Processo n.º 28/2016 Data do acórdão: 2016-2-4 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– recurso extraordinário de revisão de sentença
– inconciliação entre as identidades de uma mesma arguida
– condenações penais por falsas declarações sobre a identidade
– conduta de prestação de falsas identidades à polícia
– venire contra factum proprium
– art.º 431.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal
– art.° 431.°, n.° 1, alínea d), do Código de Processo Penal
– superveniência probatória
– superveniência objectiva
– superveniência subjectiva
– elementos de prova novos hoc sensu
S U M Á R I O
1. Como dos elementos dos autos resulta claro que a inconciliação entre as duas identidades da arguida ora requerente da revisão da sentença, dadas por provadas em respectivas duas decisões condenatórias penais igualmente por falsas declarações à identidade, foi tudo por causa da sua própria conduta consciente, livre e voluntária de prestação, à polícia, de falsa identidade dela, as “graves dúvidas sobre a justiça da condenação”, a existirem, teriam assim sido causadas por essa própria conduta dela, pelo que não pode vir ela, à autêntica moda de venire contra factum proprium, pretender, à luz do art.º 431.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, a revisão da primeira das decisões condenatórias.
2. Outrossim, o preceito do art.° 431.°, n.° 1, alínea d), do Código de Processo Penal exige uma superveniência probatória susceptível de abalar seriamente a prova em que se fundou a sentença cuja revisão se requer, superveniência esta que se pode traduzir em duas modalidades: superveniência objectiva, e superveniência subjectiva.
3. Verifica-se superveniência objectiva quando os elementos de prova são novos hoc sensu, no sentido de que não existiam no momento da prolação da sentença cuja revisão se requer. Ou seja, quando esses (novos) elementos de prova só se formaram posteriormente àquele momento.
4. Enquanto a superveniência subjectiva quer referir-se à situação em que a parte requerente da revisão, ao tempo em que esteve em curso o processo anterior, ou não tinha conhecimento dos elementos de prova em causa, que já existiam, ou então sabia da existência deles, mas não teve possibilidade de os obter. Quer dizer, para haver superveniência subjectiva, é necessário que à parte vencida tivesse sido impossível socorrer a esses elementos de prova no processo em que decaíu. Se a parte tinha conhecimento da existência desses elementos de prova, e podia servir-se dele, não tem direito à revisão; se os não apresentou foi porque não quis; sofre, portanto, a consequência da sua determinação ou da sua negligência. Desde que pudesse utilizar esses elementos, deveria utilizá-los, para não sujeitar o tribunal a emitir uma decisão sobre dados incompletos; porque assim não procedeu, perdeu o direito a aproveitar-se dos elementos de prova em causa.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 28/2016
(Autos de recurso extraordinário de revisão da sentença)
Requerente: A, que ora declara chamar-se
B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum Colectivo n.o CR4-14-0294-PCC do Tribunal Judicial de Base, A, aí identificada como 3.a arguida, foi a final condenada em 8 de Maio de 2015, por decisão já transitada em julgado em 28 de Maio desse ano, na pena de um ano de prisão, pela autoria material de um crime continuado consumado de falsas declarações sobre a identidade, p. e p. pelo art.º 19.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, e na pena de nove meses de prisão, pela autoria material de um crime consumado de reentrada ilegal, p. e p. pelo art.º 21.º da mesma Lei, e, em cúmulo jurídico, na pena única de um ano e seis meses de prisão efectiva (cfr. o teor da certidão desse acórdão junta a fls. 12 a 30v do presente processado de recurso extraordinário de revisão de sentença).
Veio essa arguida, agora disse chamar-se B, pedir a revisão da acima referida decisão condenatória penal na parte respeitante ao crime de falsas declarações sobre a identidade, nos termos do art.o 431.o, n.o 1, alínea c), do Código de Processo Penal de Macau (CPP), alegando, para o efeito, e na sua essência, que como veio condenada em pena de prisão por sentença de 19 de Novembro de 2015 do Processo Comum Singular n.º CR1-15-0386-PCS, por um crime de falsas declarações sobre a identidade, por o respectivo Tribunal ter considerado provado que ela tinha declarado à Polícia que se chamava A, identidade essa não correspondente à sua verdadeira identidade, o acórdão condenatório daquele processo subjacente era, pois, inconciliável com essa sentença no tocante à condenação do crime de falsas declarações, inconciliação essa realmente geradora de graves dúvidas sobre a injustiça da condenação (cfr. o teor do requerimento de revisão a fls. 2 a 11 do presente processado).
Sobre este pedido de revisão, o Digno Delegado do Procurador junto do Tribunal Judicial de Base opinou pela improcedência do pedido (cfr. a exposição de fls. 41 a 44 do processado).
Subsequentemente, foi emitida (a fls. 45 a 46) informação judicial à luz do art.o 436.o do CPP, no sentido de não provimento do pedido de revisão.
Subido o processado para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), a Digna Procuradora-Adjunta emitiu parecer (a fls. 53 a 55), também no sentido de indeferimento do pedido de revisão.
