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   ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 26 de Julho de 2007, negou provimento ao recurso interposto pelo arguido A, da decisão do Tribunal Colectivo do Tribunal Criminal que o condenou na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão e na multa de MOP$8.000,00 (oito mil patacas), ou, em alternativa a esta, em 53 (cinquenta e três) dias de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, de 28 de Janeiro.
   Inconformado, interpõe recurso para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões:
   1.ª Existe, no caso, susceptibilidade de impugnação do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância;
   2.ª A decisão recorrida padece de erro de direito integrado no fundamento indicado no n.º 1 do art. 400.º do CPP, vício que, no caso, se articula com o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, erro de julgamento, pelo recurso a dados da experiência comum que se mostram duvidosos, presuntivos e falíveis, a violação do princípio da tipicidade, do princípio in dubio pro reo, já antes imputados à decisão da 1.ª Instância e ainda em omissão de pronúncia, ao não se debruçar sobre as questões centrais do recurso, mostrando-se, consequentemente, ferido de nulidade.
   3.ª As Instâncias não apuraram um critério que permitisse distinguir as quantidades de ketamina e comprimidos de ectasy destinada a consumo e a destinada a cedência a terceiros.
   4.ª Não foi possível identificar um único acto de tráfico praticado ou planeado pelo arguido ora recorrente.
   5.ª Toda a argumentação expendida pelo Ilustre Colectivo em 1.ª Instância para fixar as quantidades de marijuana destinadas a cedência a terceiros e a consumo partiram de meras suposições, que lhe retiram toda a base de sustentação.
   6.ª Em parte nenhuma da prova produzida se demonstrou que o arguido fizesse cigarros com 0,3 gramas de marijuana, havendo o tribunal recorrido fundado essa hipótese, tão só, nas regras da experiência.
   7.ª Constitui um facto notório que um cigarro de marijuana pode ser confeccionado com maior ou menor quantidade de marijuana, o que resulta da experiência comum, por ser frequente encontrar consumidores que adicionam ao tabaco uma maior quantidade e haver outros que lhe adicionam uma menor quantidade de marijuana.
   8.ª Se 8 gramas é a quantidade de produto necessário ao consumo individual por 3 dias do consumidor médio de marijuana, isso significa que por cada dia de consumo se admite a possibilidade abstracta, mas real, de um indivíduo consumir 2,67 gramas de marijuana por dia.
   9.ª Tomando essa quantidade de 2,67 gramas, e distribuída que seja à razão de 0,6 gramas por cigarro, ela permite, por dia, o consumo de 4 a 5 cigarros.
   10.ª É razoável supor que, se o consumidor fuma menor número de cigarros, coloque maior quantidade de estupefaciente em cada cigarro e que, se fuma maior número de cigarros, coloque menor quantidade de produto estupefaciente em cada um.
   11.ª A proporção de erva misturada no tabaco pode ser maior ou menor, em função da qualidade do produto e da quantidade de substância activa nele existente.
   12.ª O tempo de validade das condições da marijuana está, essencialmente, dependente das condições de conservação dos produtos.
   13.ª A conclusão atingida de que destinava a terceiros uma quantidade não inferior a 8 gramas afigura-se manifestamente aleatória e gravemente ofensiva do princípio in dubio pro reo.
   14.ª Provado nos presentes autos que o arguido, ora recorrente, detinha os produtos que lhe foram apreendidos para consumo pessoal e cedência e venda a terceiros, os critérios utilizados para condenar o recorrente por um crime do art.º 8.º fundaram-se em meras presunções e prospecções hipotéticas, e claramente falíveis.
   15.ª Não se entende que aplicação tem ao caso a conclusão do TSI de que não existe qualquer lacuna no apuramento do objecto do processo atinente ao crime de tráfico imputado ao recorrente.
   16.ª Não se compreende a asserção de que o mero acto de detenção de droga em condições expressamente previstas no n.º 1 do art. 8.º já integra perfeitamente uma das actividades ilícitas incriminadas no tipo, pois o que justamente se colocava em causa era a existência de um quadro que excepcionava a aplicação de tal disposição normativa.
   17.ª O postulado de que «não se tendo provado quais as quantidades de droga efectivamente consumidas pelo agente e se o fazia todos os dias, haverá que aferir as suas quantidades de consumo pelas das generalidades dos consumidores nas mesmas condições» afigura-se incompreensível na medida em que abstrai da situação concreta do agente e é essa situação concreta que tem de ser apurada pelos tribunais.
   18.ª O Ac. recorrido fez uma interpretação das normas dos arts. 8.º e 9.º não conforme ao princípio do in dubio pro reo ou ao princípio da aplicação mais favorável da lei penal (in dúbio pro libertatem).
   19.ª O Ac. recorrido violou, nomeadamente, a norma do art.º 8.º do DL 5/91/M, ao proceder à sua aplicação num quadro fáctico que o não permitia.
   Na resposta à motivação do recurso o Ex.mo Magistrado do Ministério Público defendeu a negação de provimento ao recurso.
   No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto defendeu o reenvio do processo por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
   
