Processo nº 652/2015
Data do Acórdão: 03DEZ2015
Assuntos:
Inventário facultativo
Lei competente
SUMÁRIO
Tendo o de cujo mais de uma residência habitual até ao seu falecimento, sendo uma dela na RAEM, a lei pessoal competente para regular a sucessão é a lei da RAEM – artº 30º/4 do CC.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 652/2015
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
No âmbito dos autos de inventário facultativo nº CV1-13-0016-CIV, foi proferido o seguinte despacho determinando a lei competente para regular a sucessão por morte de A, de cujo do presente inventário e mandando notificar a cabeça de casal para apresentar nova relação de bens:
Da impugnação das declarações da cabeça de casal:
Nas declarações prestadas (vide auto de fls. 71 e 72) a cabeça de casal B identificou a Região Administrativa Especial de Hong Kong como sendo o local de residência "constante" do inventariado, à data do óbito.
Notificados os requerentes do inventário vieram os mesmos impugnar as declarações da cabeça de casal nessa parte alegando, muito resumidamente, que o inventariado era residente habitual de Macau, à data do seu falecimento.
Juntaram cópia do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM do inventariado (a fls. 347).
Em resposta a este incidente, a cabeça de casal manteve que o inventariado nunca fixou residência em Macau, conforme melhor se colhe do teor do seu requerimento junto a fls. 399/407, que aqui se dá por integralmente reproduzido por brevidade de exposição.
Solicitou-se oficiosamente informação relativa às entradas e saídas do território, pelo inventariado, nos dois anos anteriores à sua morte.
*
Cumpre decidir, uma vez que se trata de questão de facto que pode, com segurança, ser incidentalmente decidida no âmbito destes autos - cf. artigos 971.º, n.º 1 e 981.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
*
Da certidão de narrativa de registo de óbito de A, junta a fls. 6, resulta que o mesmo faleceu no dia 21.08.2012, em Macau, com 90 anos de idade.
Apura-se do certificado de casamento junto a fls. 8 que o inventariado e a cabeça de casal casaram em Hong-Kong, no dia 23.11.2009, tendo indicado como domicílio pessoal de ambos uma morada em Macau.
De acordo com as cópias juntas a fls. 52 e 347 o inventariado era titular de bilhete de identidade de residente permanente de Hong Kong e de Macau.
Resulta ainda do teor das declarações que a cabeça de casal prestou por escrito no processo de inventário que corre termos na RAEHK (cf. fls. 619) que ela e o falecido, desde Dezembro de 1987, passaram a co-habitar em Macau, primeiro numa morada sita na Calçada das Verdades e depois na Rua de Cantão, mantendo o inventariado outra residência familiar em Hong-Kong, durante esse período.
Por fim, da listagem de movimentos dos postos fronteiriços de Macau junta a fls. 629 a 647, decorre que sensivelmente a partir de 2008 e até falecer em 21.08.2012, o inventariado permanecia no território a maior parte dos dias do ano.
*
Perante este conjunto de elementos, e tendo em mente a seguinte questão de direito - qual a lei competente para regular a sucessão do inventariado - não cremos que subsista qualquer dúvida que o inventariado à data do óbito residia habitualmente em Macau, dado que nesse altura era aqui que tinha o centro afectivo e estável da sua vida pessoal.
Resulta provado que o inventariado, a partir de 1987, passou a dividir o seu tempo entre duas relações conjugais e respectivos agregados familiares, ou seja, entre a família que constituiu com a sua primeira mulher e que residia em Hong Kong, e a partir daquela data, co-habitando também com a cabeça de casal, em Macau, com quem teve três filhos, também nascidos em Macau.
Depois da morte da sua primeira mulher, ocorrida em 17 de Março de 2004, e sobretudo nos últimos dois anos da sua vida o inventariado permaneceu a maior parte dos dias do ano no território, saindo por breves períodos, e foi em Macau que acabou por falecer (cf. fls. 629 a 647).
