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Processo nº 974/2015
(Autos de recurso laboral)

Data: 28/Janeiro/2016

Assuntos: Impugnação da matéria de facto
      Interpretação de negócio jurídico

SUMÁRIO
- A decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância se, entre outras situações, do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada a decisão com base neles proferida.
- Reapreciada e valorada a prova de acordo com o princípio da livre convicção, se conseguir chegar à conclusão de que outra versão dos factos se aproximaria mais da realidade, deve proceder-se à alteração das respostas dadas aos quesitos.
- Uma coisa é ser válida e eficaz uma declaração de vontade emitida pelo declarante, outra é a questão de saber qual será o alcance ou conteúdo dessa declaração de vontade, que consiste num problema de interpretação de negócios jurídicos, cuja matéria está prevista nos termos do artigo 228º do Código Civil.
- Na interpretação dos contratos, prevalece, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário, e faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, mas deixando de prevalecer aquele sentido quando não possa razoavelmente ser imputado ao declarante.
- Provado que o Autor bem sabia não ter direito a receber diariamente MOP$300,00 a título de “daily allowance”, e foi essa razão por que nunca o recebeu, assim como nunca o reclamou, somos a entender que, salvo o devido respeito, não há razões para proteger o Autor ora recorrido enquanto destinatário da respectiva declaração negocial.


O Relator,

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Tong Hio Fong

Processo nº 974/2015
(Autos de recurso laboral)

Data: 28/Janeiro/2016

Recorrente:
- A (Ré)

Recorrido:
- B (Autor)


Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
B intentou junto do Tribunal Judicial de Base da RAEM a presente acção de processo comum do trabalho, pedindo a condenação da A no pagamento do montante de MOP$976.800,00, acrescido de juros legais até integral e efectivo pagamento.
Realizado o julgamento, foi a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de MOP$976.800,00, acrescida de juros de mora calculados da data da sentença até efectivo e integral pagamento.
Inconformada com a sentença, dela interpôs a Ré recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. O facto proveniente do quesito 2º da base instrutória foi dado por provado com base no teor do documento de fls. 7 a 9.
2. Afigura-se contraditório que, tendo o Tribunal a quo julgado não provado que o contrato sub iudicio tivesse sido negociado entre as partes, tenha, ao mesmo tempo, considerado provada a existência de negociação e acordo sobre uma parte desse mesmíssimo contrato.
3. O Tribunal a quo invoca que a única testemunha inquirida nos autos “não sabia as circunstâncias em que o Autor e a Ré celebraram o contrato de trabalho em causa”, e por isso concluiu pela falta de prova de que tal contrato tivesse sido negociado entre as partes, como se indagava no quesito 1º - com o que terá de concluir-se que considerou que o documento de fls. 7 a 9 era por si só insuficiente para firmar a prova de tal negociação.
4. Já no tocante ao quesito 2º, agora focado na negociação de uma específica cláusula do contrato de trabalho, o Tribunal recorrido considerou que aquele mesmo documento de fls. 7 a 9 era bastante para demonstrar que as partes negociaram e acordaram o peticionado subsídio diário.
5. O depoimento da testemunha C, gravado nos ficheiros identificados supra, aponta igualmente no sentido de tal subsídio não corresponder a qualquer negociação ou acordo entre as partes.
6. Resulta desse depoimento que a testemunha em causa nunca esteve no escritório da R. nem contactou com o seu gerente antes de assinar o seu contrato de trabalho, nunca viu tal contrato antes dessa ocasião, não negociou as condições do contrato, não sabia em que circunstâncias teria direito a receber subsídio diário e estava, no início da sua relação laboral com a R., convicta de que iria receber 3200 patacas por mês.
7. Tais conclusões para o caso particular da testemunha, e, por presunção judicial, deverão valer também para o do A.
8. Face a todo o exposto, considera a R. que, pela devida ponderação dos meios de prova, tal como supra se sustenta, e em coerência com juízo probatório que incidiu sobre o quesito 1º da base instrutória, deverá a resposta ao quesito 2º ser alterada para não provado.
9. O Tribunal a quo considerou não provado o facto vertido no quesito 4º da base instrutória.
10. Ora, como se disse, do teor do depoimento da testemunha C é possível extrair conclusões acerca do que terá sido o processo tendente à celebração do contrato de trabalho do A., no sentido de que tal processo não contemplou qualquer negociação ou acordo sobre subsídio diário.
11. Do que forçosamente decorre que o A., não tendo negociado ou acordado receber tal subsídio, não podia deixar de estar consciente de que não tinha direito a ele.
12. A isto acresce que a matéria provada nos autos, em conjugação com a certidão judicial de fls. 225 a 255, permite de igual modo concluir que o A. não estava, nem durante nem após a sua relação laboral, convicto de ter direito a qualquer subsídio diário, e que foi apenas depois de, no contexto de acção que intentou contra a R., observar tal subsídio na cópia do seu contrato de trabalho, que lhe ocorreu peticioná-lo na presente acção.
13. Face a todo o exposto, considera a R. que, pela devida ponderação dos meios de prova, tal como supra se sustenta, deverá a resposta ao quesito 4º ser alterada para provado.
14. Em face da alteração do julgamento sobre a matéria de facto por que ora se pugna, e assim quedando demonstrada (i) a ausência de qualquer negociação entre as partes no tocante à atribuição de subsídio diário ao A. e (ii) a consciência deste último de que não tinha direito a receber um tal subsídio, deverá o presente recurso proceder, revogando-se a decisão a quo e absolvendo-se integralmente a R. do pedido contra ela formulado.
Quando assim não se entenda,
15. Foi já entendimento deste Venerando Tribunal que o subsídio diário “é determinado em função de cada dia de trabalho efectivo” e que a sua atribuição “depende da verificação da condição de prestação mensal mínima de 215 horas de trabalho”, conforme se consignou no Acórdão proferido nos autos de recurso n.º 763/2014.
16. Nos presentes autos, não se apurou quantos foram os dias de trabalho efectivo prestados pelo A. à R nem quais foram os meses em que terá prestado pelo menos 215 horas de trabalho.
17. Deverá pois a decisão a quo ser revogada, relegando-se para execução de sentença a liquidação do montante de subsídio a que o A. terá direito.
Conclui, pedindo a procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença proferida pelo Tribunal a quo, ou relegando para execução de sentença a liquidação do valor de daily allowance a atribuir ao Autor.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
Entre 30 de Julho de 1996 e 31 de Julho de 2005, o Autor prestou para a Ré funções de “guarda de segurança”. (alínea A) dos factos assentes)
Trabalhando sobre as ordens, direcção, instruções e fiscalização da Ré. (alínea B) dos factos assentes)
