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Proc. nº 469/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 21 de Janeiro de 2016
Descritores:
-Princípio da aquisição processual
-Art. 436º do CPC

SUMÁRIO:

I. De acordo com o art. 436º, do CPC, que estabelece o “Princípio da aquisição processual”, todos os “materiais” (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária.

II. Ou seja, efectuada a prova em tribunal sobre um determinado facto (um ou vários) através do material probatório respectivo (documentos, depoimentos, etc.), ela passa a pertencer ao processo, sendo irrelevante saber quem a produziu. Tanto é assim que nenhuma parte pode seccionar a prova de modo a aproveitar somente o segmento que lhe interessa pela simples razão de que, uma vez fornecida, a prova pertence ao processo e não às partes.

III. Portanto, isto significa que um documento, por exemplo, que serviu de prova para um determinado facto pode vir a ser utilizado para a prova de outro facto diferente. E se isto se diz de um documento, “mutatis mutandis” dir-se-á da prova obtida a partir de um depoimento testemunhal.
Proc. nº 469/2015

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I – Relatório
B (B) divorciada, de nacionalidade chinesa, residente em Macau, Av. ......, edf. “...... Kuok”, ...º andar ..., instaurou no TJB (CV1-11-0038-CAO) acção ordinária declarativa contra:---
C, casada, de nacionalidade chinesa, titular de B.I.R.P.M. nº XXXXXXX(X), residente em Macau, residente em Macau, na Rua ......, “...... Fa Un”, bloco ..., ...º andar ... e em ......, “...... Fa Un”, bloco ..., r/c, loja ..., estabelecimento de comida “D”,---
Pedindo a condenação desta no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, em consequência de um acidente que disse ter sofrido por causa de um toldo colocado no estabelecimento da ré.
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Foi proferida sentença, que julgou improcedente a acção (fls. 144).
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Interposto recurso jurisdicional, foi pelo TSI negado provimento ao recurso da autora quanto aos danos patrimoniais e determinada a ampliação da Base Instrutória, bem como ordenada a baixa dos autos à 1ª instância para reapreciação dos factos acrescentados com vista à eventual responsabilidade da ré no concernente à indemnização por danos não patrimoniais.
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Efectuado o julgamento quanto a esta nova matéria, foi de novo, e na oportunidade, proferida sentença que, uma vez mais, julgou improcedente a acção, agora limitada aos danos não patrimoniais invocados pela autora.
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É contra tal decisão que ora se insurge a autora, em cujas alegações de recurso formulou as seguintes conclusões:
«1. Nestes autos, do requerimento de fls. 234 resulta que a autora tinha requerido a comprovação dos três factos aditados à matéria de facto por meio de documentos constantes dos autos e os depoimentos testemunhais colhidos nos julgamentos.
2. No documento 1 apresentado pela autora em conjunto com a petição, à luz do relatório do Corpo de Polícia de Segurança Pública, do auto de inquirição e dos depoimentos da Autora e do Réu, apurou-se que a Autora, ao passar pela parte exterior da entrada do estabelecimento de comidas D, foi lesada por um tubo metálico do toldo cortina plástico verde da ré (documento 1 apresentado pela autora na petição);
3. Além disso, na primeira audiência de julgamento realizada em 27/11/2012, a testemunha F (filha da ré) comprovou a versão dos factos dada pela ré, comprovando ao mesmo tempo os dois dos três factos aditados à matéria de facto no despacho saneador;
4. Ou sejam, o artº 30º - “A ré colocou na entrada da sua loja um toldo cortina plástico, com a altura não superior a 1,6m acima do solo, para proteger do Sol” e o artº 31º - “O toldo cortina plástico impede a circulação de peões quando estiver esticado.”
