto, tendo nessa qualidade satisfeito o seu dever de prestação tributária4. Nada mais a dizer, em relação a isto, por conseguinte.
Por isso nem se põe aqui, sequer, a questão da sua substituição pelo lado passivo da obrigação fiscal5, sendo até certo, por outro lado, que o instituto da sub-rogação neste domínio só se costuma colocar em sede de execução fiscal, nos termos do art. 191º, 192º e 193º do Código de Execuções Fiscais6.
Cremos, portanto, que a cláusula final da “Revogação do Contrato-Promessa” não pode ter o condão de criar uma sub-rogação, mas quando muito o de uma representação voluntária, que permitiria ao A., em nome da R., agir junto da Administração Tributária no sentido da restituição do imposto e que, pelo mesmo título, podia fazer seu.
Assim, este pedido não podia ser satisfeito judicialmente, tal como foi decidido na 1ª instância, ainda que por razões não coincidentes com as acima referidas.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso e, ainda que por razões algo diferentes, confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
TSI, 12 de Novembro de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 A redacção do nº2, do art. 52º citado é a seguinte: “A apresentação pelo sujeito passivo de sentença transitada em julgado, que reconheça a invalidade ou ineficácia do documento, papel ou acto que titulou a transmissão, impede a cobrança do imposto do selo e, se tiver sido já pago, confere direito à sua restituição”.
2 Autores há que entendem que a revogação não é retroactiva e que só opera “ex nunc”, como é o caso de Mota Pinto, Teoria Geral, 3ª ed., pág. 620 ou Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., pág. 772.
3 Manuel Trigo, Lições de Direito das Obrigações, FDUM, 2014, pág.459; Luis Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 7ª ed., pág.35-37
4 José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 7ª ed., 2014, pág. 243.
5 Hermínio Rato Rainha, Apontamentos de Direito Fiscal, Universidade de Macau, 1996, pág. 178-179, 188 e sgs. Carlos Paiva, Da tributação à revisão dos actos tributários, Almedina, pág. 121.
6 Hermínio Rato Rainha, ob. cit., pág. 224-225. Carlos Paiva, Da tributação à revisão dos actos tributários, Almedina, pág. 121.
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