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Processo nº 972/2015
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão datado de 07.09.2015 do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar A, arguido com os sinais dos autos, com autor de 1 crime de “homicídio por negligência”, p. e p. pelos art°s 134°, n.° 1 do C.P.M. e art. 93°, n.° 1 da Lei n.° 3/2007, na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por 3 anos e na pena acessória de inibição de condução pelo período de 1 ano e 6 meses; (cfr., fls. 475 a 484-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Do assim decidido recorreram o Ministério Público e o identificado arguido.

O Ministério Público, pedindo a revogação da decretada suspensão da execução da pena de 2 anos de prisão; (cfr., fls. 498 a 500-v).

O arguido, rogando a suspensão da execução da pena acessória de inibição de condução; (cfr., fls. 508 a 510-v).

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Oportunamente, e após admitidos os recursos, vierem os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Revela-se interessante que, no caso vertente, se apresente o recorrente/arguido a peticionar a suspensão da medida acessória de inibição de condução, do mesmo passo que o MP se afoba em contestar, através do seu recurso, a suspensão da execução da pena efectiva de prisão de 2 anos que àquele foi aplicada.
Cremos que, assistindo razão ao Exmo Colega recorrente, a mesma falecerá ao recorrente/arguido.
A razão é simples: o apuramento concreto das circunstâncias que rodearam a prática do ilícito imputado – homicídio por negligência, com o arguido, enquanto profissional da condução, a causar o acidente em condições que se podem considerar bizarras, dado que se tratava de uma recta com perfeita visibilidade, à luz do dia, com trânsito normal, razão por que não poderá deixar de se considerar a actuação como grosseiramente negligente, a que não poderá deixar de associar a funesta consequência da mesma adveniente, tudo, pois, a imprimir a ideia de que a suspensão da execução da pena em questão não fará muito sentido em face das circunstâncias do crime, matéria a que o art° 48°, CP não deixa de apelar.
Também por estas razões e, pese embora a função profissional do arguido seja essencialmente ao volante, afigura-se-nos correcta a decisão relativa à medida acessória de inibição de condução, já que aquela qualidade de profissional na área, mais deveria ter determinado a salvaguarda da ocorrência do acidente, em tão lastimáveis condições, como as registadas.
Daí que, entendendo-se merecer provimento o recurso do MP, havendo que revogar a suspensão da execução da pena determinada, se nos afigura ser de manter o decidido no que tange à necessidade de aplicação, no caso, da medida acessória de inibição da condução.
Este, o nosso entendimento”; (cfr, fls. 539 a 540).

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Nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 476-v a 479-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Mostra-se de começar – como, atentas as questões colocadas, nos parece lógico – pelo “recurso do Ministério Público”.

Em síntese, entende o Exmo. Recorrente que a “situação dos autos” não justifica a suspensão da execução da pena de 2 anos de prisão decretada ao arguido.

E, em nossa opinião, com razão.

Passa-se a expor este nosso ponto de vista.

Regulando o instituto da “suspensão da execução da pena” estatui o art. 48° do C.P.M. que:

“1. O tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente.
4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5. O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão”.

Tratando de idêntica matéria à que ora se aprecia teve já este T.S.I. oportunidade de consignar que:

“O artigo 48º do Código Penal de Macau faculta ao juiz julgador a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido quando:
– a pena de prisão aplicada o tenha sido em medida não superior a três (3) anos; e,
– conclua que a simples censura do facto e ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. Art.º 40.º), isto, tendo em conta a personalidade do agente, as condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste.
E, mesmo sendo favorável o prognóstico relativamente ao delinquente, apreciado à luz de considerações exclusivas da execução da prisão não deverá ser decretada a suspensão se a ela se opuseram as necessidades de prevenção do crime.”; (cfr., v.g., Ac. de 01.03.2011, Proc. n° 837/2011, do ora relator, e, mais recentemente, de 14.05.2015, Proc. n.° 387/2015).

De facto, o instituto da suspensão da execução da pena baseia-se numa “relação de confiança entre o Tribunal e o condenado”. Aquele convence-se, em juízo de prognose favorável, que o arguido, sentindo a condenação, é capaz de passar a conduzir a sua vida de modo lícito e adequado, acreditando ainda que o mesmo posto perante a censura do facto e a ameaça da pena, é capaz de se afastar da criminalidade; (cfr., v.g., o Ac. de 21.11.2013, Proc. n.° 649/2013, e mais recentemente, de 14.05.2015, Proc. n.° 324/2015).