   II – Os factos
   As instâncias consideraram provados e não provados os seguintes factos:
   "Em 16 de Fevereiro de 2006, pelas 21h50, no posto de inspecção à entrada das Portas de Cerco, os agentes alfandegários interceptaram o arguido A.
   Os agente alfandegários encontraram na mochila do arguido A 20 sacos de erva, 10 sacos de pós brancas e 34 comprimidos de cor amarela. (vide fls. 7 do auto de apreensão).
   Após o exame laboratorial, os referidos 20 sacos de erva contém Marijuana abrangida pela Tabela I-C anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido de 266,32g, os referidos 10 sacos de cor branca contém Ketamina abrangida pela Tabela II-C anexa ao mesmo DL, com peso líquido de 4,598g (de acordo com a análise quantitativa corresponde a 98,65%, no peso de 4,536g); os referidos 34 comprimidos de cor amarela contém MDMA abrangida pela Tabela II-A anexa a este DL (segundo análise quantitativa, corresponde a 28,68%, no peso de 2,398g), e Metanfetamina abrangida pela Tabela II-B e Ketamina abrangida pela Tabela II-C no peso líquido de 8,308g.
   Os referidos produtos estupefacientes foram comprados pelo arguido A às 23h00, em 15 de Fevereiro de 2006, na Discoteca, Gongbei, Zhuhai, de um indivíduo não identificado, e trazidos pelo arguido para Macau, que serviriam para consumo pessoal e alheio, tendo sido a quantidade de marijuana destinada ao consumo alheio não inferior a 8g.
   Em 17 de Fevereiro, às 3h00 da madrugada, os agentes da P.J no domicílio situado no [Endereço (1)], efectuaram uma busca na altura em que o arguido B estava neste apartamento.
   Logo que viu ter entrado os agentes da P.J, o arguido B correu para a casa de banho e fechou a porta.
   Os agente da PJ romperam a porta, acabaram por verificar à pé do arguido B um saco de erva (vide fls. 117, o auto de apreensão).
   Após o exame laboratorial, comprovou-se que a referida erva contém marijuana abrangida pela Tabela I-C anexa ao DL n. º 5/91/M; no peso líquido de 3,079g.
   O referido produto estupefaciente pertence ao arguido B, e foi deitado no chão por este depois de ter visto o polícia.
   O arguido B deteve os referidos produtos estupefacientes que serviriam para consumo pessoal.
   Posteriormente, os agentes da PJ deslocaram-se ao apartamento do [Endereço (2)], para efectuar uma busca, tendo encontrado 2 sacos de ervas no armário do quarto do arguido B (vide fls. 54, o auto de busca e apreensão).
   Após o exame laboratorial, os referidos dois sacos de ervas contém marijuana abrangida pela Tabela I-C anexa ao DL n.º 5/91/M, com peso líquido de 6,292 g.
   Os referidos produtos estupefacientes foram adquiridos pelo arguido B junto do indivíduo não identificado, e este adquiriu e deteve os referidos produtos que serviriam para o consumo pessoal.
   Os arguidos A e B agiram livre, voluntária, consciente e dolosamente.
   Os arguidos A e B conheciam bem o carácter e a natureza dos referidos produtos estupefacientes.
   Os actos dos arguidos A e B não são permitidos por nenhuma lei.
   Eles sabiam perfeitamente que os referidos actos são proibidos e punidos pela lei.
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   Mais se provou
   O 1. º arguido consumiu Marijuana, Ketamina, MDMA.
   O 1.º arguido declarou que consumiu 3 a 4 cigarros de Marijuana e 2 saquinhos de Ketamina e MDMA por dia.
   De acordo com o CRC, o 1. º arguido é delinquente primário.
   O 1.º arguido declarou antes de ser preso era DJ mediante o salário de MOP 12.000,00, tem a seu cargo os filhos que teve com duas ex-namoradas. O arguido terminou o curso de ensino universitário.
   o 2.º arguido declarou por conta de saúde, tem que mastigar canabis antes de actos sexuais.
   De acordo com CRC, o 2.º arguido é delinquente primário.
   O 2.º arguido declarou empreender negócio relativo à exportação das matérias de construção antes de ser preso, auferindo mensalmente MOP40.000,00 a 50,000,00. Tem a seu cargo a mãe e a filha que teve com mulher separada. O arguido terminou o curso de ensino universitário.
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   Factos não provados:
   Outros factos constantes da acusação que não correspondem aos factos provados:
   O arguido B adquiriu e deteve o canabis deitado no rés-do-chão da casa de banho e dentro do armário do quarto, que não serviria para o consumo pessoal."

