Processo nº 779/2013
(Autos de recurso contencioso)
Data: 3/Dezembro/2015
Assuntos: Alienação de casa arrendada da RAEM
Lei nº 4/83/M
SUMÁRIO
1. Sendo a recorrente arrendatária de moradia da propriedade do então Território de Macau, hoje, RAEM, desde 1987 até a presente data, para que essa moradia possa ser-lhe alienada, nos termos previstos no nº 1 do artigo 1º da Lei nº 4/83/M, de 11 de Julho, é necessário que a arrendatária ora recorrente seja “funcionária dos quadros próprios” da Administração Pública de Macau.
2. Ao abrigo do nº 1 do artigo 20º do ETAPM, o provimento do pessoal do quadro podem revestir as seguintes modalidades: provisória ou definitiva; em comissão de serviço e interina, mas de acordo com o nº 2 do artigo 2º do mesmo Estatuto, só o provimento por nomeação definitiva ou em comissão de serviço é que confere a qualidade de funcionário.
3. Na verdade, a recorrente nunca foi funcionária dos quadros da Administração Pública de Macau, pois manteve a relação de trabalho com a DSEJ na qualidade de recrutada no exterior até 31.8.1999, e a partir dessa data passou a celebrar com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude contrato além do quadro, pouco tempo depois celebrou novo contrato de trabalho a termo com o Instituto Politécnico de Macau, para exercer funções de docente.
4. Por outro lado, embora seja verdade que o direito de aquisição de habitações arrendadas seja extensivo aos funcionários dos quadros da República, tal como se confere pelo artigo 23º daquela mesma Lei nº 4/83/M, mas provado está que a partir da altura em que cessou definitivamente funções como recrutada no exterior, em 1.9.1999, para depois passar a celebrar contrato além do quadro e contrato de trabalho a termo, respectivamente, com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude e com o Instituto Politécnico de Macau, há muito tempo deixou de ser funcionária dos quadros da República Portuguesa, pelo que o artigo 23º da Lei nº 4/83/M já não lhe é aplicável.
5. Por não se verificarem minimamente os requisitos previstos na Lei nº 4/83/M, a recorrente já não tem direito a pedir a alienação a seu favor da moradia arrendada.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 779/2013
(Autos de recurso contencioso)
Data: 3/Dezembro/2015
Recorrente:
- A
Entidade recorrida:
- Secretário para a Economia e Finanças
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A, divorciada, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente da RAEM, melhor identificada nos autos, inconformada com o despacho do Exm.º Secretário para a Economia e Finanças de 24 de Outubro de 2013, que indeferiu o seu pedido de aquisição da moradia sita em Macau, na Rua XX, edifício X, nº xx, Xº andar X, da qual a recorrente é arrendatária desde 9.11.1989, interpôs o presente recurso contencioso de anulação do referido despacho, formulando as seguintes conclusões:
1. A Recorrente apresentou, no dia 4 de Julho de 2013, na Direcção dos Serviços de Finanças um requerimento dirigido ao Excelentíssimo Senhor Chefe do Executivo, onde pediu que lhe fosse concedida a autorização necessária à alienação a seu favor da fracção cujo arrendamento pertence à Recorrente.
2. Nos termos do artigo 1º, n.º 1 e do artigo 2º da Lei n.º 4/83/M, de 11 de Julho, as “habitações arrendadas pelo Território a funcionários dos seus quadros próprios, no activo ou aposentados, podem ser vendidas” “aos respectivos arrendatários”.
3. Informação n.º 30347/DGP/13, de 22 de Outubro de 2013, cujo conteúdo foi apropriado pelo despacho ora recorrido e passou a constituir os fundamentos deste, em resposta à pretensão da Recorrente, concluiu que o peticionado pela Recorrente “não é legalmente possível”, uma vez que apenas “os funcionários dos quadros próprios da Administração, no activo ou aposentados” são titulares do direito à aquisição de moradia da RAEM.
4. A Recorrente iniciou as suas funções em Macau ao abrigo do estatuto dos recrutados ao exterior, cuja disciplina se encontra prevista no Decreto-Lei n.º 60/92/M, de 24 de Agosto.
5. Essas funções, desempenhadas de acordo com o referido diploma, viriam a cessar em 30 de Agosto de 1998, data em que terminou o contrato da Recorrente com a DSXX, apesar de ter sido concedida à Recorrente, sem interrupção de funções transitórias em Macau (ex vi Decreto-Lei n.º 89-G/98, de 15 de Agosto e Decreto-Lei n.º 66/99, de 11 de Março, ambos da República Portuguesa), e assim celebrado novo contrato – agora de recrutamento local – com a DSXX válido de 1 de Setembro de 1998 até 30 de Agosto de 2000.
6. Em 27 de Setembro de 1999, com produção de efeitos diferida para 1 de Outubro de 1999, a Recorrente encetou uma nova relação de trabalho, que ainda hoje subsiste, com o IXX.
7. O direito ao arrendamento em moradia da RAEM foi adquirido pela Recorrente por concurso público, ao qual a sua candidatura foi admitida nos termos do, então vigente, Decreto-Lei n.º 46/80/M, de 27 de Dezembro, mais concretamente através do artigo 17º, n.º 1 que estipulava o seguinte: “A distribuição de moradias far-se-á mediante concurso público, a que poderão concorrer os funcionários e agentes públicos ao serviço do Território…”.