Feito, em seguida, o exame preliminar pelo relator e corridos os vistos pelos Mm.°s Juízes-Adjuntos, cumpre decidir do presente pedido de revisão.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame do presente processado, fluem os seguintes elementos pertinentes à decisão:
Em 8 de Maio de 2015, no âmbito do ora subjacente Processo Comum Colectivo n.o CR4-14-0294-PCC do Tribunal Judicial de Base, A, aí identificada como 3.a arguida, nascida em 3 de Agosto de 1980 em Guangdong da China, filha de C e de D, foi a final condenada (por decisão transitada em julgado em 28 de Maio desse ano) na pena de um ano de prisão, pela autoria material de um crime continuado consumado de falsas declarações sobre a identidade, p. e p. pelo art.º 19.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, e na pena de nove meses de prisão, pela autoria material de um crime consumado de reentrada ilegal, p. e p. pelo art.º 21.º da mesma Lei, e, em cúmulo jurídico, na pena única de um ano e seis meses de prisão efectiva (cfr. o teor da certidão desse acórdão junta a fls. 12 a 30v do presente processado de recurso extraordinário de revisão de sentença).
E os factos pelos quais foi aí condenada essa arguida pelo referido crime continuado de falsas declarações sobre a identidade foram os seguintes, na sua essência:
– em 18 de Fevereiro de 2008 e 29 de Maio de 2008, no Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau, ela, ao preencher os dados de identificação, declarou ser B (com nota feita aqui por este TSI: “B” é romanização em cantonense do termo “B”, o qual é romanizado em mandarim como “B”), nascida em 17 de Dezembro de 1985, filha de E e de F;
– ela, nas duas vezes em que preencheu os acima referidos dados de identificação, tinha sido advertida de estar obrigada a declarar com verdade, sob pena de incorrer na prática de crime;
– ela agiu livre e conscientemente, ao fornecer deliberadamente, por duas vezes, falsos dados de identificação às autoridades, com o objectivo de encobrir a sua situação de clandestinidade em Macau.
Em 19 de Novembro de 2015, no âmbito do Processo Comum Singular n.o CR1-15-0386-PCS do Tribunal Judicial de Base, B, aí identificada como arguida nascida em 17 de Dezembro de 1985, filha de E e de F, foi condenada na pena de nove meses de prisão efectiva, pela autoria material de um crime consumado de falsas declarações sobre a identidade, p. e p. pelo art.º 19.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004 (cfr. o teor da certidão da correspondente sentença, junta a fls. 31 a 34v do presente processado de recurso extraordinário).
Os factos pelos quais foi punido este crime consumado de falsas declarações sobre a identidade foram os seguintes, na sua essência:
– em 8 de Março de 2011, para ocultar a sua verdadeira identidade, a arguida prestou à Polícia dados falsos sobre a sua identidade como sendo A, nascida em 3 de Agosto de 1980 em Guangdong da China, filha de C e de D.
E segundo a fundamentação probatória tecida nessa sentença condenatória, a arguida confessou integralmente e sem reservas os factos acusados, tendo declarado que o seu verdadeiro nome é B, e que para evitar que viesse a ser decoberta como possuidora, ao tempo de Março de 2011, de um passaporte chinês emitido a favor de “A”, declarou então à Polícia que tinha por nome A.
Ao requerimento de revisão ora em causa, a requerente juntou (a fls. 35 a 38v) pública-forma de dois documentos passados em Dezembro de 2015 no Interior da China pretendidamente certificativos da sua identidade como sendo B.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Pois bem, a arguida condenada A, que ora declara chamar-se B, pede a revisão da decisão condenatória de 8 de Maio de 2015 do processo penal subjacente (com o n.º CR4-14-0294-PCC), com base no disposto no art.º 431.º, n.º 1, alínea c), do CPP, segundo o qual a revisão da sentença transitada em julgado é admissível quando “Os factos que serviram de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.
Contudo, como dos elementos pertinentes acima coligidos na parte II do presente aresto resulta claro que a inconciliação entre as duas identidades da própria requerente, como tal falada no seu requerimento de revisão, foi tudo por causa da sua própria conduta consciente, livre e voluntária de prestação, à Polícia, de falsa identidade dela (cfr. a fundamentação probatória da sentença condenatória do atrás referido processo n.º CR1-15-0386-PCS), as “graves dúvidas sobre a justiça da condenação”, a existirem, teriam sido causadas por essa própria conduta consciente, livre e voluntária da requerente, pelo que não pode vir ela, à autêntica moda de venire contra factum proprium (tal como já opinou na informação judicial de fls. 45 a 46), pretender a revisão da decisão condenatória de 8 de Maio de 2015.
Outrossim, com a junção, ao seu pedido de revisão de sentença, da pública-forma de dois documentos passados no Interior da China pretendidamente certificativos da sua alegada verdadeira identidade como sendo B, a requerente quiçá quis fundar o seu pedido de revisão materialmente também na norma da alínea d) do n.º 1 do art.º 431.º do CPP.
