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Proc. nº 966/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 04 de Fevereiro de 2016
Descritores:
-Contrato a favor de terceiro
- Subsídio de alimentação
-Subsídio de efectividade

SUMÁRIO

I. A celebração de um “contrato de prestação de serviços” entre uma empresa fornecedora de mão-de-obra não residente em Macau e outra empregadora dessa mão-de-obra, no qual esta assume desde logo um conteúdo substantivo mínimo das relações laborais a estabelecer com os trabalhadores que vier a contratar, tal como imposto por despacho governativo, representa para estes (beneficiários) um contrato a favor de terceiro, cuja violação por parte da promitente empregadora gera um correspondente direito de indemnização a favor daqueles.

II. O subsídio de alimentação visa compensar uma despesa diariamente suportada pelos trabalhadores quando realiza a sua actividade, visa compensar uma despesa na qual o trabalhador incorre diariamente, sempre que vai trabalhar, e portanto, deve ser considerado como compensação pela prestação de serviço efectivo.

III. Quanto ao subsídio de efectividade, vista a sua natureza e fins - já não se manifestam as razões que levam a considerar que a sua atribuição esteja excluída numa situação de não assiduidade justificada ao trabalho. Se o patrão autoriza uma falta seria forçado retirar ao trabalhador uma componente retributiva da sua prestação laboral, não devendo o trabalhador ser penalizado por uma falta em que obteve anuência para tal e pela qual o patrão também assumiu a sua responsabilidade












Proc. nº 966/2015

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – RELATÓRIO
A, de nacionalidade filipina, titular do Passaporte Filipino n.º EBXXXXX98, emitido pela autoridade competente da República das Filipinas, em 18 de Dezembro de 2010, com residência na Rua do XX, n.º XX, XX.º andar, “XX”, Macau, vem deduzir contra:
B (MACAU) - SERVIÇOS E SISTEMAS DE SEGURANÇA - LIMITADA, com sede na Avenida XX, s/n, Edifício XX, Fase XX, XX.º Andar XX, Macau,
Acção de processo comum do trabalho, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de Mop$ 226.720,00, a título de diferenças salariais (71.400,00), trabalho extraordinário (25.090,00), subsídio de alimentação (38.430,00), subsídio de efectividade (30.600,00) e de trabalho prestado em dias de descanso semanal (61.200,00).
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Foi na oportunidade proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré “B” a pagar ao autor a quantia global de Mop$ 180.490,85,00 a título de diferenças salariais (63.326,67), trabalho extraordinário (22.352,20), subsídio de alimentação (33.555,00), subsídio de efectividade (29.213,48), descansos semanais não gozados (32.043,50).
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É contra essa sentença que ora se insurge a ré da acção, “B”, através do presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«a) O Despacho consagra um procedimento de importação de mão-de-obra nos termos do qual é imposta a utilização de um intermediário com o qual o empregador deve celebrar um contrato de prestação de serviços;
b) A decisão recorrida perfilha o entendimento de que o Despacho se reveste de imperatividade e estabelece condições mínimas de contratação de mão-de-obra não residente;
c) Contrariando tal entendimento, o Despacho em parte alguma estabelece condições mínimas de contratação ou até cláusulas-tipo que devessem integrar o contrato de trabalho a celebrar entre a entidade empregadora e o trabalhador;
d) É patente que o Despacho não fixa de forma alguma condições de contratação específicas e que, ainda que o fizesse, a violação dos seus termos importaria infracção administrativa, e não incumprimento de contrato de trabalho;
e) Assim, contrariamente ao que se propugna na decisão recorrida, nada permite concluir pela natureza imperativa do Despacho;
f) Decidindo em sentido inverso, o Tribunal recorrido fez errada aplicação do Despacho, nomeadamente dos seus arts. 3º e 9º;
g) Os Contratos são configurados na decisão a quo como contratos a favor de terceiro, nos termos do art. 437º do Código Civil;
h) Nesta lógica, o A. apresentar-se-á como terceiro beneficiário de uma promessa assumida pela R. perante a Sociedade, com o direito de exigir daquela o cumprimento da prestação a que se obrigou perante esta;