De todo o modo, mesmo que os factos não fossem tão claros (e são), como o inventariado era portador de bilhete de identidade de residente permanente de Macau válido, segundo os artigos 30.º, n.º 3 do Código Civil e artigo 5.º da Lei n.º 8/1999, presume-se que o mesmo reside habitualmente em Macau, presunção essa que não foi, como se viu, ilidida pela cabeça de casal, tanto mais porque o inventariado tinha aqui a sua família, os seus filhos, e meios de subsistência bastantes - atentas as sociedades comerciais de que era sócio e administrador no território e as contas bancárias que aqui possuía.
Mas mesmo que se entendesse, de acordo com a idêntica argumentação - dado que o inventariado era portador de BIRHK válido - que o inventariado era também residente habitual de Hong-Kong, o artigo 30.º, n.º 4 do Código Civil estatui que na hipótese de o individuo ter mais de uma residência habitual, sendo uma delas Macau, a lei pessoal é a do território de Macau.
Com base no que se deixou exposto, e sendo a sucessão por morte regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do seu falecimento, nos termos do artigo 59.º do Código Civil, podemos concluir que será a lei de Macau a competente para regular a sucessão de A, o que, em conformidade se decide.
Custas do incidente a cargo da cabeça de casal, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida.
Notifique.
*
Notifique a cabeça de casal para, em 10 dias, apresentar certidão que
contenha a descrição de todos os bens que se encontram a ser partilhados na RAEHK e, eventualmente, noutras jurisdições (p.ex. na R.P.C.).
*
Notifique a cabeça de casal para, em 10 dias, apresentar nova relação de bens de onde conste:
- a quota que o inventariado possuía na Sociedade "C Lda.";
- a quota que o inventariado possuía na Sociedade "Companhia de Investimento D Lda.";
- a quota que o inventariado possuía na Sociedade de Turismo e Investimentos E Lda.";
- a quota que o inventariado possuía na Empresa de Construção e Fomento Imobiliário F Lda.";
- a quota que o inventariado possuía na Sociedade "Companhia Predial G Lda.";
- a quota que o inventariado possuía na Sociedade "H Hotel Companhia Lda.";
- a quota que o inventariado possuía na Sociedade "Companhia de Fomento Predial I Limitada";
- a quota que o inventariado possuía na Sociedade de Fomento Predial J Macau, Lda.";
- os depósitos a prazo existentes no K, à data do óbito e melhor descritos a fls. 681 a 683;
- os depósitos existentes no L Macau, à data do óbito e melhor descritos a fls. 684 a 686;
- os depósitos existentes no Banco M à data do óbito e melhor descritos a fls. 679;
- os depósitos existentes no N Banking Corporation Limited, à data do óbito, e melhor descritos a fls. 687;
- a rectificação dos saldos das contas bancárias a que se reportam as verbas 10 e 11 do activo, de acordo com a informação bancária constante de fls. 682;
- o valor dos cheques emitidos a favor do inventariado para pagamento de dividendos da sociedade "O Investiment Company Limited".