A Ré sempre fixou o local, o período e o horário de trabalho do Autor de acordo com as necessidades. (alínea C) dos factos assentes)
O Autor sempre respeitou os períodos e horários de trabalho fixados pela Ré, e sempre prestou trabalho nos locais indicados. (alínea D) dos factos assentes)
A relação de trabalho entre o Autor e a Ré foi titulada pelo Contrato individual de trabalho celebrado por eles em 30/07/1996 (cfr. fls. 7 a 9, que se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos). (alínea E) dos factos assentes)
O valor do salário mensal efectivamente acordado entre as partes foi de MOP$2.000,00. (alínea F) dos factos assentes)
Entre 01/08/1996 a 30/06/2005, o Autor prestou trabalho para a Ré durante todos os dias da semana (cfr. o fls. 10 a 46, que corresponde ao «Mapa de presenças do Autor» - Daily Timesheet Record - relativo ao período compreendido entre 1/07/1999 a 30/06/2005, que se junta e dá por reproduzido para os legais efeitos). (alínea G) dos factos assentes)
Nos termos do Ponto 1 – SALÁRIO - do referido contrato de trabalho outorgado em 30/07/1996, foi pelas partes negociado e acordado que o Autor tem direito a auferir, entre outros, a um “subsídio diário de MOP$300,00” (daily allowance MOP$300,00)”. (Resposta ao quesito 2º da base instrutória)
Entre 01/08/1996 a 30/06/2005, a Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de “subsídio diário” (“daily allowance”) (cfr. o fls. 47 a 56, que corresponde ao «Mapa de pagamento de salários» - Payment History Report - que se junta e dá por reproduzido para os legais efeitos). (Resposta ao quesito 3º da base instrutória)
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Da impugnação da matéria de facto constante da resposta aos quesitos 2º e 4º da base instrutória
Alega a recorrente que, partindo da prova testemunhal e documental constante dos autos, mormente o documento de fls. 7 a 9, não era suficiente para demonstrar a negociação de uma cláusula encontrada no contrato de trabalho celebrado pelo Autor e Ré, por falta de coerência com o juízo probatório que incidiu sobre o quesito 1º da base instrutória, o qual foi dado como “não provado”, entendendo que deverá, assim, a resposta ao quesito 2º ser alterada para “não provado”.
Antes de mais, vejamos quais foram as respostas dadas aos dois quesitos.
Perguntava-se no quesito 1º da base instrutória se “o contrato referido na al. E) dos Factos Assentes foi negociado entre o Autor e a Ré”, mereceu resposta de “não provado”.
Ao passo que se perguntava no quesito 2º se “Nos termos do Ponto 1 – SALÁRIO – do referido contrato de trabalho outorgado em 30/07/1996, foi pelas partes negociado e acordado que o Autor tem direito a auferir, entre outros, a um “subsídio diário de Mop$300,00” (daily allowance MOP$300,00)”, mereceu resposta afirmativa.
Em nossa modesta opinião, julgamos que, em certa medida, existe contradição entre as duas respostas.
Uma vez que provado não ficou que entre o Autor e a Ré foi negociado o contrato individual de trabalho celebrado entre eles em 31/07/1996, não se compreende em que termos podiam as partes negociar especificamente o conteúdo de uma das cláusulas contida nesse mesmo contrato.
Uma vez impugnada a resposta ao referido quesito 2º da base instrutória, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 629º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 1º do Código de Processo do Trabalho, vai agora o nosso Tribunal reapreciar as provas em que assentou a matéria impugnada pela recorrente.
Comecemos pela prova testemunhal.
Devidamente ouvida a gravação do depoimento da única testemunha dos autos, mostrou-se ela desconhecedora das específicas circunstâncias em que o Autor celebrou o seu contrato de trabalho com a Ré, apenas vem referir que ela própria também celebrou semelhante tipo de contrato com a Ré, nele se mencionava igualmente um subsídio diário (“daily allowance”).
Ainda no tocante ao depoimento desse única testemunha, podemos concluir que, no seu caso, não houve uma negociação recíproca e ponto a ponto dos termos do contrato, tendo a testemunha referido que o gerente da Ré apenas lhe tinha mostrado um contrato escrito aquando da entrevista e que, depois de devidamente lido pelo gerente e pela própria testemunha, ela assinou o tal contrato.
Tem sido entendido pelo Tribunal que o depoimento prestado por testemunhas, enquanto colegas de serviço que exerciam as mesmas ou semelhantes funções, vale como meio de prova suficiente para, por presunção judicial, se extrair as condições de trabalho da parte litigante.
Atentas as circunstâncias de contratação descritas pela testemunha, estamos convicto de que entre o Autor e a Ré não houve uma negociação ponto a ponto, no sentido de discutirem e debruçarem reciprocamente sobre os termos precisos do contrato de trabalho, e o que aconteceu na realidade foi no sentido de que o trabalhador, aquando da entrevista, aceitou pura e simplesmente a proposta de trabalho fornecida pela entidade patronal, firmada por meio de um documento escrito devidamente assinado e rubricado por cada uma das partes.
Nestes termos, julgamos que a resposta ao quesito 2º da base instrutória deve ser alterada da seguinte forma:
“Consta do contrato firmado pelos Autor e Ré e referido na alínea E) dos factos assentes uma cláusula, segundo a qual o Autor tem direito a auferir um subsídio diário de MOP$300,00 (daily allowance MOP$300,00).”
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Em segundo lugar, a recorrente impugna ainda a resposta dada ao quesito 4º, pedindo que se dê como provado o quesito in totum.