8. O IXX “é uma pessoa colectiva de direito público” (artigo 1º dos “Estatutos do Instituto XXX” aprovados pela Portaria n.º 469/99/M, de 6 de Dezembro), que está sujeita à tutela da SASC, logo
9. Por ser funcionária do IXX a Recorrente é funcionária da RAEM, em respeito pela única definição legal tipificada de funcionário público: “O trabalhador da administração pública ou de outras pessoas colectivas públicas” (artigo 336º, n.º 1 alínea a) do Código Penal).
10. O Estatuto do Pessoal Docente do IXX, aprovado pelo Despacho n.º 29/SAAEJ/99, é omisso quanto à existência de um quadro de docentes, pelo que o IXX não o tem devidamente regulado e definido.
11. Apesar de a manutenção do vínculo profissional da Recorrente ao IXX se ter processado até hoje através de Contratos de Trabalho a Termo sucessivamente renovados, a verdade é que a Recorrente exerce as funções de docente no IXX há 14 anos ininterruptamente.
12. Pelo que a Recorrente deve ser considerada como afecta ao “quadro de docentes” do IXX (seja este de natureza permanente ou temporária) ainda que os estatutos nada digam quanto à sua existência.
13. Deste modo, o despacho proferido pelo Senhor Secretário para a Economia e Finanças, que indeferiu o pedido formulado pela Recorrente, padece do vício de violação de lei, o que determina a sua anulabilidade (cf. artigo 124º do CPA.
14. E visto que o único fundamento invocado para o indeferimento da pretensão da Recorrente viola a lei, não podendo assim ser atendido, o acto mostra-se destituído de fundamentação o que redunda igualmente na anulabilidade do acto.
15. Deve, assim, o acto objecto de recurso ser anulado.
16. Em consequência dessa anulação, e segundo o princípio do efeito reconstitutivo do caso julgado – cuja observância é imposta pelo preceituado na alínea h) do n.º 2, do artigo 122º do CPA – deverá a Direcção dos Serviços de Finanças praticar novamente o acto que foi objecto de despacho confirmativo, mas sem os vícios que acabaram sendo incorporados no acto do Senhor Secretário e que terão determinado a respectiva anulação, e agora em sentido favorável à alienação a favor da Recorrente da fracção da RAEM onde vive como arrendatária desde 9 de Novembro de 1989.
Subsidiariamente ao exposto sempre se dirá o seguinte:
17. O artigo 23º, n.º 1 da já citada Lei n.º 4/83/M, dispunha: “O regime definido por este diploma é aplicável, com as necessárias adaptações relativas ao crédito bonificado e à propriedade resolúvel, aos funcionários que, pertencendo aos quadros dos órgãos de soberania da República, prestem serviço no Território por tempo determinado.”
18. A Recorrente preenchia a previsão normativa à data em que celebrou o arrendamento, isto é, pertencia aos quadros dos órgãos de soberania da República Portuguesa, na sua qualidade de funcionária do Ministério da Educação, estava recrutada pela Administração de Macau para trabalhar aqui sem perda do vínculo ao referido Ministério e tinha um contrato de trabalho local por tempo determinado.
19. Deste modo, a Recorrente passou a ter o direito de adquirir a moradia de que é inquilina assim que celebrou o respectivo contrato de arrendamento.
20. A Recorrente é, pois, uma técnica oriunda da República Portuguesa que continua a prestar serviço à Administração de Macau, vive há cerca de 24 anos em moradia arrendada pela RAEM, dispôs durante cerca de 10 anos (mais precisamente, entre 1989, quando tomou o arrendamento, e 1999, quando se desligou do serviço activo em Portugal) do direito de adquirir essa moradia por aplicação directa da norma do artigo 23º, n.º 1 da Lei n.º 4/83/M, e só deixou de estar abrangida por essa norma – na sua interpretação literal e aplicação estrita – por imposição das vicissitudes políticas que Macau sofreu em 1999.
21. Estas considerações demandam uma interpretação extensiva do artigo 23º, n.º 1 da Lei n.º 4/83/M, ou, se se entender que a sua letra não o comporta, a integração de uma lacuna da lei por forma a regular a situação das pessoas que, tal como a Requerente:
a) são arrendatárias de moradia da RAEM;
b) dispuseram do direito a adquirir essa moradia ao abrigo do referido artigo 23º, n.º 1;
c) perderam-no, não por escolha voluntária, mas porque o estatuto político de Macau se alterou, e Macau deixou de ter qualquer dependência política ou administrativa relativamente a Portugal;
d) mas continuaram desde então a trabalhar ininterruptamente para a Administração local.
22. De uma maneira ou de outra, ou seja, ou fazendo uma interpretação extensiva da norma ou integrando uma lacuna da lei, deve reconhecer-se a essas pessoas o direito a adquirir a moradia de que são arrendatárias.