i) As partes nos Contratos, assim como o próprio Despacho 12/GM/88, qualificaram-nos como “contratos de prestação de serviços”;
j) Deles é possível extrair que a Sociedade “contratou” trabalhadores não residentes, prestando o serviço de os ceder, subsequentemente, à R.;
k) Tais Contratos são pois efectivos contratos de prestação de serviços, não podendo ser qualificados como contratos a favor de terceiros;
l) Por outro lado, é unânime que a qualificação de um contrato como sendo a favor de terceiro exige que exista uma atribuição directa ou imediata a esse terceiro;
m) Tem-se entendido que o conceito de contrato a favor de terceiro implica a concessão ao terceiro de um benefício ou de uma atribuição patrimonial, e não apenas de um direito a entrar numa posição jurídica em que se tem a hipótese de auferir uma contraprestação de obrigações;
n) A obrigação da ora R. é assumida apenas perante a Sociedade, não havendo intenção ou significado de conferir qualquer direito, pelo contrato de prestação de serviços, a qualquer terceiro;
o) Igualmente não existe nos Contratos qualquer atribuição patrimonial directa a qualquer terceiro;
p) Sendo pacífico que o contrato a favor de terceiro exige que a prestação a realizar seja directa e revista a natureza de atribuição, é incorrecto o entendimento de que a contratação do A. pela R. é uma prestação à qual a R. ficou vinculada por força do contrato de prestação de serviços;
q) Não pode considerar-se que a remuneração do contrato de trabalho constitua essa atribuição, porque tal afastaria o requisito de carácter directo da prestação no contrato a favor de terceiro;
r) Como tal, é patente que não resulta dos Contratos nenhuma atribuição patrimonial directamente feita ao A., que este possa reivindicar enquanto suposto terceiro beneficiário;
s) Os Contratos ficam pois completamente no domínio do princípio da eficácia relativa dos contratos, vertido no art. 400º, nº 2 do Código Civil (princípio res inter alios acta, aliis neque nocet neque prodest);
t) Por fim, a figura do contrato a favor de terceiro pressupõe que o promissário tenha na promessa um interesse digno de protecção legal;
u) Não consta dos autos qualquer facto que consubstancie um tal interesse;
v) Assim, admitindo que dos Contratos resultará qualquer direito a favor do A., sempre ficou por demonstrar que a Sociedade tivesse interesse nessa promessa, o que impede a qualificação dos Contratos como contratos a favor de terceiro;
w) Assim, arredada a aplicação do mecanismo do contrato a favor de terceiro, nenhum outro sobreleva que possa suportar a produção, na esfera jurídica do A., de efeitos obrigacionais emergentes dos Contratos;
x) Ao decidir como o fez, o Tribunal recorrido violou o disposto nos arts. 400º, nº 2 e 437º do Código Civil;
y) Em função do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos, conclui-se que nenhum direito assiste ab initio ao A. para reclamar quaisquer “condições mais favoráveis” emergentes destes contratos;
z) Pelo que não deverá ser-lhe atribuída qualquer quantia a título de putativas diferenças salariais;
aa) Do mesmo correcto entendimento do Despacho e dos Contratos deverá decorrer a absolvição da R. também quanto ao pedido formulado a título de trabalho extraordinário;
bb) Do correcto entendimento do Despacho e dos Contratos resulta a sua ineficácia para atribuir ao A. qualquer direito a título de subsídio de alimentação;
cc) O devido entendimento quanto à ineficácia obrigacional do Despacho e dos Contratos deve igualmente conduzir à absolvição da R. do pedido formulado a título de subsídio de efectividade;
dd) Acresce que, nos termos dos Contratos, o subsídio de efectividade é um mecanismo destinado a premiar a efectiva prestação de trabalho;
ee) Nesse sentido, é para o empregador irrelevante que o empregado, faltando, o faça por motivo atendível e justificado, ou até sob autorização prévia;
ff) Assim, ao decidir no sentido de que as faltas justificadas ou autorizadas não devem ser tidas em conta para a aferição do subsídio de efectividade, a decisão o quo violou uma vez mais o disposto no art. 228º, nº 1 do Código Civil.
Nestes termos, e nos mais de Direito, revogando a decisão recorrida nos termos e com as consequências expostas supra, farão V. Exas a costumada JUSTIÇA ».
