Processo nº 889/2015
(Autos de recurso civil)
Data: 3/Março/2016
Assuntos: Contrato-Promessa de partilha dos bens do casal
SUMÁRIO
O contrato-promessa de partilha dos bens do casal é válido na medida em que não altera de momento a situação patrimonial dos cônjuges, pois tal acordo apenas se projecta no futuro subordinando à condição suspensiva do decretamento do divórcio.
O Relator,
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Tong Hio Fong
Processo nº 889/2015
(Autos de recurso civil)
Data: 3/Março/2016
Recorrente:
- B
Recorrido:
- C
Objecto do recurso:
- Despacho que declarou nulo o contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
Corre termos no Juízo de Família e de Menores do Tribunal Judicial de Base um inventário para partilha de bens do casal, sendo cabeça-de-casal a ora recorrente, e interessado C ora recorrido.
Na conferência de interessados realizada no dia 20.5.2015, pelo juiz do Juízo de Família e de Menores foi proferido despacho, pelo qual foi declarado nulo o contrato-promessa de partilha celebrado em 26.3.2014 entre a ora recorrente e o recorrido.
Inconformada com a decisão, dela interpôs a recorrente recurso ordinário para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido na Conferência de Interessados de 20.05.2015, pelo qual foi declarado nulo o contrato-promessa de partilha celebrado em 26.03.2014 entre a ora Recorrente e o Recorrido e junto a fls. 52 a 54 dos autos, entendendo a Recorrente que o art. 1028º, n.º 1 do CPC invocado no despacho recorrido para sustentar a respectiva nulidade, não impede a válida celebração de contratos-promessa de partilha, como acontece com o contrato-promessa de partilha em apreço nos presentes autos.
2. Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm-se debruçado amplamente sobre a questão da validade ou nulidade dos contratos-promessa de partilha celebrados entre cônjuges previamente à declaração do respectivo divórcio, concluindo no sentido da validade de tais acordos, desde que os mesmos não ponham em causa a regra da metade visada pelo princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, com expressão no art. 1607º do Código Civil de Macau, condicionados ao decretamento do divórcio entre os cônjuges, tal como aconteceu no caso em apreço.
3. O contrato-promessa de partilha objecto dos presentes autos foi celebrado de livre e espontânea vontade entre Recorrente e Recorrido, sendo que, pelo referido contrato, não se violou a regra da metade prevista no art. 1607º do Código Civil.
4. Pelo referido contrato foi também definida a adjudicação dos bens à ora Recorrente, sendo que nenhuma razão existe para que tal acordo não seja declarado válido e vinculativo entre as partes.
5. Por outro lado, para além de livre e espontaneamente celebrado entre as partes, repare-se ainda que, uma vez junto o contrato de partilha aos autos, o Recorrido não invocou a nulidade de tal contrato, alegando que o mesmo padecesse, por exemplo, de qualquer vício de vontade.
6. Pelo que, deverá ser declarada a validade do contrato-promessa de partilha de fls. 52 a 54 dos autos, ao abrigo do disposto nos artigos 391º, 399º, n.º 1, 400º, n.º 1 do Código Civil, tendo presente que tal acordo não encerra qualquer violação do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais consagrado no art. 1607º do Código Civil.
7. Entendendo a Recorrente que, ao declarar a nulidade do contrato-promessa de partilha objecto dos autos ao abrigo do disposto no art. 1028º, n.º 1 do CPC, viola a decisão recorrida o disposto nos referidos artigos 391º, 399º, n.º 1, 400º, n.º 1 do Código Civil, em conjugação com o disposto no art. 1607º do mesmo diploma legal.
Conclui, pedindo a revogação do despacho recorrido.
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Notificado, contra-alegou o recorrido, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
1. O contrato promessa de partilha celebrado entre a recorrente e o recorrido em 26 de Março de 2014, deverá ser declarado nulo por violação do disposto nos artigos 1028º, n.º 1 do CPC e 1607º do Código Civil.
2. Na verdade, o acordo assinado entre recorrente e recorrido deveria ter sido celebrado depois do facto que lhe deu causa, ou seja o divórcio de ambos.
3. E, nesse acordo teria que se respeitar a regra da participação por metade no activo e no passivo da comunhão, sob pena de nulidade.
4. Esta regra foi, obviamente violada no caso dos autos pois, não só há elementos suficientes nos autos como é do conhecimento comum para qualquer pessoa que resida em Macau que a meação das duas propriedades identificadas no acordo nunca poderia dar o valor de HKD$450.000,00.
5. E, por último, deverá ser igualmente decretada a invalidade do contrato promessa de partilha dado que houve erro na formação da vontade do recorrido, uma vez que o acordo não lhe foi traduzido na íntegra nem o seu conteúdo devidamente explicado.
6. Por todos estes motivos deverá ser mantido o despacho de nulidade do contrato promessa de partilha celebrado em 26 de Março de 2014 entre a recorrente e o recorrido.
