Proc. nº 502/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 10 de Dezembro de 2015
Descritores:
-Execução
-Legitimidade passiva
-Intervenção provocada
SUMÁRIO:
I. A execução deve ser instaurada contra quem no título figure como devedor.
II. Os embargos funcionam como uma verdadeira acção declarativa, uma contra-acção, do executado à acção executiva do exequente, com vista a impedir a execução ou obstar à produção dos efeitos do título executivo, nomeadamente através da invocação de matéria de excepção, como é, por exemplo, a inexistência de “causa debendi” ou a irresponsabilidade do devedor que figura no título.
III. A ilegitimidade do executado e a sua irresponsabilidade pela dívida não pode ser afastada pela intervenção principal provocada de terceiro através de simples requerimento na acção executiva.
Proc. nº 502/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I - Relatório
A (sic.), do sexo feminino, casada, de nacionalidade chinesa, titular do BIRPM n.º…, ora residente no…, Taipa, adiante designada por “exequente”, intentou no TJB (Proc. nº CV2-14-0125-CEO-B) acção de execução para pagamento de quantia certa ----
Contra ---
B, do sexo feminino, de nacionalidade chinesa, titular do BIRPM n.º…, ---
A quem disse ter concedido crédito em dinheiro para jogo no “Clube VIP de X” da “C, SA” no valor de HK$1.100.000,00, dos quais ainda não foram pagos HK$ 900,000,00.
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A executada requereu a intervenção principal provocada de D, fundamentando-se no facto de ser empregada deste no âmbito das actividades que ele desenvolve na referida sala VIP de casino, acrescentando ter sido no quadro dessa relação laboral que, por D não sempre se encontrar em Macau, procedeu ao levantamento de dinheiro em nome deste com base numa procuração para o efeito, a fim de o entregar aos clientes daquela sala.
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O Juiz titular do processo indeferiu liminarmente este pedido de intervenção principal provocada.
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É contra essa decisão que ora se insurge a executada, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«(1) De acordo com os dados dos autos, o valor da execução da recorrente é de MOP$1.073.791,50. Aliás,
(2) A recorrente nunca pediu emprestado dinheiro à exequente, o concedido é realmente o empregador da recorrente, “D”, pelo que a recorrente entende que o executado deve ser “D”.
(3) Dos três documentos do Clube VIP de X constantes dós Anexos 6, 7 e 8 do requerimento inicial da executada resulta expressamente que o titular da conta n.º… era D.
(4) D é o verdadeiro concedido e a recorrente apenas levanta dinheiro na conta da sala VIP de casino em nome do seu empregador, D, para os clientes de D que vêm do Interior da China para jogo, quando D não se encontra em Macau, assim, a assinatura da recorrente apenas faz parte das respectivas formalidades do levantamento de dinheiro.
(5) O verdadeiro concedido é D, mas como este não se encontra sempre em Macau, cabe à empregada de D, ora recorrente, levantar dinheiro na conta de D em nome dele ou pedir emprestado dinheiro à sala VIP de casino através da conta de D, assim, as respectivas formalidades não podem ser concluídas sem a assinatura.
(6) Ademais, não obstante dos documentos consta a assinatura da recorrente, o destinatário da concessão de crédito da sala VIP de casino é justamente o próprio titular da conta da sala VIP de casino, D, uma vez que D ou o seu representante só podem levantar dinheiro depois que a sala VIP de casino concede o crédito na conta de D.
(7) Uma vez que quando a exequente pretendeu estabelecer relação obrigacional com a recorrente, por força da Lei n.º 5/2004, para além da assinatura, é ainda necessário provar que a exequente é concedente de crédito e a recorrente é jogador, quer dizer, a relação obrigacional não é estabelecida apenas com base na assinatura.
(8) Caso a relação obrigacional não seja estabelecida, a exequente não tem legitimidade de deduzir a acção de execução, na medida em que a obrigação natural não pode ser exigida judicialmente.
(9) Aliás, na acção de execução intentada pela exequente, de todos os documentos apresentados pela exequente, incluindo os três recibos de concessão de crédito, resulta que a pessoa que pode ser identificável como jogador é apenas D com número de cliente ….