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores. (alínea A) dos factos assentes)
Desde o ano de 1994, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior». (alínea B) dos factos assentes)
A Ré celebrou com a C Lda., os denominados (contratos de prestação de serviços): n02/94, de 03/01/1994; nº 29/94, de 11/05/1994; nº 45/94, de 27/12/1994. (alínea C) dos factos assentes)
Do teor dos contratos aludidos em C) resultava que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré teriam direito a auferir no mínimo MOP$90,00 diárias, acrescidas de MOP$15,00 diárias a título de subsídio de alimentação, um subsídio mensal de efectividade (igual ao salário de quatro dias), sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço, sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, sendo o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau. (alíneas D) dos factos assentes)
A Ré sempre apresentou junto da entidade competente, maxime junto da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), cópia dos «contratos de prestação de serviço» supra referidos, para efeitos de contratação de trabalhadores não residentes. (alíneas E) dos factos assentes)
O Autor esteve ao serviço da Ré para, sob as suas ordens, direcção, instruções e fiscalização exercer funções de guarda de segurança, mediante o pagamento de um salário. (alíneas F) dos fados assentes)
Autor foi admitido ao serviço da Ré na sequência de um contrato, denominado de prestação de serviços, celebrado com a dita C Lda. (alíneas G) dos factos assentes)
Ao longo da relação laboral, a Ré apresentou ao Autor vários documentos escritos denominados contratos individuais de trabalho, que este assinou. (alínea H) dos factos assentes)
A Ré celebrou ainda com a C Lda., os denominados “contrato de prestação de serviços”: nº 1/01 de 03 de Janeiro de 2001 e n.º 14/01, de 26 de Março de 2001, constantes dos autos a fls. 112 a 116 e fls.117 a 121, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos. (alínea I) dos factos assentes)
O Autor exerceu funções para a Ré do dia 01.12.1994 até ao dia 31.12.2001. (Quesito 1º da base instrutória, aceite pelas partes)
O Autor foi admitido ao serviço da Ré e, posteriormente exerceu a sua prestação de trabalho para a mesma, ao abrigo de um dos contratos aludidos em C). (Quesito 2º da base instrutória, aceite pelas partes)
Entre Janeiro de 1995 e Setembro de 1995, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1,500.00 mensais. (Quesito 3º da base instrutória, aceite pelas partes)
Entre Outubro de 1995 e Junho de 1997, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1,700.00 mensais. (Quesito 4º da base instrutória, aceite pelas partes)
Entre Julho de 1997 e Março de 1998, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1,800.00 mensais. (Quesito 5º da base instrutória, aceite pelas partes)
Entre Abril de 1998 e Dezembro de 2001, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,000.00 mensais. (Quesito 6º da base instrutória, aceite pelas partes)
Entre 1 de Dezembro de 1994 e 30 de Junho de 1997, o Autor trabalhou 12 horas de trabalho por dia. (Resposta ao quesito 7º da base instrutória)
Tendo a Ré remunerado o trabalho extraordinário à razão de MOP$8.00, por hora. (Quesito. 8º da base instrutória, aceite pelas partes)
Entre Julho de 1997 e Dezembro de 2001, o Autor trabalhou 12 horas de trabalho por dia. (Resposta ao quesito da 9º da base instrutória)
Tendo a Ré remunerado o trabalho extraordinário à razão de MOP$9.30, por hora. (Quesito 10º da base instrutória, aceite pelas partes).
Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, a Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação. (Resposta ao quesito da 11º da base instrutória) Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, nunca este, sem conhecimento e autorização prévia pela Ré, deu qualquer falta ao trabalho. (Resposta ao quesito da 12º da base instrutória)
Durante todo o período da relação laboral, a Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de «subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias». (Resposta ao quesito da 13º da base instrutória)
Durante todo o período da relação laboral, nunca o Autor gozou de qualquer dia a título de descanso semanal. (Resposta ao quesito da 14º da base instrutória)
A prestação de trabalho pelo Autor nos dias de descanso semanal foi remunerada pela Ré com o valor de um salário diário, em singelo. (Quesito 15º da base instrutória, aceite pelas partes)
E sem que lhe tenha sido concedido um dia de descanso compensatório. (Resposta ao quesito da 16º da base instrutória)
A partir de 15 de Janeiro de 2001, os contratos aludidos em C) foram substituídos pelos contratos de prestação de serviços n.º 1/01 e 14/01. (Quesito 17º da base instrutória, aceite pelas partes) Passando o Autor a estar ao serviço da Ré no âmbito de autorizações concedidas em processo administrativo relativo ao contrato de prestação de serviços n.º 1/01 e 14/01. (Quesito 18º da base instrutória, aceite pelas partes)
O Autor prestou 2382 dias de trabalho efectivo para a Ré. (Quesito 20º da base instrutória, aceite pelas partes).