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Regularmente citada, apresentou a entidade recorrida contestação, formulando as seguintes conclusões e pugnando pela improcedência do recurso:
1. O recurso que ora se contesta tem por objecto o despacho do Sr. Secretário para a Economia e Finanças, de 24 de Outubro de 2013, exarado na Informação n.º 30347/DGP/13.
2. A recorrente iniciou funções no então Território de Macau em 1982, na altura em comissão de serviço na, hoje, DSXX. Em 1983 requereu a atribuição por arrendamento de uma moradia por concurso público. Moradia que veio a ser-lhe concedida e cujo contrato de arrendamento foi assinado a 8 de Agosto de 1987.
3. Devido ao aumento do número de elementos do agregado familiar permutou a moradia concedida por uma maior e celebrou novo contrato de arrendamento a 9 de Novembro de 1989. Moradia onde ainda reside e cuja alienação a seu favor foi requerida e indeferida, e constitui a questão de funda deste recurso.
4. A recorrente manteve a relação de emprego público na DSXX com o estatuto de recrutada ao exterior até 31.08.1999. A partir dessa data continuou a prestar serviço na DSXX com contrato local, que rescindiu com efeitos a partir de 30.09.1999.
5. Celebrou contrato com o Instituto XXX com início de funções a 1 de Outubro de 1999 e mantêm-se sem interrupção a trabalhar neste instituto até à presente data.
6. A 3 de Setembro de 1999 a recorrente apresentou um pedido de manutenção do contrato de arrendamento, argumentando com o facto de não ter direito à habitação por efeito do recrutamento ao exterior, entretanto terminado, mas sim por um contrato de arrendamento, após concurso público, não se verificando nenhuma das condições legais para cessar a sua vigência.
7. O direito à manutenção do arrendamento foi deferido à ora recorrente, por despacho do Sr. Director da DSF, exarado na Informação 098/NAJ/CA/99, em homenagem aos princípios dos direitos adquiridos, da certeza jurídica, por razões de estabilidade e por não ser verificarem os pressupostos de caducidade ou resolução do contrato, tipificados na Lei aplicável.
8. A 4 de Julho de 2013 requereu a S. Ex.a o Chefe do Executivo a alienação a seu favor da moradia onde habita nos termos do n.º 1 do artigo 1º e artigo 3º da Lei n.º 4/83/M pretensão que veio a ser indeferida.
9. A questão a decidir é da legalidade ou não da satisfação da pretensão da recorrente. Não existe qualquer margem de discricionariedade da Administração, tratando-se de uma decisão vinculada. A conformidade do pedido com a previsão da norma importa a satisfação do mesmo.
10. É dado adquirido que a recorrente é arrendatária de moradia da RAEM. Irreleva para a questão decidenda a conformidade ou não da sua admissão ao concurso público que culminou com a atribuição da moradia. Uma vez lavrado o contrato de arrendamento entre as partes, a sua validade apenas pode ser posta em causa pelas cláusulas gerais do Código Civil ou pelas constantes do próprio contrato.
11. Insere-se assim na previsão da alínea b) do artigo 37º do DL n.º 31/96/M, de 17 de Junho, sob a epígrafe Direitos Adquiridos, onde se estipula que os trabalhadores que habitem moradias propriedade do Território podem “candidatar-se à sua aquisição, desde que, à data da entrada em vigor do presente diploma, reúnam os requisitos exigidos para o efeito na legislação vigente”.
12. O n.º 1 do artigo 1º da Lei n.º 4/83/M, de 11 de Julho, estabelece que “As habitações arrendadas pelo Território a funcionários dos seus quadros próprios, no activo ou aposentados, podem ser vendidas nos termos desta lei”. E o artigo 2º limita aos arrendatários a possibilidade de aquisição.
13. Se na data da entrada em vigor deste diploma, satisfizessem os requisitos então em vigor, v.g. serem funcionários dos seus quadros próprios, no activo ou aposentados.
14. Funcionário dos quadros do então Território de Macau são os do artigo 20º do ETAPM. Reza o artigo que a nomeação é a forma de provimento do pessoal do quadro e pode ser provisória, definitiva, comissão de serviços ou interina. Sendo que apenas a nomeação definitiva ou em comissão de serviço conferem a qualidade de funcionário nos termos do n.º 2 do artigo 2º do ETAPM.
15. O que nunca se verificou em relação à recorrente. Não é nem nunca foi funcionária dos quadros de Macau.
16. Vinculada à Lei uma única decisão se impõe à Administração, e foi essa que foi repetidamente tomada, de indeferir a pretensão da recorrente, por não satisfação dos requisitos legais para a alienação a seu favor da moradia de que é arrendatária.
17. O argumento da recorrente para fundamentar a sua pretensão é de que por lhe ter sido permitido a participação no concurso para atribuição de moradia por arrendamento, passa a beneficiar de todos os direitos que os arrendatários possam ter, ainda que não derivados do estatuto de arrendatários.
18. Ora não se trata aqui do arrendamento mas de aquisição. E não se discutindo a bondade da admissão ao concurso, esta não tem a virtualidade de mudar o estatuto da requerente, transformando-a numa funcionária.
19. Estatuto definido no ETAPM e não no CP.
20. Não cumprindo com as exigências legais para ter o estatuto de funcionário, fica a recorrente excluída da previsão legal que permitiria a alienação a seu favor da moradia de que é arrendatária, e consequentemente inexiste violação de lei.