Perguntava-se nesse quesito o seguinte:
“O Autor sempre esteve consciente de que não tinha direito a qualquer “subsídio diário”, e foi essa razão por que nunca o recebeu, assim como nunca o reclamou?”
Alega a recorrente que de acordo com o depoimento da testemunha, é possível extrair conclusões acerca do que terá sido o processo tendente à celebração do contrato de trabalho do Autor, no sentido de que tal processo não contemplou qualquer negociação ou acordo sobre subsídio diário, daí que decorre forçosamente que o Autor não podia deixar de estar consciente de que não tinha direito a esse subsídio.
Segundo entendeu o tribunal recorrido, “a única testemunha não sabia das circunstâncias em que o Autor e a Ré celebraram o contrato de trabalho em causa, nem que o Autor esteve consciente de que não teve direito ao subsídio diário. Os documentos constantes dos autos também não evidenciam os factos relativos aos mesmos quesitos, sobretudo, com os documentos de fls. 225 a 255 só se consegue provar, por si só, o facto de que o Autor não pediu o subsídio diário na acção anterior, mas não o de que ele já teve conhecimento de não ter esse direito.”
Reapreciada a prova produzida, salvo o devido respeito por melhor opinião, não podemos acompanhar o douto raciocínio.
Reconhecemos que se trata de um facto de natureza essencialmente pessoal de que apenas o próprio Autor sabia perfeitamente.
Em boa verdade, somos a entender que a prova documental, mormente os documentos de fls. 225 a 255, por si só, não consegue provar o quesito em apreciação, quando muito só permitiria fazer a prova de que o Autor não pediu o subsídio diário na acção anterior, mas não o facto de que ele já teve conhecimento de não ter esse direito.
Mas cremos que na apreciação da matéria de facto controvertida, devemos ter em linha de conta todos os elementos probatórios, em conjugação com as demais circunstâncias laterais, a fim de permitir formar seguramente a nossa convicção.
No caso vertente, após a devida ponderação, somos capazes de chegar a convicção de que o Autor bem sabia que desde o início de funções já não tinha direito a receber o tal subsídio diário de MOP$300,00.
Senão vejamos, começando pelo depoimento da única testemunha arrolada nos autos.
Disse aquela testemunha em audiência que quando começou a trabalhar e recebeu o seu primeiro pagamento, achou estranho porque a recorrente lhe faltava pagar uma parte do rendimento respeitante ao seu “daily allowance”, mas por ter receio de ser despedida, não se queixou nem chegou a perguntar à recorrente sobre a atribuição do tal subsídio.
No fundo, a testemunha começou por negar que esteve consciente de que não tinha direito ao subsídio diário, pelo contrário, disse que sabia ter direito àquele subsídio, e no seu caso, no montante de MOP$200,00 por dia.
Mas em nossa opinião, julgamos que o seu depoimento não nos convence.
Disse ela que, por ter medo de ser despedida, nunca chegou a reclamar nem perguntar à sua entidade patronal sobre a atribuição do subsídio diário.
Ora bem, em nossa opinião, se ela nunca chegou a reclamar ou perguntar à entidade patronal sobre a atribuição do referido subsídio, como é que ela sabia que a entidade patronal ficaria descontente ou que iria despedir-lhe? Será que a entidade patronal tinha dito alguma coisa a ela ou ao Autor, fazendo com que eles passassem a ter receio de ser despedidos? Não nos parece, pelo menos nunca foi referido pela testemunha quanto a esse aspecto, daí que entendemos que a justificação dada pela testemunha de que ela, ou também o Autor, tinha receio do despedimento não se procede.
Ainda que fosse verdade a tal afirmação, não se compreenderia por que razão o Autor só veio reclamar o tal subsídio diário em discussão em 2013, se bem que deixou de trabalhar para com a Ré já em 2005, ou seja, 8 anos depois da cessação do seu contrato de trabalho.
Embora se possa dizer que o recorrido era livre de intentar acção em tribunal em qualquer altura, desde que estivesse ainda em tempo, mas se o Autor tivesse conhecimento de que era esse o seu direito desde o momento da sua contratação, não encontraríamos razões para que o Autor intentasse a presente acção só 8 anos depois da cessação do contrato de trabalho, considerando que o valor agora peticionado e supostamente devido ao recorrido dizia respeito a quase um milhão de patacas, ou seja, tratando-se de um valor consideravelmente elevado em comparação com o seu próprio salário mensal.
Por outro lado, é bom de ver que, ao ser instada pelo juiz a quo qual seria o valor que a testemunha estava convicta de que ira receber ao fim do mês, respondeu a testemunha que era MOP$3.200,00.
Finalmente, ainda há um ponto que merece ponderação.
De facto, em 1996, altura em que o Autor foi contratado, o salário médio dos residentes de Macau não ultrapassa cinco mil patacas (de acordo com os dados estatísticas divulgados no internet), aliás um terceiro oficial administrativo na função pública também só auferia MOP$9.165,00 (índice 195 * 47), pelo que era pouco provável que a entidade patronal teria oferecido MOP$300,00 por dia só a título de subsídio, sem embargo do salário mensal, aos trabalhadores que só desempenhavam o cargo de guarda de segurança; nem se acredita que os trabalhadores, neste caso dos candidatos a guardas de segurança, pudessem alguma vez ter pensado que poderiam ganhar um vencimento cujo valor seria superior ao dobro do salário médio dos residentes de Macau.