Não se conformando com a prolação do despacho e nem com o decidido quanto à competência da Lei da RAEM para regular o presente inventariado e à ordem para a apresentação da nova relação de bens, na parte que diz respeito ao valor dos cheques emitidos a favor do inventariado para pagamento de dividendos da sociedade O Investiment Company Limited, veio a cabeça-de-casal recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo:
A. O presente recurso tem por objecto o despacho de fls. 711 a 713;
B. A Meritíssima Juíza a quo, a fls. 447 já tinha admitido, fixando-lhe efeitos suspensivos, nos termos do Art. 607.n.º 3 do C.P.C., o recurso anteriormente apresentado pela cabeça de casal do despacho de fls. 412 e 413;
C. Razão pela qual estariam os autos suspensos à espera da decisão desse recurso;
D. O regime de subida dos recursos ordinários em processo de inventário é especialmente regulado no Art. 975.º do C.P.C.;
E. Pelo que ao fixar-lhe efeitos suspensivos, nos termos do Art. 607.º n.º 3 do C.P.C a Merítíssima Juíza a quo não podia querer senão de suspender os autos;
F. Ora, nos termos do disposto no Art. 147.º do C.P.C, a prática de um acto que a lei não admita produz a sua nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa;
G. In casu o despacho de fls. 711 a 713 é nulo;
H. A Meritíssima a Juíza a quo julgou a Lei de Macau competente para regular a sucessão do inventariado;
I. Salvo o devido respeito, andou mal;
J. Cada argumento a favor usado pela Meritíssima Juiz a quo justificar a competência da Lei de Macau há o mesmíssimo argumento para justificar a competência da Lei de Hong Kong;
K. Seja o bilhete de identidade, seja a família, sejam os filhos, sejam os meios de subsistência, todos eles o Inventariado tinha em Macau e em Hong Kong;
L. Mas o que o inventariado nunca teve em Macau foi a sua residência, ao contrário de Hong Kong pois, nunca o inventariado pernoitou em Macau que não fosse num dos diversos hotéis da cidade ou nos últimos tempos no Hospital onde estava internado;
M. Nunca teve casa em Macau;
N. Mesmo o argumento que passou a maior parte dos dias do ano na RAEM está justificado pelo internamento do inventariado do Hospital Kiang Wu;
O. Pelo que entender que um individuo que está amarrado a uma cama de hospital tem o seu domicílio em Macau, salvo o devido respeito, não procede;
P. Foi vontade expressa do Inventariado fixar e manter residência em Hong Kong onde fez questão de casar com a cabeça de casal;
Q. Ao decidir de outra forma a Meritíssima Juíza a quo violou o Art. 58.º e 59.º do C.C.,
R. A Meritíssima Juíza a quo entendeu ordenar a inclusão na relação de bens do valor dos cheques emitidos a favor do inventariado para pagamento de dividendos da sociedade O Investment Company Limited;
S. Também aqui a Meritíssima Juíza a quo, salvo o devido respeito, não andou bem;
T. Quando sabe que corre em Hong Kong inventário para partilha dos bens do inventariado sitos em Hong Kong;
U. A Meritíssima Juíza a quo ordena incluir na relação de bens dividendos de uma sociedade sita em Hong Kong;
V. Mais, como a Cabeça de Casal teve oportunidade de explicar os cheques mencionados encontravam-se na sede da sociedade, em Hong Kong;
W. Pretende, assim, a Meritíssima Juíza a quo substituir os tribunais de Hong Kong, na partilha dos bens sitos em Hong Kong;
X. Ao proceder desta forma a Meritíssima Juíza a quo violou regras de competência como regras de litispendência, nomeadamente, os Arts. 45.º do C.C. e 416.º do C.P.C.;
Y. O Tribunal a quo violou o Arts. 147.º, 416.º, 607,º n.º 3 e 975.º do C.P.C., e Art. 45.º,58º e 59.º do C.C.
Nestes termos,
sempre com o Mui Douto suprimento de V.Ex.ªs, deve o despacho sob censura ser revogado, sendo substituído por outro que acolha as presentes conclusões,
Fazendo-se,
assim, a costumada,
Justiça!
Notificados as alegações de recurso, os interessados P, Q e R, apresentaram contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
Oportunamente, o recurso foi feito subido a esta segunda instância, e no exame preliminar, foi admitido pelo despacho do Relator.
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Para se inteirar das vicissitudes anteriores à prolação do despacho recorrido, foi solicitada pelo Relator a remessa dos autos principais para este Tribunal de Segunda Instância.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Conforme se vê nas conclusões do recurso, constituem o objecto da nossa apreciação as seguintes questões:
1. Da nulidade do despacho recorrido;
2. Da competência da lei da RAEM; e
3. Da relacionação do valor dos cheques emitidos a favor do inventariado para pagamento de dividendos da sociedade O Investiment Company Limited.
Vejamos.
1. Da nulidade do despacho recorrido
Para a recorrente, o Tribunal a quo não respeitou o efeito suspensivo fixado ao recurso que tem por objecto um outro despacho anteriormente proferido em 11MAR2014, a fls. 412 a 413, uma vez que por força do efeito suspensivo atribuído ao recurso, os autos fixam suspensos à espera da decisão desse recurso.