Porém, e como se mostra óbvio, há sempre que ponderar também nas “necessidades de prevenção geral do crime”.

Como recentemente decidiu o T.R. de Guimarães:

“I) As razões que estão na base do instituto da suspensão da execução da pena radicam, essencialmente, no objectivo de afastamento das penas de prisão efectiva de curta duração e da prossecução da ressocialização em liberdade.
II) Por isso, se conclui sempre que, desde que seja aconselhável à luz de exigências de socialização, a pena de substituição só não deverá ser aplicada se a opção pela execução efectiva de prisão se revelar indispensável para garantir a tutela do ordenamento jurídico ou para responder a exigências mínimas de estabilização das expectativas comunitárias”; (cfr., Ac. de 11.05.2015, Proc. n.° 2234/13).

No caso dos autos, deste já e independentemente do demais, não se pode olvidar que em consequência (directa) do crime pelo arguido cometido – o de “homicídio por negligência” – perdeu-se uma vida (e estragou-se a de toda uma família).

Não se ignora que o crime foi cometido – como se referiu, sem dolo, mas – com (mera) “negligência”, isto é, por “falta de cuidado a que, segundo as circunstâncias, está o agente obrigado e de que é capaz”; (cfr., art. 14° do C.P.M.).

Porém, ainda assim, o dito “resultado” com o cometido crime causado é “irreparável”, e, por assim dizer, “brutal”: a súbita morte de uma pessoa (com os consequentes sofrimentos e desgostos dos seus familiares).

Por sua vez, e (como se isso não fosse suficientemente impressionante), temos ainda que o crime foi cometido no “exercício da condução”, em pleno dia, em via pública de boas condições, com boa iluminação e total visibilidade, e, como se referiu, em resultado da conduta (negligente) do arguido que, conduzindo um autocarro pesado (de turismo de uma unidade hoteleira local), e por o fazer sem o devido e necessário cuidado, (especialmente, quanto a adequar a “velocidade do veículo” às suas “características” e à “atenção e concentração exigidas na sua condução”), veio a colher a vítima, causando-lhe a sua morte.

É, infelizmente, mais um (trágico) “acidente mortal” – perfeitamente evitável – que se regista no âmbito do exercício da condução, e que, como é público e notório, tem sofrido (preocupantes) aumentos em consequência de uma conjunção de factores: (nomeadamente), o (constante) aumento do trânsito nas vias públicas, (com especial destaque para os autocarros de transporte públicos e privados, camiões e outros de grande porte), e o “estilo de condução” adoptado por muitos dos condutores, com reduzida (ou sem) consciência da necessidade do cumprimento das regras do trânsito rodoviário, (próximo ou idêntico de um “vale tudo” e “salve-se quem puder”, sem a mínima observância e respeito às regras de trânsito, muitas vezes, em consequência de simples maus hábitos, descuidos ou desleixos gerados por um generalizado sentimento de impunidade, outras, por deliberada opção do condutor), sendo de notar também que, em muitos casos, não deixam de ser relevantes, as próprias características das vias públicas, muitas vezes estreitas, (em – ou com – obras), e outras, em que o peão circula na berma, sem a existência de adequado piso para tal, (passeio com outro nivelamento), e sem a mais pequena protecção.

Aliás, basta dar-se uma volta por aí para se constatar o que se deixou consignado, inúmeras sendo as “manobras perigosas” que se vem, encetadas com a maior da tranquilidade e/ou ignorância ou desprezo das regras de trânsito rodoviário, fácil sendo também de confirmar que efectivamente assim é até mesmo através das notícias e estatísticas oficiais no que toca à sinistralidade rodoviária dos últimos anos; (cfr., v.g., a edição do jornal “Ou Mun” do passado dia 24 de Novembro que noticia um acidente entre uma betoneira e um motocicleta com morte imediata do condutor desta última).