***
III – O Direito
1 - Insurge-se a ré da acção contra a sentença no tocante à:
- Natureza do Despacho nº 12/GM/88;
- Qualificação dos contratos celebrados entre si e a “C Limitada”;
- Diferenças Salariais;
- Trabalho Extraordinário;
- Subsídio de Alimentação;
- Subsídio de Efectividade
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2 - Do Despacho nº 12/GM/88 e da Qualificação dos contratos celebrados entre a “C Limitada “ e “B”.
Este assunto, que a recorrente uma vez mais esgrime junto do TSI, está sobejamente tratado e não vemos motivo para alterar a posição que de nós tem merecido.
Por comodidade, transcreveremos o que foi dito no Ac. TSI, de 28/11/2013, Proc. nº 824/2010:
“1ª questão
Que tipo de relação administrativa se estabeleceu entre B e a Administração?
Quando a ora recorrida se dirigiu à Administração pedindo admissão, nos termos do Despacho nº 12/GM/88 (leia-se autorização) para contratar não residentes, fê-lo como mero interessado particular que, para ver proferido o acto permissivo, deveria observar certos requisitos.
Superados os primeiros obstáculos através dos pareceres pertinentes favoráveis (cfr. nº9, a, b, do referido Despacho), a entidade competente proferiu despacho de admissão, condicionando-a, porém, à apresentação do contrato a celebrar entre requerente (B) e entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (C, Lda).
Aquele despacho disse, ainda, que a autorização implicava a sujeição da requerente a determinadas obrigações específicas: a) - manter um número de trabalhadores residentes igual à média dos que lhe prestaram serviço nos últimos três meses; b) - garantir a ocupação diária dos trabalhadores residentes ao seu serviço e manter-lhes os respectivos salários a um nível igual à média verificada nos três meses anteriores; c)- observar uma conduta compatível com as legítimas expectativas dos trabalhadores residentes).
Estamos, portanto, perante um acto administrativo cuja eficácia foi diferida para momento posterior, em virtude de os seus efeitos dependerem da verificação do requisito ulterior (arts. 117º, nº1 e 119º, al.c), do CPA): apresentação do contrato de prestação de serviço com a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente.
Ora, este contrato é, para este efeito, um contrato-norma com estipulações vinculantes para ambas as partes.
Ou seja, a Administração, satisfez-se com a celebração daquele instrumento negocial em que o futuro empregador (contratante B) declarava contratar futuros trabalhadores não residentes e prometia conceder-lhes as condições e regalias a que ali mesmo, livremente, se deixou subjugar. Claro está que, em nossa opinião, deveria ser mais natural e lógico que a condição fosse mais longe ao ponto de se exigir de todo e qualquer interessado na aquisição de mão-de-obra não residente em Macau a demonstração da efectiva contratação nos moldes em que o compromisso foi assumido perante a entidade fornecedora. Faria mais sentido, realmente, que a condição do acto não se ficasse pela realização de uma mera “declaração de intenções” ou de uma simples “promessa de facere”, que podia não ser, como não foi, cumprida. Na verdade, a vinculação entre as partes contratantes iniciais (B e C) podia bem ser quebrada sem conhecimento do Governo, o qual assim nada podia fazer para repor as condições de trabalho que estiveram na base da autorização, ou até mesmo para a cancelar. Isto é, parece absurdo que se estabeleçam requisitos de contratação, que as partes iniciais acolheram no contrato-norma para que o despacho autorizativo adquirisse eficácia, e depois o autor do acto se desligue completamente da sorte dos contratos de aplicação dando azo a toda a sorte de incumprimentos e abusos eventuais. Não se deveria esquecer que os contratos de aplicação devem obediência não só ao contrato-norma, como ao acto autorizativo. E, por isso mesmo, é de questionar quais as consequências derivadas da violação dos contratos celebrados com o trabalhadores e quais os efeitos para estes (futuros e incertos) decorrentes desse contrato-norma. À primeira questão – sem sermos muito categóricos – somos de parecer que nem o Despacho 12/GM/88, nem o contrato firmado na sequência do despacho autorizativo estabelecem sanções. À segunda questão já somos obrigados a responder, e essa é tarefa que nos ocupará já de seguida.