21. Nem falta de fundamentação apenas porque a recorrente discorda da subsunção – aliás correcta como se provou – que é feita dos factos à Lei.
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Posteriormente, foram apresentadas alegações facultativas pela recorrente, nas quais veio renovar basicamente a sua posição já tomada na petição de recurso.
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Findo o prazo para alegações, o Ministério Público deu o seguinte douto parecer:
“Sem prejuízo do respeito pela opinião diferente, entendemos que não se verificam a violação de lei e o vício de forma por falta de fundamentação, assacados pela recorrente ao douto despacho exarado pelo Sr. SEF na Proposta n.º 30437/DGP/13 (doc. de fls. 1 a 6 do P.A.).
Ora, a recorrente iniciou as funções no então Território de Macau em 1982 na altura em comissão de serviço e, até a 31/08/1999, mantinha a relação jurídica de emprego público na DSXX no estatuto de recrutada no exterior, estatuto regulado sucessivamente pelos D.L. n.º 53/89/M e D.L. n.º 60/92/M. (arts. 1º e 6º da contestação)
Ao candidatar-se ao concurso de distribuição de moradias do Estado por arrendamento aberto mediante o anúncio publicado no BO n.º 50 de 11/12/1982 (art. 2º da contestação), a recorrente preenchia, pois, o requisito previsto no n.º 1 do art. 2º do D.L. n.º 46/80/M.
Ela viu satisfeita com a atribuição duma moradia e a outorga do respectivo contrato de arrendamento em 08/08/1987 e mudou para uma moradia maior com a celebração de um novo contrato de arrendamento em 09/11/1989. (arts. 3º e 4º da contestação)
Deste modo, a recorrente adquiriu o direito ao arrendamento de moradia ao abrigo do D.L. n.º 46/80/M. Nem os Decretos-Leis n.º 53/89/M e D.L. n.º 60/92/M nem o D.L. n.º 31/96/M tocaram este direito. E, sucede que bem ou mal, tal direito foi mantido por despacho do Director da DSF na Informação n.º 098NAJ/CA/99 (doc. de fls. 22 a 29 do P.A.).
No entanto, o direito a arrendamento de moradias pertencentes ao então Território de Macau distingue-se do direito à aquisição regulamentado na Lei n.º 4/83/M.
O n.º 1 do art. 1º desta Lei prevê com toda a clareza: As habitações arrendadas pelo Território a funcionários dos seus quadros próprios, no activo ou aposentados, poder ser vendidos nos termos desta lei. E o seu art. 2º estabelece que as habitações só podem ser vendidas aos respectivos arrendatários.
Quer isto dizer que o direito à aquisição depende de dois requisitos cumulativos: de um lado, ser arrendatário de prédios pertencentes ao Território de Macau, e de outro, ser funcionário do quadro próprio de Macau – a única excepção deste requisito encontra consagrada no n.º 1 do art. 23º da mesma Lei.
Por seu turno, o n.º 3 do art. 2º do D.L. n.º 31/96/M que substitui o D.L. n.º 46/80/M determina: As moradias atribuídas ao abrigo no presente diploma não podem ser alienadas aos respectivos moradores.
No caso sub iudice, é concludente que a recorrente nunca integra no quadro próprio do Território de Macau – hoje RAEM, e na altura de manter o estatuto de recrutada no exterior, ela nunca apresentou requerimento para efeito previsto no n.º 1 do art. 23º da Lei n.º 4/83/M. E perdeu tal estatuto desde 31/08/1999 (arts. 6º e 7º da contestação).
Nestes termos, e dado que são manifestamente sofisticados os aduzidos nas conclusões a) a d) e g) a m) das alegações de fls. 92 a 103 dos autos, entendemos que o despacho recorrido não infringe nenhuma norma legal ou princípio jurídico, caindo por terra a invocada violação de lei.
A recorrente arguiu ainda o vício de forma por falta de fundamentação, argumentando que «e) visto que o fundamento invocado para o indeferimento da pretensão da Recorrente viola a lei, não podendo assim ser atendido, o acto mostra-se destruído de fundamentação o que redunda igualmente na anulabilidade do acto.»
Aqui, a recorrente confunde duas figuras distintas por natureza – a fundamentação e o fundamento. De qualquer modo, a desatendibilidade do fundamento só por si não gera a falta de fundamentação.
Nos termos do preceito no n.º 1 do art. 115º do CPA, a declaração de concordância (同意意見) encontrada no despacho em causa implica a fundamentação por remissão, acolhendo e absolvendo a fundamentação na Proposta n.º 30437/DGP/13 (doc. de fls. 1 a 6 do P.A.). O teor dessa Proposta torna indubitável que tal despacho está devidamente fundamentado, não existindo o vício de forma por falta de fundamentação.
Por todo o expendido acima, propendemos pela improcedência do presente recurso.”
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O Tribunal é o competente e o processo o próprio.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas, e têm interesse processual.