5. Pelo que a autora não se conforma com a alegação dos Excelentíssimos Senhores Juízes feita no julgamento de 13/10/2014, segunda a qual não há prova de que “a ré colocou na entrada da sua loja um toldo cortina plástico, com a altura não superior a 1,6m acima do solo, para proteger do Sol” (artº 30º) e “o toldo cortina plástico impede a circulação de peões quando estiver esticado” (artº 31º).
6. O artº 436º do CPC dispõe que “o tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova... quando não seja feita por certo interessado”;
7. Ambos os julgamentos de 27/11/2012 e de 13/10/2014 foram realizados no âmbito destes autos e devem ser considerados todos os depoimentos testemunhais prestados nestas audiências de julgamento para a decisão da causa.
8. Neste sentido, os dois factos aditados à matéria de facto no despacho saneador devem ser dados como provados, ou sejam, o artº 30º - “a ré colocou na entrada da sua loja um toldo cortina plástico, com a altura não superior a 1,6m acima do solo, para proteger do Sol”; e o artº 31º - “o toldo cortina plástico impede a circulação de peões quando estiver esticado.”
9. Os venerandos juízes do Tribunal Colectivo do Tribunal a quo não tinham em consideração os factos referenciados aquando da apreciação do processo. Se os venerandos juízes do T.C. do Tribunal a quo tivessem considerado as situações indicadas na apreciação da matéria de facto provado, poderiam proferir uma decisão diversa desta.
10. Entendo que com base nos referidos factos existe o nexo de causalidade entre a lesão sofrida pela autora e a ré - foi causada pela conduta da ré.
11. No julgamento de 13/10/2014, os Excelentíssimos Senhores Juízes do Tribunal Colectivo do Tribunal a quo proferiram o seguinte despacho (fls.258):
“1. No julgamento do dia 27 de Novembro de 2012 a matéria hoje objecto do julgamento não integrava a base instrutória (cf. fls. 211). Pelo que, naquela data, ninguém podia nem foi ouvido a esta matéria quo talem.
2. Os depoimentos hoje lidos pela ilustre mandatária não foram produzidos nesta audiência de julgamento, única realizada para prova desta matéria nem a ela presidiu este Tribunal nem tão-pouco foi requerida a sua reprodução, pelo que estando em sede de repetição de julgamento nunca este Tribunal poderia basear a sua convicção nos indicados depoimentos.
-- Finalmente, em sede de reclamação a mesma apenas pode ter por objecto deficiência, obscuridade ou contradição na decisão da matéria de facto (nº 5 do artigo 556 do CPC), pelo que se as razões antes indicados não fossem já suficientes para indeferir a reclamação, nunca a mesma poderia ser deferida, porque não tem nenhum daqueles fundamentos, mas apenas a discordância da parte quanto ao decidido.
Termos em que vai indeferida a reclamação.” Salvo o devido respeito, não me conformo com isso e apresento impugnação;
12. Pelo exposto e nos termos do artº 599º, nº 1, al. a) do CPC, impugno a decisão sobre a matéria de facto e, salvo o devido respeito e nos termos do artº 436º do mesmo diploma legal, entendo que os venerandos juízes do Tribunal Colectivo do Tribunal a quo devem tomar em consideração todas as provas realizadas nos julgamentos neste processo e incluir na matéria de facto provado os dois factos aditados à matéria de facto no despacho saneador, ou sejam, o artº 30º - “A ré colocou na entrada da sua loja um toldo cortina plástico, com a altura não superior a 1,6m acima do solo, para proteger do Sol” e o artº 31º - “O toldo cortina plástico impede a circulação de peões quando estiver esticado”, de modo a comprovar a existência de nexo de causalidade entre a lesão da autora e a conduta da ré.
Face ao acima exposto, requer-se a V. Exas que julguem procedente o presente recurso e concordem com o pedido deduzido na petição impugnação da decisão sobre a matéria de facto nos termos do artº 599º, nº 1, al. a) do CPC, devendo considerar todas as provas realizadas nos julgamentos neste processo e incluir na matéria de facto provado os dois factos aditados à matéria de facto no despacho saneador, ou sejam, o artº 30º - “A ré colocou na entrada da sua loja um toldo cortina plástico, com a altura não superior a 1,6m acima do solo, para proteger do Sol” e o artº 31 º - “O toldo cortina plástico impede a circulação de peões quando estiver esticado”, de modo a comprovar a existência de nexo de causalidade entre a lesão da autora e a conduta da ré. A ré deve indemnizar a autora.».