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2ª Questão
Quais os direitos para os trabalhadores contratados na sequência daquele contrato de prestação de serviços celebrado entre B e C?
Tal como a sentença o afirma, ao caso não pode ser aplicável o DL nº 24/89/M, de 3/04, uma vez que este diploma se aplica aos trabalhadores residentes.
E também é certa, em parte, a ideia que emana da mesma decisão, segundo a qual o Despacho nº 12/GM/88 não visa estatuir sobre os contratos a celebrar entre empregadores e trabalhadores não residentes. Visa sim, e nessa medida reflecte-se sobre eles, determinar um conjunto de conteúdos mínimos que o empregador deve respeitar nos contratos a celebrar. Contudo, não desce ao pormenor dos direitos e regalias concretas, embora se refira no art. 9, d.2 ao dever de ser averiguado no contrato de prestação de serviços se se encontra satisfeita a garantia do pagamento do salário acordado com a empresa empregadora. Ora, como pode ser prestada esta garantia se depois do contrato com o trabalhador ninguém mais controla o cumprimento do clausulado! E como garantir no contrato-norma algo que só no contrato de aplicação pode ser constatado! Por conseguinte, só indirectamente se pode dizer que os contratos celebrados com os trabalhadores têm no referido despacho a sua regulação normativa.
A Lei nº 4/98/M, de 29/97, por seu turno, também não passa de um conjunto de normas programáticas inseridas naquilo que é uma Lei de Bases (Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais), não preenchendo as necessidades de regulação as normas que constam do art. 9º, uma vez que aí igualmente nada é estabelecido sobre o conteúdo das relações laborais entre aqueles.
Só a Lei nº 21/2009/M de 27/10, sim, define um conjunto de regras a que deve obedecer a contratação de trabalhadores não residentes, mas escapa ao nosso raio de alcance, atendendo ao momento em que surge a lume.
De qualquer modo, assentem os contratos celebrados com os trabalhadores não residentes indirectamente no Despacho nº 12/GM/88, ou derivem eles directamente do contrato firmado entre B e C, a verdade é que ninguém se atreve a dizer que aquele instrumento contratual e o Despacho em causa são de todo inertes e indiferentes ao clausulado que viesse a integrar o contrato entre empregador e trabalhadores. A questão só se complica na medida em que se trata de pessoas que não intervieram no referido instrumento. Daí que se pergunte a que título dele nasceram direitos para a sua esfera.
Não se pode dizer com total tranquilidade que há lacuna de regulamentação, se for de pensar que a vinculação do instrumento entre B e C é suficiente, isto é, se for de considerar que, mesmo que por causa do despacho autorizativo e do Despacho 12/GM/88, os direitos nascem com aquele instrumento. Faltaria apurar somente a que título.
A sentença em crise entende, porém, que não, por não sentir emergir daquele contrato de prestação de serviços nenhuma das figuras contratuais que costumam associar terceiros não intervenientes, como foi o caso.
Por outras palavras, a questão é a do apuramento da natureza jurídica desse contrato no que a estes terceiros concerne.
E considerando não se estar perante um contrato de trabalho, um contrato de trabalho para pessoa a nomear, ou um contrato de cedência de trabalhadores – por razões que explicita e com as quais concordamos, mas que, por comodidade e desnecessidade ao desfecho decisório do recurso nos dispensamos de reproduzir – acabou por concluir que, do mesmo modo, não se estaria em presença do contrato a favor de terceiros, mas eventualmente ante um contrato de promessa de celebrar um contrato de trabalho com pessoa a nomear (sem qualquer efeito na relação laboral contratada entre empregador e trabalhador) e que apenas permitiria à beneficiária (C) reclamar prejuízos resultantes do incumprimento.
E para assim concluir, arrancando da leitura do art. 437º do Código Civil, foi peremptório em afirmar que no conceito da figura do contrato a favor de terceiro avulta o requisito da “prestação”, que aqui julga não ser possível, uma vez que essa prestação apenas equivaleria à “celebração de outro contrato” (ver fls. 20 vº a 22 da sentença). Argumento a que ainda adita o de que de um contrato a favor de terceiro não podem nascer obrigações para este. Dois obstáculos, portanto, que, em sua óptica, o impediam de preencher os elementos-tipo desta espécie contratual.
A solução a dar a ambos estes impedimentos invocados pelo Ex.mo juiz “a quo” merece um tratamento em bloco.
Vejamos.
Segundo o art. 437º do CC:
“1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais”.