Conclui, pugnando pela negação de provimento ao recurso, e manutenção do despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
Provada está a seguinte matéria de facto relevante para a decisão da causa:
A recorrente e o recorrido casaram-se em 21.1.2005 e divorciaram-se em 29.5.2014.
Em 25.5.2012, a recorrente celebrou com a Empresa de Fomento Industrial e Comercial XXXXXX, S.A., um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, através do qual aquela prometeu comprar e esta prometeu vender a fracção autónoma sita em Coloane, ......, bloco ..., ...º andar ..., pelo preço de HKD$6.477.000,00.
Em 26.3.2014, a recorrente celebrou com o recorrido um acordo intitulado “contrato-promessa de partilha por divórcio”, nos seguintes termos:
“由于離婚而生之分割預約合同
B,已婚, 持有於2005年6月2 日發出,有效期至2015年6月2日之澳門居民身份證,編號為xxxxxxx(x),住址位於澳門......街...... kok ...樓...座,以下簡稱為甲方,
以及
C,已婚,持有於2012年5月8日發出,有效期至2022年5月8日之澳門居民身份證,編號為xxxxxxx(x),住址位於澳門......街...... kok ...樓...座,以下簡稱為乙方,
- 考慮到雙方於2005年1月21日在澳門成婚;
- 考慮到雙方自由地希望以兩願離婚方式解除婚姻合同;
- 基于存在著於結婚期間購入之夫妻財產,雙方希望訂立分割該等財產的制度以於雙方被頒佈離婚後確定。
雙方以自由、知情及有意識的方式訂立受下列條款所規範的本合同:
第一條
1. 資產:
第一項:位於珠海巿......路...號...棟...房的不動產;
第二項:位於......第...座...號...座的不動產。
第二條
乙方承諾給予甲方其於上述第一條中述及之第一項及第二項不動產中的份額。
第三條
基于上條提及之由乙方作出給予甲方的承諾,甲方同意付予乙方金額為HKD$450,000.00的抵償金(港幣四十五萬元)。
第四條
甲方承諾於上條提及之金額HKD$450,000.00(港幣四十五萬元)會以下列規定付予乙方:
a) HKD$250,000.00(港幣二十五萬元)會於將該等不動產中乙方的份額擁有權轉至甲方之相關公證書的訂立日內交付;
b) HKD$200,000.00(港幣二十萬元)於2014年11月10日交付。
第五條
關於將該等詳述於第一條之不動產中乙方的份額擁有權轉至甲方之相關公證書將於雙方裁定離婚日起最多60(六十)日內訂立。
第六條
在訂立上述公證書及交付抵償金後,雙方承諾聲明由夫妻財產分割而生的金額已全數清償。
第七條
所有關於給予甲方不動產的公證書、登記的費用,以及任何其他的行政及財政費用將單獨地只由甲方付出,儘管不能逐一詳述,但費用包括稅款、手續費以及任何其他由該行為所生的費用。
第八條
本合同之正本一式兩份,具有相同價值,雙方各執一份為據。
另外,茲聲明由于乙方不諳中文,故持有一份忠于本合同之英文翻譯本,本合同之內容亦由其選擇之口譯員朗讀,乙方同時亦完全知悉本合同載有之條款內容。
澳門, 2014年3月26日
簽名 簽名
(B) (C)”
Na conferência de interessados realizada no dia 20.5.2015, pelo juiz do Juízo de Família e de Menores foi declarado nulo o referido contrato-promessa.
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A única questão que se coloca no presente recurso é saber se é admissível (e válida) a celebração de um contrato-promessa de partilha dos bens comuns na pendência do casamento.
De facto, quer a doutrina quer a jurisprudência portuguesas têm-se debruçado amplamente sobre essa questão, entretanto não havia unanimidade.
A principal razão que tem sido invocada nas decisões como obstáculo à validade de um contrato-promessa nessas condições consiste na necessidade de prevenir o risco sério de um dos cônjuges se prevalecer do ascendente psicológico adquirido com o tempo sobre o seu consorte, para dele extorquir alterações favoráveis aos seus interesses1.
Por outro lado, entendia a jurisprudência portuguesa que a partilha dos bens comuns do casal na pendência do casamento afronta o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais previsto no artigo 1714º do Código Civil Português nele se prevê que “fora dos casos previstos na lei, não é permitido alterar, depois da celebração do casamento, nem as convenções antenupciais nem os regimes de bens legalmente fixados.”
Quid iuris?
Em boa verdade, podemos verificar que já deixou de vigorar no Direito de Macau o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, sendo agora permitido aos cônjuges alterarem por acordo, ainda durante o casamento, a convenção antenupcial (artigo 1578º do CC).
No entanto, isso não implica que com a alteração da convenção antenupcial, daria lugar à partilha dos bens comuns do casal, salvo o regime de bens aplicável ao casamento passa a ser o regime da comunhão geral ou deixa de ser um regime de comunhão, pois só nestes casos é que se procede à partilha do património comum (artigo 1578º, nº 4 CC).