Não existe outras nulidades, excepções nem questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Resulta provada dos elementos constantes dos autos, designadamente do processo administrativo, a seguinte matéria de facto com pertinência para a decisão da causa:
A recorrente iniciou funções no então Território de Macau em 1982, na altura em comissão de serviço na, hoje, Direcção dos Serviços de Educação e Juventude. (fls. 46 do P.A.)
Em 1983, a recorrente requereu a atribuição por arrendamento de uma moradia por concurso, conforme anúncio publicado no B.O. nº 50, de 11.12.1982. (fls. 46 do P.A.)
Em consequência, por despacho de 7.8.1987 do Director dos Serviços de Finanças, foi-lhe concedida uma moradia, por arrendamento, sita em Macau, na Rua xx, edifício x, nº xx, xº andar “x”, e cujo contrato de arrendamento foi assinado a 8.8.1987. (fls. 67 e 68 do P.A.)
Por despacho do Director dos Serviços de Finanças, de 8.11.1989, foi a recorrente autorizada a mudar para a moradia sita em Macau, na Rua xx, edifício x, nº xx, xº andar “y”, tendo sido celebrado novo contrato de arrendamento em 9.11.1989. (fls. 57 e 61 do P.A.)
A recorrente manteve a relação de trabalho na DSXX com o estatuto de recrutada no exterior até 31.8.1999. (fls. 53 e 54 do P.A.)
Em 25.8.1999, a recorrente celebrou com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude contrato além do quadro, para exercer funções de docente, com efeitos a partir de 1.9.1999 até 31.8.2000. (fls. 40 e 41 do P.A.)
Entretanto, a recorrente denunciou o seu contrato com a DSXX com efeitos a partir de 1.10.1999, a partir de então passou a encetar nova relação de trabalho com o Instituto XXX até a presente data. (fls. 30 a 33 do P.A.)
Uma vez cessadas as funções como recrutada no exterior, foi solicitada à recorrente a devolução da moradia onde habitava.
A 3.9.1999, a recorrente apresentou um pedido de manutenção do contrato de arrendamento, argumentando com o facto de não ter direito à habitação por efeito do recrutamento no exterior, mas sim por um contrato de arrendamento, após concurso público, daí que, no seu entender, não se verificava nenhuma das condições legais para cessar a vigência do seu contrato de arrendamento. (fls. 34 a 36 do P.A.)
Por despacho do Director dos Serviços de Finanças, de 18.11.1999, foi autorizada a manutenção do direito da recorrente a ocupar a moradia por arrendamento. (fls. 22 a 29 do P.A.)
A recorrente apresentou, no dia 4.7.2013, na Direcção dos Serviços de Finanças, um requerimento dirigido a Sua Ex.ª o Chefe do Executivo, pedindo que lhe fosse concedida autorização necessária à alienação a seu favor da moradia sita em Macau, na Rua XX, edifício X, nº xx, Xº andar X. (fls. 11 do P.A.)
Foi elaborada pelos técnicos da Direcção dos Serviços de Finanças a Proposta nº 30437/DGP/13, de 22.10.2013, que a seguir se transcreve:
“Assunto: Pedido de compra de moradia Proposta N.º: 30437/DGP/13
da RAEM – A Data: 22/10/2013
Por requerimento dado entrada nesta Direcção dos Serviços a 04/07/13, A, residente na moradia “y”, do xº andar do Edf. “x”, sita na Rua xx, n.º xx, vem, nos termos da Lei n.º 4/83/M, de 11 de Julho, expor e requerer a sua Excelência o Senhor Chefe do Executivo o seguinte:
- A requerente é arrendatária da fracção sita em Macau, na Rua xx, Edifício x, n.º xx, 3º y;
- O arrendamento foi contratualizado com a RAEM em 9 de Novembro de 1989, e mantém-se em vigor à presente data, uma vez que foi celebrado de acordo com o DL n.º 46/80/M, de 27 de Dezembro, diploma que regulava a atribuição de alojamento em moradias que fossem da propriedade da RAEM, entretanto revogado e substituído pelo Decreto-Lei n.º 37/95/M, de 7 de Agosto, que, no entanto, salvaguardou os direitos adquiridos pelos arrendatários à luz do diploma revogado, conforme previsto no seu artigo 37º, alíneas a) e b), e;
- Que em absoluto respeito pelo disposto no n.º 1 do artigo 1º e no artigo 3º da Lei n.º 4/83/M, de 11 de Julho, e uma vez que a fracção de que a requerente é arrendatária não se enquadra em nenhuma das excepções previstas no n.º 3 do artigo 1º do referido diploma, vem solicitar que lhe seja concedida autorização para a alienação da fracção supra referida, e do direito do uso do lugar n.º 35 afecto a esta fracção e sito no mesmo edifício.
Relativamente ao DL n.º 37/95/M, de 7 de Agosto, mencionado no requerimento, julgamos que a requerente, por lapso, queria na realidade referir o DL n.º 31/96/M, de 17 de Junho.
Dos documentos constantes neste Departamento, cumpre informar o seguinte:
- A requerente foi recrutada ao exterior nos termos do DL n.º 60/92/M, de 24 de Agosto, para exercer funções no território como professora do ensino primário na DSXX. Entretanto, em 30.08.1999, cessou funções ao abrigo daquele diploma e a partir daquela data passou a exercer funções na DSXX, através de contrato de trabalho.