Assim, na óptica da recorrente, em vez de esperar pela decisão do recurso suspendendo os autos, o Tribunal a quo proferiu o despacho ora recorrido num processo suspenso, o que nos termos do artº 147º do CPC, constitui a prática de um acto que a lei não admite, portanto geradora da nulidade uma vez que a inobservância da lei processual influiria no exame ou na decisão da causa.
Compulsados os autos principais, verificamos que, na verdade, a cabeça-de-casal, ora recorrente, interpôs recurso de uma parte do despacho versando sobre várias questões, proferido a fls. 412 a 413 em 11MAR2014 e que nos termos prescritos no artº 607º/3 do CPC, após o contraditório, o Tribunal a quo admitiu o recurso, tendo-lhe atribuído o efeito suspensivo por entender que a execução imediata da decisão impugnada causaria prejuízo irreparável à recorrente, e fixado o regime de subida em separado, chegado o momento da convocatória da conferência de interessados – vide a fls. 447 dos autos principais.
Importa agora averiguar quê efeito suspensivo foi atribuído ao recurso.
Lidos o despacho a fls. 412 a 413, o requerimento para a interposição do recurso desse despacho e o despacho que admitiu o recurso, verificamos que entre várias questões tratadas no despacho a fls. 412 a 413, a cabeça-de-casal se limitou a impugnar a parte que determinou oficiar à Autoridade Monetária de Macau ordenando a prestação das informações bancárias sobre os movimentos efectuados nas contas bancárias, abertas em nome do inventariado, no período que decorreu entre 09MAR2008 E 21AGO2012.
E que, ao atribuir o efeito suspensivo ao recurso, a Exmª Juiz a quo teve o cuidado de dizer que “……também consideramos que a fixação do efeito suspensivo ao recurso não terá quaisquer consequência ao nível do andamento deste processo, tendo em mente as regras prescritas nos artigos 999º, nº 4, 992º, 993º e 994º, todos do CPC, relativas à aprovação das dívidas da herança, matéria que está sujeita à deliberação e ……”
Ora, como se sabe, o efeito suspensivo atribuído a um recurso pode revestir na dupla perspectiva: da marcha do processo e do cumprimento da decisão.
In casu, tendo em conta o ordenado na decisão impugnada inserida no despacho a fls. 412 a 413 que é a ordenação da prestação das informações sobre os movimentos nas contas bancárias abertas pelo de cujo num determinado intervalo de tempo e os termos da fundamentação do próprio despacho de admissão do recurso pela Exmª Juiz a quo, onde esta teve o cuidado de dizer que o efeito suspensivo não teria qualquer consequência ao nível do andamento do processo, o efeito suspensivo fixado ao recurso interposto do despacho a fls. 412 a 413 não pode deixar de ser suspensivo apenas do cumprimento da decisão impugnada, e nunca pode consistir também na sustação da marcha do processo.
Portanto, não se encontrava suspenso o andamento do processo, no momento da prolação do despacho ora recorrido, não se vê qualquer inobservância por parte da Exmª Juiz a quo com a prolação do despacho ora recorrido.
Não padecendo o despacho recorrido de qualquer nulidade processual, improcede assim esta parte do recurso.
2. Da competência da lei da RAEM
Para além suscitar a nulidade do despacho ora recorrido, a recorrente ataca, a título subsidiário, o despacho na parte que declarou a lei da RAEM competente para a regulação do presente inventário.