   III - O Direito
   1. As questões a resolver
   A primeira questão é a de saber se para que um agente seja condenado pela prática de um crime previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 ou pelo art. 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, é necessário provar-se que detinha determinada quantidade de estupefaciente que não fosse para seu consumo pessoal ou, desde que não se prove que a referida quantidade de estupefaciente se destina a seu consumo pessoal ele deve ser condenado pela prática de um dos dois crimes, dependendo da quantidade em questão, como decidiu o TSI.
   A segunda questão a abordar é a de saber se a decisão enferma de vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos seguintes segmentos:
   - Quando deu como provado que o arguido detinha marijuana destinada ao consumo alheio não inferior a 8g;
   - Quando se não pronunciou acerca de saber se os seguintes produtos estupefacientes detidos pelo arguido: os 10 sacos de cor branca contendo Ketamina com peso líquido de 4,598g (de acordo com a análise quantitativa corresponde a 98,65%, no peso de 4,536g) e os 34 comprimidos de cor amarela contendo MDMA (segundo análise quantitativa, corresponde a 28,68%, no peso de 2,398g), e Metanfetamina abrangida pela Tabela II-B e Ketamina abrangida pela Tabela II-C no peso líquido de 8,308g, não eram, no todo, ou em parte, destinados ao consumo pessoal do arguido.
   
   2. Trafico de estupefaciente. Consumo pessoal.
   Quanto à primeira questão - a de saber se para que um agente seja condenado pela prática de um crime previsto e punível pelo art. 8.º, n.º 1 ou pelo art. 9.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, é necessário provar-se que detinha determinada quantidade de estupefaciente que não fosse para seu consumo pessoal ou, desde que não se prove que a referida quantidade de estupefaciente se destina a seu consumo pessoal ele deve ser condenado pela prática de um dos dois crimes, dependendo da quantidade em questão, como decidiu o TSI - já este TUI a abordou no Acórdão de 1de Junho de 2005, no Processo n.º 12/2005.
   Aí se concluiu que para a integração da conduta do agente no tipo criminal previsto no art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, não é essencial a prova da detenção (ou outro acto previsto na mesma norma) de estupefaciente para venda, mas apenas a detenção (ou outro acto) que não seja para consumo pessoal ou próprio, como resulta da interpretação conjugada dos arts. 8.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
   Ou seja, se não se prova nada quanto ao destino do estupefaciente, não pode o agente, como pretende o TSI, ser condenado como traficante de estupefaciente. Isso constituiria violação dos princípios da legalidade e da presunção de inocência, como refere o Ex.mo Procurador-Adjunto.
   