- Posteriormente, rescindiu o contrato com estes serviços e veio a celebrar contrato com o Instituto XXX Instituto este, no qual exerce actualmente funções de docente por contrato de trabalho celebrado com aquele Instituto com efeitos entre 01.09.2011 e válido até 31.08.2013.
- Tendo a requerente terminado o seu recrutamento à República Portuguesa em 30.08.1999, pelo ofício n.º 2114/DACE-DGP/99, de 27.08, desta DSF, foi-lhe solicitada a entrega da moradia em que residia.
- Como a requerente havia adquirido o direito ao arrendamento da moradia através de concurso público pelo requerimento de 03.09.1999, veio solicitar autorização para permanecer na moradia, ao abrigo do contrato de arrendamento feito nos termos do DL n.º 46/80/M, de 27 de Dezembro. Tendo a situação da manutenção do arrendamento da moradia da RAEM, sido objecto de análise jurídica na Informação n.º 098/NAJ/CA/99, de 08.11.99, junta ao processo e;
- Por despacho de 18.11.99, do Exmo Senhor Director dos Serviços de Finanças, exarado na referida informação, foi autorizada à requerente a manutenção do direito de alojamento da moradia supra referida.
O regime de alienação de fogos da RAEM
O Regime de alienação de fogos da RAEM aos seus arrendatários encontra-se delineado na Lei 4/83/M de 11/07 e no DL n.º 56/83/M de 30/12, que regulamenta as normas indispensáveis à execução da lei.
Nos termos da citada lei, são titulares do direito à aquisição de moradia da RAEM:
- Os funcionários dos quadros próprios da Administração, no activo ou aposentados, ou quando o arrendamento haja sido legalmente transmitido ao cônjuge sobrevivo ou aos descendentes menores do funcionário (n.º 1 e n.º 2 do artigo 1º) e;
- Ser arrendatário da moradia da Administração pretendida a adquirir (artigo 2º).
Do exposto resulta que a requerente não é titular do direito à aquisição de moradia da RAEM, por não pertencer aos quadros da Administração da RAEM, logo não se encontra abrangida pelo n.º 1 do art.º 1 da Lei n.º 4/83/M, de 11 de Junho.
Nestes termos face à legislação em vigor, julgamos, que não é legalmente possível a pretensão apresentada pela ora requerente.
Quanto ao pedido do direito do uso do parque de estacionamento n.º 35 afecto à citada fracção, informa-se que este parque é utilizado pela ora requerente.
Pelo ofício n.º 11299/DGP/13, de 04.09.2013, notificou-se a requerente para que, querendo, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo n.º 93º do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo DL n.º 57/99/M, de 11 de Outubro, se pronunciar, no prazo de 10 dias quanto ao conteúdo da informação n.º 30374/DGP/13, de 30.08.2013, que se pronunciava pelo indeferimento da sua pretensão pelos motivos de facto e direito acima exposto.
Após a recepção do ofício, conforme aviso de recepção, a requerente, decorrido o prazo fixado, nada veio dizer ou requerer.
Pelo exposto, não sendo legalmente possível a alienação da moradia em causa, julgo ser de submeter a presente informação à consideração superior do Exm.º Senhor Secretário para a Economia e Finanças, propondo-se o indeferimento da pretensão.
Porém, V. Exa melhor decidirá.”
Sobre essa proposta recaiu o seguinte despacho da Directora dos Serviços de Finanças:
“經濟財政司司長 閣下
本人同意建議拒絕申請人的請求,因欠缺法律依據。現呈 閣下予以考慮。”
A 24.10.2013, sobre a mesma proposta recaiu o seguinte despacho do Exm.º Secretário para a Economia e Finanças:
“同意意見,不批准有關申請。”
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É com este despacho que a recorrente não se conforma e dele vem interpor o presente recurso, pedindo a sua anulação.
Vamos analisar agora os fundamentos do recurso, começando pelo alegado vício de violação de lei.
Da violação de lei
Pretende a recorrente agora adquirir a moradia que lhe foi arrendada pelo então Território de Macau desde 1989, entendendo que a entidade recorrida como já reconheceu anteriormente a sua qualidade de funcionária quando se discutiu se devia manter-se em vigor o seu arrendamento ou ordenar-se-lhe que abandonasse a moradia que habita, tal reconhecimento não pode agora ser posto em crise quando se discute agora o direito da recorrente na aquisição dessa mesma moradia em virtude de esse direito ter por fonte o dito arrendamento que está absolutamente estabilizado na esfera jurídica da recorrente.
Vejamos primeiro o que se dizem nos respectivos diplomas legais.
A atribuição de alojamento aos trabalhadores da Administração Pública em moradias que sejam propriedade da RAEM está regulada pelo Decreto-Lei nº 31/96/M, de 17 de Junho.
De acordo com o artigo 2º daquele diploma legal, dispõe-se que as moradias atribuídas destinam-se exclusivamente a habitação dos trabalhadores e dos membros do seu agregado familiar, e não podem ser alienadas aos respectivos moradores, isto é, não há lugar a aquisição, por meio de compra, pelos seus arrendatários.