Para o efeito, a recorrente alegou nas conclusões do recurso que:
H. A Meritíssima a Juíza a quo julgou a Lei de Macau competente para regular a sucessão do inventariado;
I. Salvo o devido respeito, andou mal;
J. Cada argumento a favor usado pela Meritíssima Juiz a quo justificar a competência da Lei de Macau há o mesmíssimo argumento para justificar a competência da Lei de Hong Kong;
K. Seja o bilhete de identidade, seja a família, sejam os filhos, sejam os meios de subsistência, todos eles o Inventariado tinha em Macau e em Hong Kong;
L. Mas o que o inventariado nunca teve em Macau foi a sua residência, ao contrário de Hong Kong pois, nunca o inventariado pernoitou em Macau que não fosse num dos diversos hotéis da cidade ou nos últimos tempos no Hospital onde estava internado;
M. Nunca teve casa em Macau;
N. Mesmo o argumento que passou a maior parte dos dias do ano na RAEM está justificado pelo internamento do inventariado do Hospital Kiang Wu;
O. Pelo que entender que um individuo que está amarrado a uma cama de hospital tem o seu domicílio em Macau, salvo o devido respeito, não procede;
P. Foi vontade expressa do Inventariado fixar e manter residência em Hong Kong onde fez questão de casar com a cabeça de casal;
Q. Ao decidir de outra forma a Meritíssima Juíza a quo violou o Art. 58.º e 59.º do C.C.,
Ora, a Exmª Juiz fundamentou a sua decisão nos termos seguintes:
Da impugnação das declarações da cabeça de casal:
Nas declarações prestadas (vide auto de fls. 71 e 72) a cabeça de casal B identificou a Região Administrativa Especial de Hong Kong como sendo o local de residência "constante" do inventariado, à data do óbito.
Notificados os requerentes do inventário vieram os mesmos impugnar as declarações da cabeça de casal nessa parte alegando, muito resumidamente, que o inventariado era residente habitual de Macau, à data do seu falecimento.
Juntaram cópia do bilhete de identidade de residente permanente da RAEM do inventariado (a fls. 347).
Em resposta a este incidente, a cabeça de casal manteve que o inventariado nunca fixou residência em Macau, conforme melhor se colhe do teor do seu requerimento junto a fls. 399/407, que aqui se dá por integralmente reproduzido por brevidade de exposição.
Solicitou-se oficiosamente informação relativa às entradas e saídas do território, pelo inventariado, nos dois anos anteriores à sua morte.
*
Cumpre decidir, uma vez que se trata de questão de facto que pode, com segurança, ser incidentalmente decidida no âmbito destes autos - cf. artigos 971.º, n.º 1 e 981.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
*
Da certidão de narrativa de registo de óbito de A, junta a fls. 6, resulta que o mesmo faleceu no dia 21.08.2012, em Macau, com 90 anos de idade.
Apura-se do certificado de casamento junto a fls. 8 que o inventariado e a cabeça de casal casaram em Hong-Kong, no dia 23.11.2009, tendo indicado como domicílio pessoal de ambos uma morada em Macau.
De acordo com as cópias juntas a fls. 52 e 347 o inventariado era titular de bilhete de identidade de residente permanente de Hong Kong e de Macau.
Resulta ainda do teor das declarações que a cabeça de casal prestou por escrito no processo de inventário que corre termos na RAEHK (cf. fls. 619) que ela e o falecido, desde Dezembro de 1987, passaram a co-habitar em Macau, primeiro numa morada sita na Calçada das Verdades e depois na Rua de Cantão, mantendo o inventariado outra residência familiar em Hong-Kong, durante esse período.
Por fim, da listagem de movimentos dos postos fronteiriços de Macau junta a fls. 629 a 647, decorre que sensivelmente a partir de 2008 e até falecer em 21.08.2012, o inventariado permanecia no território a maior parte dos dias do ano.
*
Perante este conjunto de elementos, e tendo em mente a seguinte questão de direito - qual a lei competente para regular a sucessão do inventariado - não cremos que subsista qualquer dúvida que o inventariado à data do óbito residia habitualmente em Macau, dado que nesse altura era aqui que tinha o centro afectivo e estável da sua vida pessoal.
Resulta provado que o inventariado, a partir de 1987, passou a dividir o seu tempo entre duas relações conjugais e respectivos agregados familiares, ou seja, entre a família que constituiu com a sua primeira mulher e que residia em Hong Kong, e a partir daquela data, co-habitando também com a cabeça de casal, em Macau, com quem teve três filhos, também nascidos em Macau.