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A recorrida respondeu ao recurso em termos que aqui damos por reproduzidos.
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Cumpre decidir
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II – Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
«a) No dia 19 de Julho de 2010, pelas 11.50 horas, a Autora sofreu um acidente no exterior do estabelecimento de comidas “D”, que fica na loja …, do rés-do-chão do bloco … de edifício “…… Fa Un”, do Bairro de ……, em Macau;
b) O que lhe provocou contusões no tecido mole da cabeça, e obrigou-a a ser imediatamente transportada ao Hospital C. S. Januário para tratamento, necessitando de, pelo menos, sete dias para recuperar, em conformidade com o relatório de perícia médico-legal datado de 07 de Setembro de 2010, constante dos autos a fls. 14 e que aqui se dá por integralmente reproduzido;
c) A despesa hospitalar aludido em b) foi suportada pela Ré;
d) Em 20 de Julho de 2010, a A. apanhou e andou de táxi;
e) No dia 20 de Julho de 2010, a A. comprou óleo medicinal da farmácia;
f) A A. despendeu no táxi e no medicamento a quantia total de oitenta e cinco patacas (MOP$85,00);
g) Em 22 de Julho de 2010, a A. dirigiu-se ao Hospital C.S. Januário para consulta;
h) Nessa data, despendeu a título de despesa hospitalar e de medicamentos um total de cento e vinte patacas e oitenta avos (MOP$120,80);
i) Em 7 de Agosto e 27 de Setembro de 2010, a A. foi novamente ao Hospital C.S. Januário para novas consultas, tendo gasto a título de despensa hospitalar e com medicamentos um total de cento e setenta e duas patacas e trinta avos (MOP$172,30);
j) Antes de acontecer o referido acidente, a A. gozava de boa saúde;
k) E trabalhava com normalidade;
l) Em 4 de Outubro de 2010, a A. foi ao Hospital Kiang Wu para ser examinada e tratada;
m) Tendo despendido nessa assistência o total de duas mil e noventa e seis patacas (MOP$2.096,00);
n) Em 5 de Outubro de 2010, G, médico da Hospital Kiang Wu diagnosticou à A.:
1. mudança na hemorragia crónica no subaracnóide;
2. degeneração da substância branca, alteração isquémica;
3. acompanhada de empty sella;
o) Em 8 de Outubro de 2010, a A. regressou ao Hospital Kiang Wu para receber tratamentos, e despendeu no total duzentos e quinze patacas (MOP$215,00);
p) Em 11, 15,18 a 20 de Outubro de 2010, a A. foi ao Hospital Kiang Wu para receber tratamento e despendeu a título de despesas médicas, hospitalares, laboratoriais e medicamentosas um total de cinco mil cento e cinquenta e nove patacas (MOP$5.159,00);
q) Em 22 de Outubros, 5 de Novembro, 26 de Novembro e 31 de Dezembro de 2010, a A. foi ao Hospital Kiang Wu para receber tratamento e despendeu a título de despesas médicas e medicamentosas um total de três mil e novecentos e setenta e quatro patacas (MOP$3.974,00);
r) Em 7 de Fevereiro, 7 de Março, 21 de Março e 8 de Abril e 22 de Abril de 2011, a A. foi ao Hospital Kiang Wu para receber tratamento e despendeu a título de despesas médicas e medicamentosas um total de quatro mil e setecentos e quarenta e seis patacas (MOP$4.746,00);
s) A A. continua a receber tratamentos periódicos e tomar medicamentos, o que a afecta no seu trabalho;
t) A A. comprou medicamentos contra obstipação, nos quais gastou cento e quarenta e oito patacas (MOP$148,00);
u) A A. comprou medicamentos chineses e nutritivos, nos quais despendeu no total duas mil patacas (MOP$2.000,00);
v) Foi emitida pelo médico do Hospital Kiang Wu a declaração de fls. 44 dos autos;
w) A A. tem 1,60 metros de altura.».
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III – O Direito
1 – Na petição inicial da acção, a autora disse ter sofrido um acidente quando, caminhando no passeio junto do r/c do bloco ..., do edifício “...... Fa Un”, do Bairro de ......, em Macau, embateu num toldo verde destinado a “tapar o sol” existente no estabelecimento de comidas “D”, sito na Loja “…”, pertencente à Ré, e que esta fez baixar, sem prestar atenção aos transeuntes, no momento em que a autora ali ia a passar.