Refira-se outrossim que no Parecer n.° 1/III/2007 da 3ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa sobre a (então) “Proposta de lei intitulada «Lei do Trânsito Rodoviário»” (hoje, Lei n.° 3/2007), se consignou, (nomeadamente) que:

“Os princípios legislativos que nortearam a elaboração da proposta de lei são, para além de uma sistematização mais razoável e uma leitura mais acessível do texto da lei, os seguintes:
 - garantir a segurança do trânsito rodoviário e elevar a consciência pública sobre o cumprimento das regras do trânsito rodoviário;
- punir severamente os actos que põem em perigo a segurança do trânsito e reforçar o controlo;
- elevar a eficiência na execução da lei;
- facilitar a vida aos residentes e corresponder às necessidades do desenvolvimento social.
(…)”, notando-se igualmente que:

“O aumento do tráfego e o aumento de vias de trânsito mais longas decorrentes do desenvolvimento urbanístico de Macau levaram a que a sinistralidade rodoviária atingisse uma dimensão – tanto em termos de número de acidentes, como no número de vítimas, nomeadamente mortais – de consequências preocupantes. (…)”.

E, então, (face a isto), “quid iuris”?

Sabe-se que as autoridades (administrativas) competentes na matéria tentam dar resposta à situação, (especialmente, intensificando a fiscalização e desenvolvendo campanhas de sensibilização).

Porém, infelizmente, nem sempre com o desejado sucesso.

Com efeito, continua a ser habitual, (e quase normal), ver-se betoneiras, auto-tanques e camiões, pesando várias dezenas de toneladas – para não se falar no resto – a circular na via pública em (grande) velocidade – (manifestamente) inadequada para o tipo e características da viatura e condições da via – e a fazer todo o tipo de manobras, (v.g., mudanças súbitas de direcção e ultrapassagens), como se estivessem a participar numa competição, (como se do recentemente ocorrido “Grande Prémio” se tratasse).

Mal não haveria, se quem assim fizesse não estivesse a por em (evidente) perigo a vida, a integridade física e o património de terceiros, (utentes da mesma via), e desde que reunidas estivessem igualmente outras condições de segurança, e, obviamente, de legalidade.

Contudo, como é sabido, assim não é, (ou nem sempre é), sendo, mau grado, esta a realidade; (note-se que neste T.S.I. corre termos pelo menos um outro processo, o n.° 964/2015, envolvendo um autocarro idêntico ao dos presentes autos e uma motocicleta, cujo acidente, ocorrido em data pouco distante do ora em questão, causou também a morte do condutor deste, e em que foi o condutor daquele condenado como autor de um crime de “homicídio por negligência”).

E, in casu, a “situação” em apreciação, não está (muito) distante.

Com efeito, resulta da matéria de facto, que a vítima que se encontrava a trabalhar junto à via pública, mais concretamente, adubando, ajardinando e tratando das plantas e restante vegetação que aí havia, foi colhida pelo autocarro conduzido pelo arguido devido a uma manifesta (e total) falta de cuidado deste.

Na verdade, provado está – e melhor documentam as fotografias de fls. 33 a 34 dos autos – que o autocarro do arguido foi avistado a (cerca de) 40 metros de distância por um colega da vítima que se encontrava a colocar os cones florescentes para assinalar a sua presença, e que, (já receoso), começou de imediato a gesticular e a gritar, dando – ou melhor, tentando dar – indicação para que o arguido reduzisse a velocidade e/ou mudasse de direcção, sucedendo porém que, sem nenhuma reacção deste, o veículo continuou a sua marcha como se nenhum obstáculo à sua frente tivesse, até que, apenas a reduzida distância, (por certamente, só aí o arguido se aperceber da situação), abrandar a velocidade, o que não foi suficiente para evitar o embate fatal com a vítima depois de abalroar um carrinho de mão utilizado para transporte dos materiais de trabalho e dos referidos cones e que se encontrava imobilizado junto ao passeio.

É caso para se dizer – até porque nenhuma outra justificação sequer se apresentou e/ou verificou ou comprovou – que a “falta de cuidado” na condução pelo arguido foi tanta que, (em nossa opinião), mais se assemelha a um “desleixo grosseiro” ou, até mesmo, “autêntico desprezo” por todos aqueles a quem a condução levada a cabo podia (ou não) afectar.