No contrato a favor de terceiro, como se vê, existem três elementos pessoais a considerar: dois contraentes e um beneficiário; de um lado, o promitente, a pessoa que promete realizar a prestação e o promissário, a pessoa a quem é feita a promessa; do outro, o terceiro beneficiário, estranho à relação contratual, mas que adquire direito à prestação. Eis aqui um bom exemplo de desvio à relatividade dos contratos ou ao princípio do efeito relativo (inter-partes) dos contratos1.
Claro que se poderia alvitrar que, para valer perante um qualquer terceiro, este deveria ser designado no contrato como beneficiário, o que implicava desde logo a sua identificação. Todavia, este eventual obstáculo tomba sob o peso da norma criada pelo art. 439º, ao permitir que a prestação pode ser estipulada a favor de terceiro indeterminado, bastando que o beneficiário seja determinável no momento em que o contrato vai produzir efeitos a seu favor.
Regra geral, portanto, do contrato nasce um direito a uma prestação2, a uma vantagem3, não uma obrigação4. Por isso se diz que o efeito para a esfera do “beneficiário” deva ser positivo5.
A questão está, agora, em saber duas coisas:
Uma, se esse efeito positivo ou de vantagem é incompatível com a atribuição de deveres; outra, como deve esse efeito ser conferido, isto é, qual a forma de manifestação da prestação.
A primeira questão, é respondida com relativa facilidade. É certo que através de um contrato entre duas partes não pode impor-se apenas uma obrigação a outra pessoa que nele não tenha figurado, enquanto objecto único dos efeitos pretendidos em relação a ela. Isso contraria o espírito da relatividade contratual na sua essência mais pura e escapa, pela letra do preceito transcrito, à sua mais estrita previsão. Não é disso, porém que aqui se trata.
Por outro lado, a imposição de deveres, num quadro mais alargado de uma posição jurídica que também envolva vantagens, não tem qualquer eficácia se o terceiro não os aceitar dentro da sua livre determinação e no quadro do exercício da sua vontade. De resto, é hoje pacífico que podem ser fixados ónus e deveres ao terceiro, sem que com isso resulte afectada a sua margem de liberdade. As partes atribuem-lhe vantagens, se de benefícios o negócio unicamente tratar. Mas, se a atribuição do efeito positivo carecer de uma atitude posterior do beneficiário da qual resulte a assunção de deveres, através da sua adesão por qualquer facto6, não se vê em que isso contrarie o objectivo do contrato. A vantagem é, para este efeito, cindível ou autonomizável. Por conseguinte, tudo ficará cometido ao seu livre arbítrio e alto critério pessoal: o terceiro é livre de acatar ou não os deveres, sendo certo que se a sua resposta for negativa, perderá o direito à vantagem e ao efeito positivo7 resultante daquele contrato.
A segunda pode ser mais problemática, mas a solução acaba por ser pacífica, segundo se crê, se for de entender que “dar trabalho”, isto é, conceder um posto de trabalho, proporcionar emprego a alguém nas condições estipuladas no contrato-norma é uma prestação de facere ou uma prestação de facto8, mesmo que incluída numa relação jurídica a constituir. O contrato a celebrar com o terceiro não seria o fim último da situação de vantagem reconhecida e prometida pelo contrato entre B e C, mas sim e apenas o instrumento jurídico através do qual se realizaria o benefício, a vantagem, o direito.
De resto, também se não deve negar que, para além do efeito positivo traduzido no próprio emprego prometido oferecer, qualquer cláusula que ali o promitente assumiu em benefício do trabalhador a contratar (v.g, valor remuneratório, garantia de assistência, etc.) ainda representa uma prestação positiva a que B se obrigou.
Por conseguinte, os obstáculos erigidos na sentença a este respeito, salvo melhor opinião, não têm consistência. O que equivale a dizer que (…), o contrato a favor de terceiro9 será aquele que melhor se adequa à situação em apreço e é nesse pressuposto que avançaremos para as consequências daí emergentes”.
Pelas razões transcritas e que com a devida vénia fazemos nossas, concluímos pelo improvimento do recurso quanto a esta parte.
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3 - Das diferenças salariais
Quanto a esta parte do recurso, ela funda-se tão-somente na divergência que a recorrente manifesta em relação ao decidido na 1ª instância acerca da natureza do despacho 12/GM/88 e da qualificação dos contratos celebrados com a C.