Desse acidente advieram danos patrimoniais e não patrimoniais, que a autora identificou.
Porém, a sentença lavrada no TJB considerou que não tinha ficado provada a forma exacta como o acidente se verificou: se a autora embateu com a cabeça no ferro do toldo por mero descuido ou se tal acontecimento ocorreu em virtude de a ré ter descido repentinamente o referido toldo no momento em que a autora por ali passava. E, por causa dessa dúvida, julgou improcedente a acção.
Em recurso, o TSI decidiu que a matéria de facto apurada não poderia ser contrariada pelo depoimento das testemunhas ouvidas, as quais não tinham assistido ao acidente e, portanto, nunca poderiam confirmar a tese descrita pela autora nos arts. 4º a 6º da p.i., segundo a qual o acidente apenas se deu devido ao facto de a ré ter feito descer repentinamente o toldo.
O mesmo TSI, contudo, fez acrescer à base instrutória três factos, os quais poderiam, se provados, levar a um nexo de causalidade relevante entre eles e o acidente.
Esta adição fáctica, de acordo com a fundamentação do acórdão, apenas poderia ser considerada para efeitos de responsabilização por dano moral, já que pelo dano patrimonial assinalou: “Razão pela qual, seja qual for o resultado da reapreciação dos três factos acrescentados por este Tribunal oficiosamente, conforme a ordem do presente acórdão, é desnecessária a apreciação da questão da indemnização por dano patrimonial. Resta apenas a indemnização por dano moral. No entanto, a responsabilidade da Ré pela indemnização por dano moral é determinada pelo resultado tomado pela 1ª instância após a reapreciação dos três factos acrescentados, isto é, depende da existência ou não da culpa pela parte da ré devido à sua conduta da instalação do toldo plástico, e se a conduta desta é ilícita e se é motivo de ferimentos à Autora”.
Ou seja, independentemente do acréscimo daquela factualidade e da prova que sobre ela viesse a ser feita, jamais haveria lugar a responsabilidade por danos patrimoniais, mas apenas por não patrimoniais.
Efectuado, então, novo julgamento sobre esta matéria (arts. 29º, 30º e 31º da BI), provada apenas ficou a respeitante ao primeiro, ou seja, que a autora tem 1,60 de altura. Não ficou provado, portanto, que “A ré, na frente da sua loja, colocou um toldo de plástico para bloquear a luz do sol, cuja altura acima do solo não excede 1,60” (30º) e que “Quando o toldo plástico está puxado para baixo impede1 a passagem dos peões” (31º).
E, por assim ser, considerou uma vez mais o TJB que não havia factualidade provada que pudesse levar à responsabilização da ré na produção do acidente que vitimou a autora, por serem completamente desconhecidas as circunstâncias em que o acidente se verificou.
E, por isso, absolveu a ré do pedido.
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2 - No presente recurso, a autora da acção insiste na responsabilização da ré.
Fê-lo, contudo, partindo do pressuposto de que o tribunal “a quo” incorreu em erro de julgamento na matéria de facto.
E para tanto concluir, e apelando ao disposto no art. 436º do CPC, voltou a invocar o documento nº 1, apresentado por si juntamente com a petição inicial. Trata-se de um relatório da PSP, onde é dito que, na referida data, a autora se lesionou num tubo metálico do toldo verde do estabelecimento da ré.
E invocou ainda o depoimento da testemunha F (filha da ré) prestado aquando da primeira audiência.
A questão está, pois, em saber se estes elementos de prova (documento referido e depoimento desta testemunha) podem ser relevados agora.
Sabemos que não foram tidos em conta da primeira vez; poderiam ser considerados no âmbito da prova a efectuar à matéria acrescentada à BI?
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3 – O art. 436º, do CPC estabelece o “Princípio da aquisição processual”, segundo o qual “O tribunal deve tomar em consideração todas as provas realizadas no processo, mesmo que não tenham sido apresentadas, requeridas ou produzidas pela parte onerada com a prova, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado”.