(10) Conforme os três títulos executivos apresentados pela exequente, a pessoa pode ser identificada como jogador apenas em função do número de cliente, uma vez que de acordo com o texto, só o titular da conta de cliente da sala VIP de casino pode ser considerado como jogador.
(11) Ou seja, na acção de execução intentada pela exequente, não se pode concluir a existência da relação obrigacional entre a exequente e a recorrente apenas com base no título executivo previsto nos termos do art.º 677.º al. c) do Código do Processo Civil.
(12) Nos termos do art.º 677.º al. c) do Código do Processo Civil, à execução apenas podem servir de base os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias.
(13) Mas dos três recibos de concessão de crédito apresentados pela exequente constam expressamente o número de cliente da sala VIP de casino diversa da recorrente e o nome de “D”, sendo distinto do título executivo em sentido geral.
(14) Nos termos do art.º 2.º n.º 1, art.os 3.º e 6.º da Lei n.º 5/2004, apenas existe concessão de crédito quando um concedente de crédito transmita a um jogador ou apostador, na qualidade de concedido, a titularidade de fichas de jogos.
(15) De facto, a assinatura não basta para reconhecer a obrigação resultante da relação de concessão de crédito, é ainda necessário identificar o jogador no título executivo para verificar a relação da obrigação legal.
(16) Qualquer que seja, pelo menos D tem legitimidade para intervir no processo executivo em causa como réu e trata-se de meramente interesse de D, e apenas o mesmo tem obrigação de restituição perante as obrigações supracitadas. Assim, é necessário chamar D para intervir como réu no processo supracitado através da intervenção principal».
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Houve resposta ao recurso, em termos que aqui damos por reproduzidos, para os legais efeitos.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
Ao requerimento apresentado pela executada no sentido de provocar a intervenção de D, o Juiz do processo proferiu o seguinte despacho:
«A executada requereu, nos termos dos art.os 267.º e ss. do Código do Processo Civil, o chamamento de D para intervir, na qualidade de interveniente principal, na presente acção de execução como executado, uma vez que D é o verdadeiro devedor.
Nos termos do art.º 68.º do Código do Processo Civil, a execução deve ser instaurada contra a pessoa que nele tenha a posição de devedor.
Conforme as fls. 33 a 35 dos autos, no lugar de “concedido” nos títulos executivos só foi aposta a assinatura da executada, B, pelo que, este processo executivo apenas foi instaurado contra B, e outra pessoa não tem a legitimidade para intervir no presente processo executivo.
A executada alegou que não era o verdadeiro devedor, a respectiva questão deve ser deduzida mediante os embargos de execução (de facto, a executada já invocou esta questão oportunamente mediante os embargos de execução e alegou que D era o verdadeiro devedor).
Portanto, indefere-se liminarmente o pedido de intervenção provada apresentado pela executada.
Custas a cargo da executada.
Notifique e tome diligências adequadas».
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III – O Direito
1 - A única questão que urge resolver no presente recurso tem que ver com a eventual possibilidade, que o despacho impugnado negou, de no seio da execução o executado pedir, através de simples requerimento, a intervenção principal provocada de terceiro.
E deve adiantar-se que a resposta é negativa.
Na verdade, sobre esta matéria podemos formular os seguintes axiomas:
Primeiro - A execução deve ser instaurada contra quem no título figure como devedor (art. 68º, nº1, do CPC).
Sobre o assunto, por exemplo, v.g., Ac. do STJ de 1/07/2004, Proc. nº 04B1845.
Segundo - A ilegitimidade do executado é vício invocável através de oposição à execução através de embargos de executado (arts. 697º e 699º, nº1, do CPC).
Terceiro - Os embargos funcionam como uma verdadeira acção declarativa, uma “contra-acção”, do executado à acção executiva do exequente, com vista a impedir a execução ou obstar à produção dos efeitos do título executivo, nomeadamente através da invocação de matéria de excepção, como é, por exemplo, a inexistência de “causa debendi” ” ou a responsabilidade do devedor que figura no título.