Depois da morte da sua primeira mulher, ocorrida em 17 de Março de 2004, e sobretudo nos últimos dois anos da sua vida o inventariado permaneceu a maior parte dos dias do ano no território, saindo por breves períodos, e foi em Macau que acabou por falecer (cf. fls. 629 a 647).
De todo o modo, mesmo que os factos não fossem tão claros (e são), como o inventariado era portador de bilhete de identidade de residente permanente de Macau válido, segundo os artigos 30.º, n.º 3 do Código Civil e artigo 5.º da Lei n.º 8/1999, presume-se que o mesmo reside habitualmente em Macau, presunção essa que não foi, como se viu, ilidida pela cabeça de casal, tanto mais porque o inventariado tinha aqui a sua família, os seus filhos, e meios de subsistência bastantes - atentas as sociedades comerciais de que era sócio e administrador no território e as contas bancárias que aqui possuía.
Mas mesmo que se entendesse, de acordo com a idêntica argumentação - dado que o inventariado era portador de BIRHK válido - que o inventariado era também residente habitual de Hong-Kong, o artigo 30.º, n.º 4 do Código Civil estatui que na hipótese de o individuo ter mais de uma residência habitual, sendo uma delas Macau, a lei pessoal é a do território de Macau.
Com base no que se deixou exposto, e sendo a sucessão por morte regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do seu falecimento, nos termos do artigo 59.º do Código Civil, podemos concluir que será a lei de Macau a competente para regular a sucessão de A, o que, em conformidade se decide.
Na verdade, o de cujo tinha “famílias”, até ao seu falecimento, em Macau e em Hong Kong, pois existem abundantes elementos nos autos apontando para este sentido.
Assim sendo, tal como sensatamente decidiu a Exmª Juiz, tendo o de cujo mais de uma residência habitual, sendo uma dela na RAEM, a lei pessoal é a RAEM – situação essa, aliás, expressamente prevista no artº 30º/4 do CC.
Assim, bem andou a Exmª Juiz, ao julgar competente a lei da RAEM para regular a sucessão do de cujo A.
3. Da relacionação do valor dos cheques emitidos a favor do inventariado para pagamento de dividendos da sociedade O Investiment Company Limited
Finalmente, a cabeça-de-casal vem impugnar a última decisão inserida no despacho a fls. 711 a 713, na parte que ordenou a apresentação do valor dos dois cheques emitidos a favor do inventariado para pagamento de dividendos da sociedade O Investiment Company Limited, invocando que uma vez que aqueles cheques se encontravam em sede da sociedade em Hong Kong e entretanto estava a correr em Hong Kong um inventário para partilha dos bens do inventariado localizados em Hong Kong, a Exmª Juiz a quo não deve ordenar a inclusão do valor dos cheques na relação de bens no presente inventário que corre no Tribunal de Macau, sob pena de violação das regras de competência internacional e regras de litispendência, nos termos do disposto no artºs 45º do CC e 416º do CPC.
Todavia, depois da interposição e da admissão do recurso pelo Tribunal a quo, a parte da decisão impugnada sofreu alteração superveniente, o que torna inútil a apreciação da questão suscitada, senão impossível o recurso nesta parte.
Pois compulsados os autos principais, verificamos o seguinte:
Mediante o requerimento a fls. 719 e s.s. dos autos principais, a cabeça-de-casal juntou a nova relação de bens, ora constante das fls. 741 a 750, de acordo com o ordenado no despacho a fls. 711 a 713, ora recorrido;
Desta relação de bens constatamos a menção dos dois cheques, emitidos a favor de de cujo A, para o pagamento de dividendos da sociedade O Investiment Company, Limited – cf. as verbas 39ª e 40ª, a fls. 750;
Notificado o teor da nova relação de bens, vieram os interessados P, Q e R, insistir que fosse convidada a cabeça-de-casal a depositar de imediato os dois cheques na conta de que é titular o de cujo – vide fls. 781 dos autos principais;
Mediante o requerimento a fls. 789 a 791, a cabeça-de-casal veio explicar de novo queos cheques não se encontravam na sua posse, mas sim na sede da sociedade O em Hong Kong;
Por despacho da Exmª Juiz a quo a fls. 796v e 797 dos autos principais, foi determinado que:
Notifique a cabeça-de-casal para que deposite, em conta bancária aberta em nome da herança, os cheques bancários que foram emitidos a favor do inventariado para pagamento de dividendos da sociedade “O Investment Company, Limited”, demonstrando esse depósito nos autos. Prazo: 10 dias.