De acordo com este princípio, todos os “materiais (afirmações e provas) aduzidos por uma das partes ficam adquiridos para o processo. São atendíveis mesmo que sejam favoráveis à parte contrária (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, pág. 385; também, Alberto dos Reis, CPC Anotado, III, pág. 272 e sgs.).
Ou seja, efectuada a prova em tribunal a um determinado facto (um ou vários) através do material probatório respectivo (documentos, depoimentos, etc.), ela passa a pertencer ao processo, sendo irrelevante saber quem a produziu. Tanto é assim que nenhuma parte pode seccionar a prova de modo a aproveitar somente o segmento que lhe interessa pela simples razão de que, uma vez fornecida, a prova pertence ao processo e não às partes.
Portanto, isto significa que um documento, por exemplo, que serviu de prova para um determinado facto pode vir a ser utilizado para a prova de outro facto diferente. E se isto se diz de um documento, “mutatis mutandis” dir-se-á da prova obtida a partir de um depoimento testemunhal.
Mas, o alcance do princípio, pela sua lógica, não poderá servir apenas para retirar do meio de prova utilizado a força que dele emana para um primeiro momento do processo. Quer dizer, se um documento foi utilizado para servir de meio de prova a um determinado facto num julgamento que veio a ser anulado, obviamente poderá ser de novo utilizado para a prova do mesmo facto no julgamento que vier a repetir-se posteriormente.
Ora, se isto é assim, não se vê razão para estabelecer distinção entre essa situação e aquela que decorre da anulação parcial do julgamento ou, até mesmo, daquela outra em que o julgamento vem a ser ampliado por intervenção injuntiva do tribunal superior, exactamente como sucedeu neste caso.
Ou seja, no nosso modesto entendimento, o material recolhido no processo, ainda que obtido em sede de um julgamento efectuado sobre determinada matéria de facto, pode ser utilizado para a prova a efectuar sobre outra matéria de facto imposta pelo TSI em ampliação da Base Instrutória determinada pela via do art. 629º, nº4, do CPC.
A circunstância, pois, de algum elemento de prova ter servido de apoio para uma matéria de facto já definitivamente assente (transitada em julgado, como é aquela que, recorde-se, dizia respeito à factualidade concernente aos danos patrimoniais), não significa, de maneira nenhuma, que não possa ser utilizada como suporte para a ponderação a fazer no quadro da prova a realizar sobre factos que tinham sido invocados na p.i. e que, por não terem sido levados à BI, foram mandados aditar a essa peça processual, para a ampliação da matéria de facto a provar em novo julgamento.
Assim, apesar de determinado depoimento testemunhal ter sido valorado para uma materialidade assente num julgamento anterior, pode ele ser de novo utilizado noutro julgamento e no âmbito do mesmo processo, desde que sirva para responder a factos controvertidos e que pela primeira vez vão ser objecto de prova por ocasião da ampliação determinada pelo tribunal de recurso. É que para esta “nova” matéria aquele material probatório ainda não tinha sido utilizado ainda, apesar de estar “adquirido nos autos”.
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4 – Vem isto a propósito do documento nº1 e do depoimento reproduzido pela ré e que fora prestado pela filha desta na qualidade de testemunha.
Quanto ao documento em causa (junto com a p.i a fls. 7), não relevará este TSI, nesta sede recursal, mais do que aquilo que a 1ª instância no momento do primeiro julgamento lhe conferiu: o relatório limita-se a reproduzir ao agente policial aquilo que a vítima lhe dissera. O tribunal, no quadro dos seus amplos poderes de análise e ponderação dos meios de prova apresentados e ainda no âmbito da sua livre convicção concluiu que não estava demonstrada a forma como o acidente sucedeu, nem mesmo perante tal documento. Aliás, tal relatório, se alguma coisa pudéssemos extrair dele de diferente do que o extraiu a 1ª instância, até seria que a lesada referiu à polícia ter indo de encontro ao toldo por não ter prestado atenção a ele ou não ter tomado cuidado (fls. 7 dos autos e 34-36 do apenso “traduções”), enquanto nas declarações prestadas na PSP disse que ia a passar no local e alguém de súbito baixou o toldo plástico (fls. 39 do apenso “traduções”).