Ora, tendo nós atrás reconhecido que a recorrente não tem razão nesses pontos, não se vê que haja qualquer motivo concomitante para censurar a sentença no que a este capítulo concerne.
Será, pois, o valor de Mop$ 63.326,67 a considerar para este efeito.
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4 – Trabalho Extraordinário
A sentença atribuiu ao recorrente o valor de Mop$22.352,20 a título de trabalho extraordinário prestado ao longo do período da relação laboral.
A recorrente insurge-se contra a atribuição deste subsídio simplesmente por causa da natureza que atribui aos Despacho e Contratos ao abrigo dos quais o recorrente foi contratado.
Ora, sendo assim que a recorrente fundamenta o recurso, e tendo nós negado razão à recorrente quanto à natureza do Despacho e Contratos acima referidos, fica concomitantemente sem razão no que a este capítulo o recurso concerne.
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5 – Subsídio de alimentação
A sentença (na parte decisória) atribuiu o subsídio de alimentação no valor de Mop$ 33.555,00.
A recorrente insurge-se contra a atribuição deste subsídio apenas fundado na ineficácia do Despacho e Contratos ao abrigo dos quais o recorrente foi contratado.
Consequentemente, pelas mesmas razões antes apontadas, aqui aplicáveis em igual medida, o recurso tem que claudicar.
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6 – Subsídio de efectividade
O autor da acção tinha pedido a condenação da ré no pagamento do subsídio de efectividade no valor de Mop$ 30.600,00, tendo a sentença atribuído o valor de Mop$ 29.213,48.
Vejamos.
Como se sublinhou, por exemplo, nos Acs. deste TSI de 14/06/2012, Proc. nº 376/2012 e 25/07/2013, Proc. nº 322/2013, trata-se de um subsídio que carece de uma prestação de serviço regular e sem faltas. Com efeito, o trabalhador teria direito a um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tivesse dado qualquer falta (alínea D) dos Factos Assentes).
Resulta da resposta ao quesito 13º da factualidade assente na sentença recorrida que a ré nunca pagou ao autor qualquer quantia a título de “subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias”.
Ora, tal como este tribunal já decidiu, a atribuição do subsídio em apreço não está excluída nos casos de não assiduidade justificada. Com efeito, “Em relação a este subsídio, vista a sua natureza e fins - já não se manifestam as razões que levam a considerar que a sua atribuição esteja excluída numa situação de não assiduidade justificada ao trabalho. Se o patrão autoriza uma falta seria forçado retirar ao trabalhador uma componente retributiva da sua prestação laboral, não devendo o trabalhador ser penalizado por uma falta em que obteve anuência para tal e pela qual o patrão também assumiu a sua responsabilidade” (Ac. TSI, de 25/07/2013, Proc. nº 322/2013. No mesmo sentido, Ac. do TSI, de 14/06/2012, Proc. nº 376/2012, 24/04/2014, Proc. nº 687/2013, 29/05/2014, Proc. nº 627/2013; 29/10/2015, Proc. nº 610/2015).
Assim sendo, e uma vez que as faltas nunca foram dadas sem conhecimento e autorização prévia da ora recorrente (resposta ao quesito 6º), nada há a censurar à sentença, assim se confirmando o valor atribuído de Mop$ 29.213,48.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
TSI, 04 de Fevereiro de 2016

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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
1 Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudos de Direito Civil, pag. 492.
2 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pág. 410.
3 Digo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, pág. 13.
4 Ob. cit, pág. 417.
5 Margarida Lima Rego, ob. cit., pág. 493. Também, E. Santos Júnior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Almedina, pág. 165.
6 Inclusive pela forma que as partes contraentes entendam indicar: Autor e ob. cit., pág. 519. Nós entendemos que isso pode ser feito pela via do contrato a celebrar.
7 Neste sentido, por outras palavras, ver Margarida Lima Rego, ob. cit, pág. 494.
8 Neste sentido, ver Ac. do TSI no Proc. nº 574/2010, de 19/05/2011 e referências ali feitas à noção de prestar por Pessoa Jorge, in Obrigações, 1966, pág. 55, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º, pág. 336 e 338.
9 O TSI assim tem considerado de forma insistente (v.g., Ac. TSI, de 23/06/2011, Proc. nº 69/2011; 25/07/2013, 25/04/2013, Proc. nº 372/2012, 13/09/2012, Proc. nº 396/2012).
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966/2015 22