Mas o artigo 37º, alínea b) fez consagrar uma ressalva dos direitos adquiridos pelos arrendatários, na medida em que são conferidos aos trabalhadores que habitem moradias da propriedade do Território de Macau, hoje RAEM, direitos de candidatar-se à sua aquisição, desde que, à data da entrada em vigor daquele mesmo diploma legal, reúnam os requisitos exigidos para o efeito na legislação vigente.
E qual seria a respectiva legislação vigente?
À data em que o Decreto-Lei nº 31/96/M entrou em vigor, i.e., em 1.7.1996, estava em vigor a Lei nº 4/83/M, de 11 de Julho, que regulava a alienação de prédios do Estado aos seus arrendatários, e estatuindo-se no nº 1 do artigo 1º deste último diploma que “as habitações arrendadas pelo Território a funcionários dos seus quadros próprios, no activo ou aposentados, podem ser vendidas nos termos desta lei”. – realçado e sublinhado nosso
Mais se preceituam nos artigos 2º e 3º do mesmo diploma legal que aquelas habitações só podem ser vendidas aos respectivos arrendatários, cuja alienação depende do requerimento do próprio arrendatário e da autorização do Governador.
Ora, segundo tal regime, é bom de ver que para que a moradia da propriedade da RAEM possa ser alienada ao seu arrendatário, é necessário que ele seja “funcionário dos quadros próprios” da Administração Pública de Macau.
Ao abrigo do nº 1 do artigo 20º do ETAPM, o provimento do pessoal do quadro podem revestir as seguintes modalidades: provisória ou definitiva; em comissão de serviço e interina, mas de acordo com o nº 2 do artigo 2º do mesmo Estatuto, só o provimento por nomeação definitiva ou em comissão de serviço é que confere a qualidade de funcionário.
Na verdade, a recorrente nunca foi funcionária dos quadros da Administração Pública de Macau, pois manteve a relação de trabalho com a DSXX na qualidade de recrutada no exterior até 31.8.1999, e a partir dessa data passou a celebrar com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude contrato além do quadro, pouco tempo depois celebrou novo contrato de trabalho a termo com o Instituto XXX, para exercer funções de docente.
E não obstante que, segundo a declaração emitida pelo Instituto XXX, se comprova que a recorrente pertence ao “quadro de pessoal” daquele Instituto (fls. 108), mas tal não significa que ela é funcionária dos quadros da Administração Pública de Macau no sentido abrangido pelo nº 2 do artigo 2º do ETAPM.
Como sabemos, e isto resulta do próprio Estatuto do Pessoal Docente do Instituto XXX, publicado no B.O. nº 34, de 23.8.1999, o pessoal docente daquele Instituto é contratado em regime de tempo parcial ou integral por um período não superior a dois anos, portanto aquele tipo de contrato tem natureza de contrato individual de trabalho, isso significa que a recorrente não pode ser considerado como pessoal do quadro propriamente dito da Administração Pública de Macau.
Sendo assim, no caso em apreço, em virtude de que a arrendatária ora recorrente nunca pertencia ao pessoal do quadro da Administração Pública de Macau, podemos concluir que reunidos não estão os requisitos necessários para a aquisição da referida habitação arrendada.
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Por outro lado, embora seja verdade que o direito de aquisição de habitações arrendadas seja extensivo aos funcionários dos quadros da República, tal como se confere pelo artigo 23º daquela mesma Lei nº 4/83/M, mas dúvidas de maior não restam de que no momento em que foi formulado o requerimento pedindo que lhe fosse concedida autorização necessária à alienação a seu favor da moradia arrendada, a recorrente já deixou de ser funcionária dos quadros da República Portuguesa.
É verdade que a norma prevista no artigo 23º da Lei nº 4/83/M tem por objectivo incentivar os funcionários dos quadros de Portugal a prestarem serviço, pelo menos por cinco anos (tendo em consideração o prazo do ónus de inalienabilidade) no então Território de Macau.
Contudo, não tendo a recorrente formulado o pedido de aquisição da moradia arrendada em momento oportuno, deixou de ter esse direito a partir de 1.9.1999, altura em que cessou definitivamente funções como recrutada no exterior.
Em boa verdade, tendo a recorrente celebrado contrato além do quadro e contrato de trabalho a termo, respectivamente, com a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude e com o Instituto XXX, há muito tempo deixou de possuir o estatuto de recrutada no exterior, e consequentemente, de pertencer aos quadros da República Portuguesa, pelo que o artigo 23º da Lei nº 4/83/M já não lhe é aplicável.
Tudo isto para apontar que a recorrente já não tem direito a pedir a alienação a seu favor da moradia arrendada, por não se verificarem minimamente os requisitos previstos na Lei nº 4/83/M.
E não se diga o facto de a Direcção dos Serviços de Finanças ter reconhecido à recorrente o direito de ser arrendatária da moradia em causa, necessariamente teria que reconhecer também que ela tem toda a legitimidade ou direito de adquirir a mesma.
Em nossa opinião, são dois aspectos completamente diferentes, uma coisa é conceder o direito de arrendamento de moradia do Território, outra é autorizar a sua aquisição pelo seu arrendatário.