Sendo assim, não encontramos elementos firmes e seguros, que nos permitam divergir do julgamento efectuado pelo tribunal “a quo” quanto a esta matéria, no quadro da imediação e no âmbito mais alargado de ponderação de todos os elementos recolhidos.
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4.1 - E quanto ao depoimento da filha da ré?
Podia ser reutilizado? Sim, na nossa opinião, tal como já dissemos. Agora, apenas importa dizer que a circunstância de esta testemunha não ter sido arrolada não pode ter nenhum efeito, uma vez que o seu depoimento estava já prestado. Só haveria, na óptica da parte que a ofereceu (ou até da parte contrária), que voltar a oferecê-la para este segundo julgamento se fosse indicada a matéria sobre a qual não tivesse produzido declarações. Ora isso, só à parte interessada importaria aquilatar, não ao tribunal. O que verdadeiramente agora conta é saber se o que disse – e que, repetimos, pode ser reaproveitado, por ser “material probatório adquirido” – terá préstimo para a prova dos 3 factos aditados.
Portanto, pergunta-se: Valerá aquele depoimento para alguma coisa? Acudirá ele à tese da recorrente?
A resposta é negativa, parcialmente.
Excluído o facto respeitante ao quesito 29º (“A autora tem 1,6 de altura?”), uma vez que ele não diz respeito à depoente em causa, nem ela tem que saber a altura da demandante (aliás, a sua prova resultou até da análise do BIR da autora), só importam os restantes dois quesitos 30º e 31º.
Ora, quanto a estes, só parte do primeiro pode ser respondida afirmativamente. Realmente, não se percebe como, perante um artigo da base instrutória, com mais do que um facto, procedeu o tribunal à resposta negativa, quando a primeira parte não oferece dúvidas. Isto é, não há dúvida - e isso até também resulta do depoimento referido, prestado pela filha da ré – que a ré colocou um toldo de plástico na frente da sua loja, para bloquear a luz do sol. Sabemos isso. O problema é saber se a parte inferior do toldo dista do solo 1,60 metros.
E isso, com franqueza não está apurado, quando seria fácil uma inspecção ao local para eliminar qualquer dúvida! O depoimento em apreço, por si só, não chega para responder afirmativamente ao 2º segmento do quesito. Na verdade, a sua impressão sobre a altura que dista do rebordo do toldo ao chão não coincide com a impressão que a testemunha H transmitiu (considerando a sua própria altura, os sapatos altos que usa e a altura que diz restar, ainda, entre si e o rebordo do toldo -20 cm).
Portanto, e atendendo a que, quanto a este aspecto fáctico, não há unanimidade de pontos de vista, cremos que andou bem o tribunal em não dar provada a factualidade da 2ª parte do art. 30º da BI.
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5 – E quanto ao art. 31º da BI?
Antes de mais nada, quanto a este aspecto, não resistimos a exprimir o seguinte pensamento colateral (dizemo-lo unicamente como tentativa para a compreensão do caso, não como fundamentação para a decisão do recurso, uma vez que isso não está, sequer, em discussão):
Mesmo que por hipótese o toldo distasse do seu rebordo inferior ao chão apenas 1,60 metros, e ainda que estivesse provado que a autora embateu com a cabeça no ferro do toldo (e isso não está provado desde o primeiro momento) isso só seria causa de acidente se a vítima viesse distraída de todo. Ou seja, mesmo que essa seja a distância do toldo ao piso do passeio, isso não funciona como elemento causal do acidente, até porque, certamente, muitas outras pessoas ali terão passado sem que idênticos acidentes se tenham verificado.
Um toldo é um objecto grande, bem visível, portanto. Não pode ser um obstáculo súbito, repentino, inesperado.