E como esta norma processual penal é substancialmente homóloga à do art.° 673.°, n.° 4.°, do Código de Processo Penal de 1929 (CPP de 1929), outrora vigente em Macau, que rezava que uma sentença com trânsito em julgado só poderá ser revista se, no caso de condenação, se descobrirem novos factos ou elementos de prova que, de per si ou combinados com os factos ou provas apreciados no processo, constituam graves presunções da inocência do acusado, afigura-se útil adaptar aqui, e nos termos mutatis mutandis a expor infra, a análise em geral da problemática em causa já feita no aresto deste TSI, de 12 de Outubro de 2000, no processo n.° 94/2000, onde foi decidido um recurso de revisão interposto sob a égide daquele preceito do Código de Processo Penal de 1929:
Como se sabe, o preceito do art.° 431.°, n.° 1, alínea d), do CPP exige uma superveniência probatória susceptível de abalar seriamente a prova em que se fundou a sentença cuja revisão se requer, superveniência esta que se pode traduzir em duas modalidades:
– superveniência objectiva;
– e superveniência subjectiva.
Verifica-se superveniência objectiva quando os elementos de prova são novos hoc sensu, no sentido de que não existiam no momento da prolação da sentença cuja revisão se requer. Ou seja, quando esses (novos) elementos de prova só se formaram posteriormente àquele momento.
Enquanto a superveniência subjectiva quer referir-se à situação em que a parte requerente da revisão, ao tempo em que esteve em curso o processo anterior, ou não tinha conhecimento dos elementos de prova em causa, que já existiam, ou então sabia da existência deles, mas não teve possibilidade de os obter.
Quer dizer, para haver superveniência subjectiva, é necessário que à parte vencida tivesse sido impossível socorrer a esses elementos de prova no processo em que decaíu.
Se a parte tinha conhecimento da existência desses elementos de prova, e podia servir-se dele, não tem direito à revisão; se os não apresentou foi porque não quis; sofre, portanto, a consequência da sua determinação ou da sua negligência. Desde que pudesse utilizar esses elementos, deveria utilizá-los, para não sujeitar o tribunal a emitir uma decisão sobre dados incompletos; porque assim não procedeu, perdeu o direito a aproveitar-se dos elementos de prova em causa.
(E tudo isto são ideias aliás retiradas mutatis mutandis da doutrina do PROFESSOR ALBERTO DOS REIS, in Código de Processo Civil anotado, Volume VI (reimpressão), Coimbra Editora, 1985, pág. 353 e segs., que se mantêm ainda actuais e como tal também aplicáveis na interpretação do alcance da norma do art.º 431.º, n.º 1, alínea d), do actual CPP).
E só após verificado o requisito de “novidade” – na vertente objectiva ou na subjectiva – dos elementos de prova qualificados como sendo novos pelo requerente da revisão, é que se pode passar a ajuizar se os mesmos, de per si ou combinados com os já apreciados no processo anterior, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
Isto é: passa-se a indagar qual teria sido o resultado da decisão proferida no processo anterior, se os novos elementos de prova estivessem no processo.
Assim, se se convence de que se esses elementos novos estivessem no processo, a sentença teria sido diversa, então deve admitir-se a revisão da sentença. E para isto, os novos elementos probatórios hão-de ser tal que criem um estado de facto diverso daquele sobre que assentou a sentença cuja revisão se requer.
Entretanto, há que distinguir também duas fases da revisão, a saber: o judicium rescindens e o judicium rescissorium.
Na primeira fase, a de judicium rescindens (juízo rescindente), só cabe julgar se procede o fundamento da revisão da sentença (cfr. maxime o art.º 437.º, n.° 3, do CPPM). E se sim, entrar-se-á na fase subsequente, a de judicium rescissorium (juízo rescissório), em que haverá que proferir nova sentença, depois de se efectuarem as diligências absolutamente indispensáveis e efectuado novo julgamento (cfr. os art.°s 439.°, 441.° e 442.° do CPPM). Daí se retira que apesar da admissão da revisão, o recurso pode deixar de obter o provimento a final (cfr. os art.ºs 443.° e 445.° do mesmo CPPM, confrontadamente) (apud também mutatis mutandis, o PROFESSOR ALBERTO DOS REIS, ibidem).
Aplicando-se agora a tese em geral acima reputada como correcta ao presente caso concreto, é de verificar que os elementos de prova ora apresentados pela requerente de revisão no seu requerimento de revisão de sentença não podem ser considerados novos, em qualquer das duas vertentes supra definidas.
Desta feita, há-de naufragar na mesma a pretensão da ora requerente.
É, pois, de concluir que não se pode emitir um juízo rescindente ao caso sub judice, não sendo já mister conhecer de todo o remanescente alegado pela requerente no seu pedido de revisão.
IV – DECISÃO
Por todo o expendido, acordam em denegar a revisão pretendida pela pessoa condenada A.
Custas pela requerente, com cinco UC de taxa de justiça.
Macau, 4 de Fevereiro de 2016.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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