   3. Vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
   Quanto à segunda questão, a decisão enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pelos seguintes motivos.
   Deu-se como provado que o arguido detinha marijuana destinada ao consumo alheio em quantidade não inferior a 8g.
   Nesta parte, afigura-se-nos que não há qualquer obscuridade porque o Tribunal Colectivo foi muito preciso – possivelmente, tanto quanto pôde – quanto à quantidade destinada ao consumo alheio. E não podemos presumir que se enganou.
   Contudo, considerando que este TUI tem entendido que, para efeitos do art. 9.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, se deve considerar quantidade diminuta de marijuana (Cannabis Sativa L) uma porção entre 6 e 8 gramas (Acórdão de 26 de Setembro de 2001, no Processo n.º 14/2001), a quantidade deste produto que o Tribunal Colectivo deu como provado que o arguido destinava ao consumo alheio está precisamente no limite do crime de tráfico de quantidades diminutas, previsto e punível pelo art. 9.º, n. os 1 e 3 do Decreto-Lei n.º 5/91/M (Já se o Tribunal tivesse dado como provado que o arguido detinha para consumo alheio quantidade superior a 8 gramas de marijuana (Cannabis Sativa L), já o facto integrava o tipo do art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M).
   Assim, face a tal quantidade (não inferior a 8g.), o arguido só poderia ter sido condenado como traficante de quantidades diminutas.
   Assim sendo, é crucial saber-se qual o destino dos produtos na forma de pó branco (10 sacos) e comprimidos (34) que o arguido detinha.
   Basta que o Tribunal dê como provado que o arguido detinha para fim que não para consumo pessoal uma ínfima porção, para que a sua conduta integre o crime previsto e punível pelo crime previsto no art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M, já que tal quantidade irá somar-se aos 8 gramas de marijuana (Cannabis Sativa L), nos termos explicitados no Acórdão deste TUI, de 15 de Novembro de 2002, no Processo n.º 11/2002 (qualificação de quantidade diminuta face à mistura de drogas).
   Ora, o Tribunal Colectivo deu como provado que o arguido consumiu Marijuana, Ketamina e MDMA mas não deu como provado ou não provado um facto alegado pela acusação: que o arguido detinha Ketamina, MDMA e Metanfetamina para fim que não para o seu consumo pessoal.
   Na verdade, a expressão consignada na parte dos factos não provados (Outros factos relevantes constantes da acusação que não correspondem aos factos provados) é meramente tabelar e burocrática e não garante a este Tribunal que o tribunal de julgamento tivesse querido considerar não provado o mencionado facto.
   O conhecimento destes factos é essencial no circunstancialismo mencionado, pelo que se verifica insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Já não seria essencial se o Tribunal tivesse dado como provado que o arguido detinha para consumo alheio quantidade superior a 8 gramas de marijuana, pois o facto integrava o tipo do art. 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
    Impõe-se o reenvio para o apuramento deste facto e subsequente decisão.
   
   IV – Decisão
   Face ao expendido, revogam o Acórdão recorrido e decretam o reenvio do processo, para que o Tribunal Colectivo apure se o arguido detinha alguma porção de Ketamina, MDMA e Metanfetamina para fim que não para o seu consumo pessoal.
   Na marcação do julgamento, deve ter-se em atenção o limite do prazo de prisão preventiva.
   Sem custas neste Tribunal e no TSI.
   
   Macau, 10 de Outubro de 2007.
   
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin



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Processo n.º 44/2007