Mas, por exemplo, se por “má sorte” ou “triste azar”, a recorrente nesse momento viesse atenta ao manuseamento do telemóvel ou a ler uma revista, a razão para o acidente não residiria na simples existência do toldo. Aí, o toldo, segundo cremos, estaria no mesmo plano de uma árvore ou poste de iluminação pública que ali pudessem existir. A causa mais provável para o embate residiria, então, na distracção da vítima, que não viria atenta às vicissitudes do passeio e que, por isso, teria embatido no toldo, como poderia ter colidido com a hipotética árvore ou com o eventual poste de iluminação pública que ali pudessem existir. A não ser, claro está, que o embate tivesse ocorrido no momento em que bruscamente o toldo era descido pela ré (Isso, porém, não ficou provado no primeiro julgamento à pertinente matéria de facto, tal como decorre das respostas aos arts. 1º a 3º da BI).
Ora bem. Sobre a matéria do aludido quesito, nenhuma das testemunhas ouvidas na 2ª audiência de julgamento soube responder a esta questão. Restaria, então, o depoimento já anteriormente prestado pela filha da ré.
Porém, nem pelas declarações por ela produzidas poderíamos tranquilamente alcançar uma resposta afirmativa ao quesito.
Repare-se: Nele era quesitado “Quando o toldo plástico está puxado para baixo impede a passagem dos peões?”.
Ora, das declarações da referida testemunha não resulta possível afirmar que o toldo “impede a passagem” dos peões. Isso, aliás, seria difícil de conceber. Se tal acontecesse na realidade, então isso não seria um toldo, seria antes uma barreira que obrigaria aos transeuntes a contornarem o obstáculo; e estamos certos que, em tal hipótese, já a entidade administrativa competente teria agido no sentido de obrigar a reconstituir a situação anterior.
A própria testemunha disse simplesmente que os peões se baixavam para passar. Passavam, baixando-se. E não parece difícil adivinhar que nem todos os peões teriam que se baixar; isso dependeria da distância do toldo ao chão e da altura dos próprios peões.
Logo, até mesmo por força de tal depoimento, o toldo não impedia a passagem (quando muito, dificultava-a). Mas, mesmo que a dificultasse, nem por isso a culpa do acidente seria imputável à proprietária do estabelecimento. O toldo estava ali bem visível à frente da recorrente, como o estava bem visível à frente de todos os peões. Se todos os peões tinham que transitar no local com mais cuidado e atenção (não há notícia nos autos de outros acidentes no local por causa do toldo), igual cuidado deveria ter tido a recorrente para evitar embater no toldo. Ou seja, não foi o facto de o toldo ter estado descido que provocou o embate da recorrente/peão, até porque nem sequer ficou provado que a distância do toldo ao solo não fosse superior a 1,60m; logo, só poderá ter sido a conduta do próprio peão no toldo a provocá-lo.
Significa isto que este quesito não podia ser dado por provado.
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6 – Este era o único objecto do recurso.
E, pelo que se acabou de afirmar, apenas parte do quesito 30º merece resposta afirmativa, o que, apesar de tudo, não basta para alterar a decisão jurídica sobre o fundo proferida na 1ª instância, referente à responsabilidade pelos danos não patrimoniais (quanto aos patrimoniais, já a decisão anterior tinha transitado) que assim se manterá inalterada.
É que, mesmo com a prova efectuada na 1ª instância de que a autora tem 1,60 metros de altura e com a apurada em sede do presente recurso de que a ré colocou um toldo na frente da sua loja, ignoramos completamente em que condições ocorreu o acidente. Em boa verdade, ninguém sabe como ele aconteceu: se a autora embateu com a cabeça no tubo do toldo, se escorregou e bateu com a cabeça na parede ou no chão, se tropeçou e tombou sobre a esquina do passeio, se vinha distraída, se o toldo foi baixado no momento em que ela transitava, etc., etc.
***
IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar:
1 - Parcialmente procedente o recurso, na sequência do que o art. 30º da BI passará a ter a seguinte resposta:
«A ré na frente da sua loja colocou um toldo plástico para bloquear a luz do sol».
2 – Improcedente o recurso na parte restante;
3 – Em consequência, manter a sentença recorrida de improcedência da acção decretada na 1ª instância.
Custas totais pela recorrente, na medida em que a procedência parcial à impugnação da matéria de facto em nada altera a configuração da relação jurídica controvertida, nem a decisão de fundo sobre ela.
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TSI, 21 de Janeiro de 2016