Neste sentido: A. dos Reis, Processo de Execução, 2ª ed., pág. 48; José Maria Gonçalves Sampaio, A acção executiva e a problemática das execuções injustas, pág. 141; Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª ed., pág. 157; Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum à Face do Código Revisto pág. 149; Acs. do STJ de 13.07.1992 e de 29.02.1996, in B. M. J. 419º, pág. 640 e Col. Jur./ Acs. STJ, 1996, 1º, pág. 102; Ac. RP, de 28/09/2006, Proc. nº. 0634730; Ac. RP, de 27/01/2005, Proc. nº 0437299.
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2 - E sobre a possibilidade de ser deduzida a intervenção de terceiros na execução?
Segundo uma corrente de opinião, na execução é possível a intervenção principal provocada de terceiros, em sede de oposição por embargos de executado.
Neste sentido: Ac. STJ, de 29/06/2005, Proc. nº 05B1190.
Para outra, as hesitações são visíveis. Sobre o assunto, com interesse veja-se o que foi assinalado no Ac. da Relação do Porto, de 28/04/2008, Proc. nº 0852357:
«Os embargos de executado são “Acções declarativas estruturalmente autónomas, porém instrumental e funcionalmente ligadas às acções executivas – nelas correndo por apenso – pelas quais o executado pretende impedir a produção dos efeitos do título executivo”, Remédio Marques, “Curso de Processo Executivo Comum”, págs. 150-151.
Ora, devendo a execução ser instaurada contra quem figura no título como devedor é este quem deve deduzir oposição, não podendo deduzir o incidente de intervenção provocada que é exclusivo, em princípio, do processo de declaração, neste sentido Ac. Relação do Porto de 17/11/2005, Relator Desembargador Coelho da Rocha bem como os Ac. Rel. Lx, de 13.1.1981, BMJ 308, 274; de 26.3.85, CJ, X, 2º, 114; da Rel. Porto, de 29.7.82, CJ, VII, 4º, 230; da Rel. Coimbra, de 2.5.95, CJ, XX, 3º, 21. e ainda, Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 124 vº «Este incidente (de intervenção acessória provocado) é incompatível com a acção executiva para pagamento de quantia certa, mesmo na fase de embargos de executado, porque os fins de uma e de outra são incompatíveis, além do mais porque a acção executiva não comporta decisão condenatória, pressuposto essencial do incidente em análise», citados naquele Acórdão.
É certo que por vezes se admite o incidente de intervenção provocada nos embargos de executado.
Todavia tal apenas deve ser possível, em casos excepcionais, quando seja indispensável e necessário à defesa do executado.
Pensamos ir neste sentido o Acórdão da Relação do Porto de 29.11.2004, Relator Desembargador Fonseca Ramos, no qual podemos ler “Nos embargos, porque ligados funcionalmente à execução [e, como ensina Lopes Cardoso, in “Manual da Acção Executiva, 3ª edição, pág. 275,] uma vez que “…apresentam a figura quase perfeita duma acção dirigida contra o exequente, em que este toma a posição de réu passando a denominar-se “embargado” e em que o executado é autor com o nome de “embargante” […]”, não se pode afirmar, em termos absolutos, a inadmissibilidade de intervenção de terceiros».
Como se vê, há quem opine que “a estrutura e o fim da acção executiva, incluindo a oposição de executado, excluindo os embargos de terceiros, também não se coadunam com intervenção de terceiros” (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 4ª ed., pág. 83; no mesmo sentido, Cândida Pires e Viriato Lima, Código de Processo Civil de Macau, Vol. II, pág. 178).
O que podemos nós concluir?
Se os autores não estão seguros que os terceiros possam ser chamados a intervir em embargos de executado (embora, a tendência seja permitir essa intervenção sempre que seja se mostre necessária para a prova da irresponsabilidade da dívida por parte do embargante), ao menos estarão de acordo que o incidente de intervenção principal não é possível no âmbito da execução propriamente dita.
Ora, no caso dos autos, se no título executivo consta o nome da executada, tudo o que ela possa dizer a propósito da “causa debendi” e do verdadeiro devedor só em oposição por embargos pode ser deduzido e não na própria acção executiva através de um simples requerimento em incidente de intervenção principal provocada.
Andou bem, pois, o despacho impugnado.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho impugnado.
Custas pela recorrente.
TSI, 10 de Dezembro de 2015
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
502/2015 1