Mediante o requerimento a fls. 896, a cabeça-de-casal informou o Tribunal de que o banco se recusou a depositar os cheques emitidos pelo O Investment Company, uma vez que os cheques de Hong Kong tinham validade de seis meses, tendo pedido que fosse admitida a junção dos dois cheques;
Na sequência desse pedido da junção dos dois cheques, em substituição do depósito numa conta bancária de herança, a Exmª Juiz a quo acabou por proferir o seguinte despacho aceitando a junção aos autos dos mesmos cheques:
Do relacionamento dos dois cheques emitidos a favor do inventariado:
Veio a cabeça de casal juntar aos autos os cheques que correspondem às verbas n.ºs 39 e 40 da relação de bens, justificando essa junção com o facto de não ter conseguido depositá-los, por estarem caducados e por falta de provisão.
Ora, a este propósito julgamos que a cabeça de casal cumpriu com as suas obrigações legais e que está justificada a impossibilidade de depósito dos valores que os cheques titulam, atento o teor dos documentos de fls. 902 a 911.
Os cheques são títulos de crédito (sendo irrelevante que tenham sido emitidos por sociedades fora de Macau, não valendo a este propósito o que supra se referiu quanto aos bens situados no exterior); no vertente caso, foram emitidos à ordem do inventariado e serão transmissíveis por via sucessória como qualquer outro bem móvel. Como tal, a circunstância de não terem sido ainda depositados, não afecta a sua validade e a possibilidade de o seu futuro titular os accionar nos termos legais.
Assim, pelas razões expostas, aceita-se como válida a explicação da cabeça de casal para não ter depositado os cheques em causa e julga-se que o seu relacionamento está em conformidade com a lei. (vide as fls. 918 dos autos principais)
Notificado desse último despacho, a cabeça-de-casal, ora recorrente não reagiu.
De todo o ocorrido depois da prolação do despacho recorrido flui que a Exmª Juiz a quo acabou por alterar o despacho recorrido, em vez de mandar fazer incluir na relação o valor dos dois cheques, passou a ordenar fazer incluir na relação apenas a menção dos dois cheques, com a junção dos mesmos aos autos;
E a cabeça-de-casal, perante esta alteração superveniente do ordenado, acatou e aceitou fazer incluir os dois cheques na relação de bens e juntá-los aos autos.
Ora, se a lei permite a reparação do despacho recorrido nos termos prescritos no artº 617º do CPC, é por identidade da razão, que deve ser permitida a alteração do despacho recorrido nos termos ocorridos no caso sub judice.
Na verdade, in casu, foi perante a invocada impossibilidade de depósito numa conta bancária de herança, por terem os cheques entretanto caducado, que a Exmª Juiz decidiu alterar o seu despacho, passando a exigir apenas a inclusão dos dois cheques na relação de bens e a junção física dos dois cheques.
Com esta alteração, já desapareceu a decisão ora recorrida, o que implica a perda da utilidade do presente recurso e a impossibilidade superveniente da lide.
Assim sendo, não nos resta outra solução que não seja a de julgar extinta a instância recursória em relação a esta questão do recurso.
Tudo visto resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência julgar extinta a instância recursória em relação a impugnação do despacho a fls. 711 a 713, na parte que ordenou a apresentação pela cabeça-de-casal da nova relação de bens contendo o valor dos cheques emitidos a favor do inventariado para pagamento de dividendos da sociedade “O Investment Company Limited” e negado provimento ao recurso nas restantes questões suscitadas.
Custas pela recorrente.
RAEM, 03DEZ2015
Lai Kin Hong
João Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
652/2015-21