De facto, a via em questão era uma recta, sem (nenhuma) inclinação, estando, no momento, completamente livre, sem nenhum outro veículo automóvel a impedir ou a diminuir a visibilidade (do arguido em relação à vítima), daí que se nos mostre de concluir como já se deixou consignado.

Ora, há muito que se considera – e bem – um “veículo automóvel em circulação”, (e por maioria de razão, quando de “grande porte e em velocidade”), uma verdadeira “arma letal”, com capacidade para provocar danos de todo o tipo e dimensão.

Não se afigura assim de considerar (minimamente) tolerável a sua condução com (total) alheamento a um (mínimo) sentido de responsabilidade, com a necessária e exigida concentração e cuidado, (como o caso dos autos, de forma patente, revela), especialmente, quando, daquela, resultem prejuízos graves e/ou irreparáveis, como na situação em causa (igualmente) sucedeu.

E, perante a descrita realidade e consequências que a mesma deu causa, mostra-se pois de considerar que razoável e adequada não é a decretada suspensão da execução da pena, pois que, (face ao tipo de crime cometido e circunstâncias da sua ocorrência), (muito) fortes são as necessidades da sua prevenção criminal, o que, necessáriamente, impede a dita decisão que, por isso, se terá de revogar.

Procede assim o recurso do Ministério Público.

–– Quanto ao “recurso do arguido” e à pretendida “suspensão da execução da pena acessória de inibição de condução”.

Ora, preceitua o art. 109° da Lei n.° 3/2007 que:

“1. O tribunal pode suspender a execução das sanções de inibição de condução ou de cassação da carta de condução por um período de 6 meses a 2 anos, quando existirem motivos atendíveis.
2. Se durante o período de suspensão se vier a verificar nova infracção que implique a inibição de condução, a sanção de inibição de condução a aplicar é executada sucessivamente com a suspensa.
3. A suspensão da execução da sanção de cassação da carta de condução é sempre revogada, se, durante o período de suspensão, se vier a verificar nova infracção que implique a inibição de condução.
4. A revogação referida no número anterior determina a execução da sanção de cassação da carta de condução”.

E, sobre tal matéria tem este T.S.I. entendido que “só se coloca a hipótese de suspensão da interdição da condução, caso o arguido seja um motorista ou condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos ... até porque os inconvenientes a resultar ... da execução dessa pena acessória não podem constituir causa atendível para a almejada suspensão ... posto que toda a interdição da condução irá implicar naturalmente incómodos não desejados pelo condutor assim punido na sua vida quotidiana”; (cfr., v.g., o Ac. de 19.03.2009, Proc. n°. 717/2008, e, mais recentemente, de 26.03.2015, Proc. n.° 247/2015).

E, então, que dizer?

Pois bem, no caso, (é verdade), provado está que é o arguido “condutor profissional”.

Mas, face ao que se acabou de deixar consignado em sede da apreciação do recurso do Ministério Público, não se considera tal facto bastante para justificar a pretensão apresentada.

Admite-se a suspensão da pena acessória (de “inibição da condução”) em causa, (dando-se como verificados os necessários “motivos atendíveis”), perante “infracções pontuais”, com consequências e efeitos de pequena (média) dimensão, sem (ou com diminutos) prejuízos e danos para terceiros, (etc…), sendo, óbviamente, uma decisão a proferir face às “circunstâncias da situação (concreta)” em questão.

O caso dos autos – atenta a conduta do arguido, e, especialmente, pelo seu resultado – apresenta-se-nos (manifestamente) diferente, afastada estando qualquer consideração quanto à verificação dos referidos “motivos atendíveis”.

Aliás, pelo que se deixou atrás exposto, (ponderando na factualidade provada, na conduta do arguido, seu resultado, e às fortes necessidades de prevenção), afigura-se-nos até (bastante) benevolente a pena acessória fixada, que apenas por respeito ao estatuído no art. 399° do C.P.P.M. se mantém.

Outra questão não havendo a apreciar, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam conceder provimento ao recurso do Ministério Público, revogando-se a decretada suspensão da execução da pena de 2 anos de prisão fixada ao arguido, negando-se provimento ao recurso do arguido.

Pagará o arguido 8 UCs de taxa de justiça.

Macau, aos 03 de Dezembro de 2015
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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