Como disse a entidade recorrida, e bem, “a interpretação que na altura a Administração fez do conceito de “funcionários e agentes públicos”, que permitiu a sua admissão a concurso, ainda que não se discuta a sua bondade, não tem a virtude de alterar o estatuto sob o qual prestava serviço na Administração”, isto é, apesar de a recorrente ser arrendatária da moradia do então Território de Macau, e actualmente, da RAEM, não implica necessariamente que o seu estatuto se tenha alterado no sentido de passar a pertencer ao pessoal do quadro da Administração Pública, para, em consequência, poder adquirir a sua moradia arrendada nos termos previstos na Lei nº 4/83/M.
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Por fim, a recorrente pede uma interpretação extensiva do artigo 23º, nº 1 da Lei nº 4/83/M, ou mesmo uma integração de lacuna da lei por forma a regular a situação das pessoas, tal como a recorrente, que são arrendatárias de moradia da RAEM; dispuseram do direito a adquirir essa moradia ao abrigo do referido artigo 23º, nº 1; perderam-no, não por escolha voluntária, mas porque o estatuto político de Macau se alterou, e Macau deixou de ter qualquer dependência política ou administrativa relativamente a Portugal; mas continuaram desde então a trabalhar ininterruptamente para a Administração local; de maneira a reconhecer-se a essas pessoas o direito a adquirir a moradia de que são arrendatárias.
Em nossa opinião, aquela disposição legal nunca foi alterada em virtude da mudança do estatuto político-administrativo de Macau, pois segundo a Lei Básica, foi assegurada a continuidade do ordenamento jurídico aquando da transferência de soberania de Macau para a República Popular da China, pelo que não se compreende em que termos e com que fundamentos pretende a recorrente fazer uma interpretação extensiva ou recorrer a integração de lacuna relativamente àquela disposição legal.
De facto, o que acontece é que a recorrente, quando ainda era funcionária dos quadros da República Portuguesa, não logrou beneficiar das regalias oferecidas pelo seu estatuto, e quando cessou definitivamente funções como recrutada no exterior em 31.8.1999, deixou de ter direito a adquirir tal habitação arrendada por não reunir os requisitos legalmente exigidos para a sua alienação.
Aqui chegados, não se descortina o alegado vício de violação de lei.
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Da falta de fundamentação do acto administrativo
A recorrente vem ainda assacar ao despacho recorrido vício de forma por falta de fundamentação, alegando que, por padecer o acto recorrido do vício de violação de lei, e verificando-se essa violação, vai dar origem a falta de fundamentação, por o acto mostrar-se destituído de fundamentação.
Ao que parece, a recorrente confunde violação de lei e falta de fundamentação.
Em nossa opinião, ainda que a alegada violação de lei se verificasse, o que não se concede, não implicaria falta de fundamentação do acto, pois no presente caso nunca deixou de haver fundamentação do acto administrativo, quando muito haveria apenas, tal como se refere pela entidade recorrida, uma fundamentação suportada por errada aplicação da lei.
Estatui-se no artigo 114º do Código do Procedimento Administrativo que os actos administrativos que neguem, extingam, restrinjam ou afectem por qualquer modo direitos ou interesses legalmente protegidos, ou imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções, devem ser fundamentados.
Preceitua-se ainda no nº 1 do artigo 115º do mesmo Código que a fundamentação deve ser expressa, através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão, podendo consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações, propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.
A fundamentação visa assegurar a melhoria da qualidade e a legalidade dos actos administrativos, facilitar o recurso contencioso pelos eventuais lesados pelo acto administrativo, de modo a garantir o exercício efectivo do seu direito ao recurso contra actos lesivos, e tem ainda uma função persuasória e consensual, contribuindo para a uma maior transparência da actividade administrativa.1
Em nossa opinião, entendemos que não logrou a recorrente expor em que termos é que o acto recorrido tenha falhado nessa alegada falta de fundamentação, ela apenas limitou-se a manifestar a sua não concordância com a fundamentação exposta na decisão recorrida, no tocante à interpretação das respectivas disposições legais.
De facto, o acto recorrido foi proferido de acordo com a proposta submetida à consideração do Exmº. Secretário para a Economia e Finanças, ora autor do acto.
É de verificar que o despacho em causa “absorveu” os fundamentos de facto e de direito explanados na proposta elaborada pela Direcção dos Serviços de Finanças, e sendo verdade que a fundamentação dos actos administrativos pode consistir em “mera declaração de concordância com os fundamentos”, nos termos do artigo 115º, nº 1 do Código do Procedimento Administrativo, pelo que não se nos afigura padecer o despacho recorrido do alegado vício imputado.
Face ao expendido, o recurso não deixará de improceder.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pela recorrente, com 8 U.C. de taxa de justiça.
Registe e notifique.
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RAEM, 3 de Dezembro de 2015
Presente Tong Hio Fong
Victor Manuel Carvalho Coelho Lai Kin Hong
João A.G. Gil de Oliveira
1 Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro e José Cândido de Pinho, Código do Procedimento Administrativo de Macau, Anotado e Comentado, FM e SAFP, pág. 623 e 624
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Recurso Contencioso 779/2013 Página 30