José Cândido de Pinho (Relator)

João A. G. Gil de Oliveira (Segundo Juiz-Adjunto)

Concordo inteiramente com as considerações acerca do alcance do princípio da aquisição processual, consagrada no artº 436º do CPC, tecidas no Acórdão antecedente.

E à luz deste princípio, o depoimento da testemunha F, produzido na primeira audiência em 27NOV2012, ora invocado no presente recurso pela recorrente para rogar a alteração das respostas negativas dadas aos quesitos 30º e 31º versando sobre a matéria que mandou aditar o Acórdão do TSI a fls. 205 a 211v, podia e devia ser valorado pelo Tribunal a quo, no novo julgamento após a ampliação da matéria de facto.

Todavia, a valoração do tal depoimento foi deliberadamente indeferida por despacho do Juiz Presidente do Colectivo pelo Tribunal a quo no novo julgamento realizado em 13OUT2014, conforme se vê na acta a fls. 256 a 257v dos p. autos.

Assim, na esteira daquilo que foi dito no Acórdão antecedente acerca do princípio da aquisição processual, em sede do presente recurso, este Tribunal de recurso pode e deve valorar o mesmo depoimento para apreciar se os quesitos 30º e 31º devem ser julgados provados.

Bom, ante o teor do depoimento, ora inteiramente transcrito pela recorrente nas alegações do recurso, eu formaria a convicção de que estes dois quesitos mereciam a resposta positiva.

Mas cabe fazer aqui uma nota de que a tradução para português do quesito 31º, restringe um bocadinho o sentido da palavra 阻礙 empregada no texto originário, redigido em chinês, pois esta palavra, polissémica aliás, comporta o sentido de dificultar, e não apenas impedir. E no contexto do caso, comporta apenas o sentido de dificultar.

Portanto, a matéria do quesito 31º, provada na minha óptica, deve ser “quando feito baixado, o toldo plástico dificultava a passagem dos transeuntes.”

Assim, perante a matéria, na minha óptica comprovada no novo julgamento, dos quesitos que o TSI mandou aditar, o simples facto de a Ré ter colocado um toldo plástico nos exactos termos descritos na matéria dos quesitos 30º e 31º, já constituiu, pelo menos, uma das causas concorrentes para a produção do acidente e da lesão corporal de que sofreu a Autora e fez incorrer a Ré na responsabilidade de indemnizar a Autora.

Eis a minha concordância da parte decisória do Acórdão antecedente.
Lai Kin Hong (Primeiro Juiz-Adjunto)


1 A versão chinesa deste artigo 31º é aparentemente polissémica, mas é de admitir que o termo aqui destacado a bold (“impede”) possa ter nela o sentido de “dificulta”.
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469/2015 1