Daí que, fora daquelas situações acima aludidas, não há lugar à partilha antes da dissolução do casamento.
Mas haverá algum impedimento de os cônjuges celebrarem contrato-promessa de partilha ainda na vigência do casamento e se será o mesmo válido?
Salvo o devido respeito, propendemos para a sua aceitação, aliás não vemos razão para deixar de seguir a doutrina e jurisprudência portuguesas, claramente predominantes.
Observa Tong Io Cheng que “não faria sentido dizer que o contrato-promessa de partilha dos bens comuns do casal viola o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, pois a razão de não poder proceder-se à partilha dos bens na vigência do casamento não resulta do tal princípio da imutabilidade das convenções antenupciais, antes pelo contrário do próprio regime da comunhão”2.
Por outras palavras, defende o mesmo autor que, ainda que se tenha revogado o tal princípio, os cônjuges continuam a não poder efectuar a partilha dos bens comuns, salvo excepções previstas na lei.
De facto, segundo o regime da comunhão, ambos os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso (artigo 1607º CC).
Mas não deixa de ser verdade que o simples facto de os cônjuges celebrarem na constância do casamento um “contrato-promessa de partilha” nada altera de momento a situação patrimonial desses mesmos cônjuges, pois tal acordo apenas se projecta no futuro subordinando à condição suspensiva do decretamento do divórcio entre os cônjuges.
Mais precisamente, a liquidação da comunhão só tem lugar, em princípio, no momento da dissolução do casamento, sendo a partilha uma das consequências de cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges, forçoso é concluir que o contrato-promessa de partilha dos bens do casal não deixa de ser válido, na medida em que o contrato-prometido apenas iria ser cumprido ou executado em momento posterior à dissolução do casamento, por divórcio.
Por outro lado, julgamos que não haveria razão para impedir que os cônjuges acautelem de antemão como virá a ser preenchida a sua meação dentro dos limites legais, de modo a permitir-lhes planear concertadamente os assuntos da sua vida futura.
Por outro lado, não podemos deixar de frisar que, se se verificar qualquer dos vícios da vontade, nomeadamente, erro, dolo ou coacção, bem pode alguma das partes contraentes requerer a anulação do respectivo contrato nos termos gerais de direito.
Não obstante vir alegar o recorrido que nunca teria aceitado assinar o tal acordo, por não saber falar nem ler a língua chinesa e o acordo não lhe ter sido traduzido na íntegra, mas como essa questão não foi levantada no despacho recorrido, não podemos agora em sede de recurso conhecer da mesma.
Aqui chegados, tudo aponta para a validade do contrato-promessa de partilha de bens, ficando tal acordo sujeito à condição suspensiva do divórcio vir a ser decretado, não produzindo até lá quaisquer efeitos, tal como não os produzirá se a condição não se verificar.
No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.3.1999, in dgsi, citado para efeitos de direito comparado:
“…os efeitos deste contrato-promessa em nada interferem, directa ou indirectamente, com os mencionados no cit. Artº 1714º, uma vez que não é alterado o regime de bens nem afectado o estatuto patrimonial dos cônjuges. Como se diz na citada anotação na Rev. Leg. J. “…todos os bens comuns do casal continuam bens comuns…; e todos os bens próprios de cada cônjuge continuam como dantes”; neste contrato, “os cônjuges apenas combinam o modo de preencher os direitos que ambos tem a metade do valor dos bens parece merecer um controlo específico da ordem jurídica…, deve ficar apenas submetido aos mecanismos gerais de defesa de um contraente contra o outro.
Esta solução da validade do contrato-promessa é ainda a mais razoável, por permitir aos cônjuges desavindos ou determinado a pôr termo à vida conjugal uma solução conjunta dos seus diversos interesses de modo mais seguro, rápido e económico, uma vez que, através do divórcio por mútuo consentimento e do projecto de partilha dos bens, garantem a dissolução do casamento em curto prazo, evitam discussão sobre as causas do divórcio e os riscos inerentes à declaração de culpa e podem organizar a sua vida na perspectiva do gozo de determinados bens.”
Nestes termos, temos que conceder provimento ao recurso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela recorrente B, em consequência, revogando-se o despacho recorrido, e declarando-se válido o contrato-promessa celebrado em 26.3.2014 pelos recorrente e recorrido junto a fls. 52 a 54 do processo principal.
Custas pelo recorrido nesta instância.
Registe e notifique.
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RAEM, 3 de Março de 2016
(Relator) Tong Hio Fong
(Primeiro Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto) João A. G. Gil de Oliveira
1 A. Varela, Direito de Família, p. 418
2 Tong Io Cheng, O Regime Jurídico do Contrato-Promessa, FDUM, 2004, pág. 170
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Recurso Civil 889/2015 Página 1