Aqui chegados, pese embora o facto de no contrato de trabalho constar a estipulação do “daily allowance MOP$300,00”, mas segundo as circunstâncias descritas pela testemunha e as razões acima apontadas, aplicáveis também ao Autor, somos a concluir que ele nunca esteve consciente de que tinha esse direito, pelo menos dentro do contexto do pedido formulado pelo recorrido no sentido de ter direito a receber MOP$300,00 por dia, pelo que procedem as razões da recorrente nesta parte, alterando-se a resposta ao quesito 4º da base instrutória nos termos seguintes:
“O Autor sempre esteve consciente de que não tinha direito a receber diariamente MOP$300,00 a título de “daily allowance”, e foi essa razão por que nunca o recebeu, assim como nunca o reclamou?”
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Da aplicação do direito
É verdade que o contrato de trabalho foi assinado por ambas as partes, e nenhumas delas lograram invocar a sua falsidade.
Também não logrou a recorrente impugnar a resposta negativa dada pelo tribunal recorrido ao quesito 5º da base instrutória, nos termos do qual se pretendia investigar se a inserção da cláusula relativa à “daily allowance” resultava de um erro de processamento de texto.
Sendo assim, qual será a solução do caso?
Diz o nº 1 do artigo 216º do Código Civil que “a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida(…)”.
In casu, não há dúvidas de que, sendo uma declaração receptícia, não se exige a prova do conhecimento por parte do destinatário, bastando que a tal declaração tenha chegado ao poder deste último.
E de facto, tendo o Autor ora recorrido celebrado o contrato de trabalho para com a entidade empregadora ora recorrente, a declaração emitida por esta considera-se devidamente recebida pelo recorrido, não deixando aquela, assim, de ser eficaz.
Mas convém estar atento a um outro aspecto: uma coisa é ser válida e eficaz uma declaração de vontade emitida pelo declarante, outra é a questão de saber qual será o alcance dessa declaração, nomeadamente no tocante à determinação do conteúdo dessa declaração de vontade, em especial, no que diz respeito a “daily allowance”.
No fundo, trata-se de um problema de interpretação, cuja matéria está prevista nos termos do artigo 228º do Código Civil.
Preceitua-se nessa disposição legal que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”.
Coloca-se aqui a distinção das chamadas posições subjectivistas e objectivistas.
Segundo Mota Pinto, para as posições subjectivistas, o intérprete deve buscar, através de todos os meios adequados, a vontade real do declarante, ou seja, o negócio valerá com o sentido subjectivo, como foi querido pelo autor da declaração; enquanto para as posições objectivistas, o intérprete não vai pesquisar a vontade efectiva do declarante, mas um sentido exteriorizado ou cognoscível através de certos elementos objectivos.1
Costuma-se falar da teoria da impressão do destinatário, aplicável no âmbito da interpretação de negócios jurídicos, segundo a qual esta deve fazer-se de acordo com o sentido que lhe atribuiria um declaratário normal, de inteligência e diligência médias, colocado na situação do real declaratário.
Refere ainda Mota Pinto que segundo o artigo 228º do Código Civil, “a prevalência do sentido correspondente à impressão do destinatário é, todavia, objecto, na lei, de uma limitação: para que tal sentido possa relevar torna-se necessário que seja possível a sua imputação ao declarante, isto é, que este pudesse razoavelmente contar com ele”. E se destinatário conhece a vontade real do declarante, afirma o ilustre Professor que, “é de acordo com ela que vale a declaração emitida, neste caso, a vontade real, podendo não coincidir como sentido objectivo normal, correspondeu à impressão real do destinatário concreto, seja qual for a causa da descoberta da real intenção do declarante”.2
Assim, conclui-se que, na interpretação dos contratos, prevalece, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário, e faltando esse conhecimento, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, mas deixando de prevalecer aquele sentido quando não possa razoavelmente ser imputado ao declarante.
No caso vertente, não se encontra provado qual seria a vontade real da recorrente enquanto declarante do negócio, mas provado está que o Autor bem sabia não ter direito a receber diariamente MOP$300,00 a título de “daily allowance”, e foi essa razão por que nunca o recebeu, assim como nunca o reclamou.
Se o que releva é o sentido que seria considerado por uma pessoa normalmente diligente, sagaz e experiente em face dos termos da declaração e de todas as circunstâncias situadas dentro do horizonte concreto do declaratário3, e uma vez que o Autor ora recorrido bem sabia não ter esse direito, somos a entender que não há razões para proteger o Autor enquanto destinatário da respectiva declaração negocial.
Aqui chegados, salvo o devido respeito por melhor opinião, temos que conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida com a consequente absolvição da recorrente do pedido.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela recorrente A, e em consequência, revogando a decisão recorrida, absolve a recorrente do pedido.
Custas pelo recorrido (Autor), em ambas as instâncias.
Registe e notifique.
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RAEM, 28 de Janeiro de 2016
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, pág. 443
2 Obra citada, pág. 444 e 445
3 Mota Pinto, obra citada, pág. 444
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Recurso laboral 974/2015 Página 19