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Processo n.º 408/2015
(Revisão de decisão proferida no Exterior)

Data: 21/Janeiro/2016


ASSUNTOS:
- Revisão de sentença
- Requisitos formais necessários para a confirmação
- Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau
- Compatibilidade com a ordem pública


   SUMÁRIO:

1- Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, nº2 do CPC.

2- Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.

3- Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.

4- É de confirmar a sentença que se mostra transitada, proferida por um Tribunal de Hong Kong, que dissolveu um casamento por divórcio, não se vislumbrando qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública ou qualquer obstáculo à revisão dessa sentença.


O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
  


Processo n.º 408/2015

Data : 21/Janeiro/2016

Requerentes : - A
         - B

Requerido : - C

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    1. A e a sua irmã B, ambos do sexo feminino, solteiras, adultas, mais bem identificadas nos autos, vêm solicitar seja proferido acórdão de revisão e confirmação da “sentença” da acção de divórcio n.º FCM57/2004 proferido pelo Tribunal do Distrito da RAEHK, isto é, a sentença da dissolução da relação matrimonial entre a mãe das requerentes, D (ou XX, do sexo feminino, falecida em 31 de Agosto de 2013, já divorciada no momento de falecimento) e o requerido, C, também ele mais bem identificado nos autos,

Com as seguintes razões e fundamentos:
1.
As requerentes, A, e a sua irmã biológica mais nova, B, são filhas biológicas da falecida D (ou XX) e do requerido C – vide doc. 1 e 2.
2.
A falecida D (ou XX), do sexo feminino, nasceu em Hong Kong, mas vivia por longo tempo em Macau, e faleceu em Macau no dia 31 de Agosto de 2013 quando era 55 anos de idade – vide doc. 3.
3.
Como a falecida D (ou Tang D) teve várias contas bancárias em Macau quando era viva, assim, para efeito de sucessão, deve determinar-se a relação matrimonial entre a falecida D (ou Tang D) e o requerido C, para qualificar os sucessores.
4.
A requerente B, tinha solicitado o documento comprovativo do estado civil da falecida D (do sexo feminino, titular do BIRPHK n.º XXX) ao Governo da RAEM, mas este respondeu que apenas há o registo de casamento de 21 de Agosto de 1981 e não o registo de divórcio – vide doc. 4.
5.
De facto, em 28 de Setembro de 2004, o divórcio entre a falecida D (ou XX) e o requerido C já foi decretado na acção de divórcio n.º FCM57/2004 pelo Tribunal do Distrito da RAEHK e produziu efeito da sentença final – vide doc. 5.
6.
Segundo a sentença, C era requerente e Tan D era contestante e o casamento contraído em Kowloon de Hong Kong foi dissolvido em 10 de Agosto de 2004 por sentença – vide doc. 5.
7.
Não obstante o nome indicado na sentença (D) não corresponde ao nome indicado na certidão de óbito (D), porque segundo a legislação de Hong Kong, a mulher pode acrescentar o apelido do marido (neste caso é “Tang”) antes do seu nome no momento da renovação do BIR, assim, o que é compreensível e deve considerar que os dois nomes eram de uma mesma pessoa – vide doc. 3 e 5.
8.
Esta sentença é decisão final e já transitou em julgado em 28 de Setembro de 2004 – preenche o disposto no art.º 1200.º n.º 1 al. b) do Código de Processo Civil.
Por outro lado,
9.
Não suscita dúvida sobre a autenticidade do documento supracitado – preenche o disposto no art.º 1200.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Civil.
10.
É competente o tribunal que proferiu a decisão, e não se verificam as outras situações previstas no art.º 1200.º n.º 1 al. c) do Código de Processo Civil.
11.
Não se verifica a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau – estando assim preenchido o disposto no art.º 1200.º n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil.
12.
Já foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes – cumprindo o disposto no art.º 1200.º n.º 1 al. e) do Código de Processo Civil.
13.
Por fim, não é manifesto que a sua confirmação conduza a um resultado incompatível com a ordem pública do ordenamento jurídico de Macau – cumprindo o disposto no art.º 1200.º n.º 1 al. f) do Código de Processo Civil.

Portanto, tendo já cumpridos todos os requisitos previstos no art.º 1200.º do Código de Processo Civil, solicitam seja profirida a decisão, confirmando a sentença de divórcio do processo n.º FCM57/2004 do Tribunal do Distrito de RAEHK da RPC, entre a mãe da requerente, D (ou XX), e o requerido, C, para que a mesma produza efeitos jurídicos na RAEM.

    2. Foi citado o requerido que não deduziu oposição.
    
3. Foram colhidos os vistos legais.


II- PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.


III- FACTOS
    Relativamente ao processo de divórcio que correu seus termos nos Tribunais de Hong Kong, resulta dos autos o seguinte:
1. “CONSERVATÓRIA DO REGISTO DE NASCIMENTOS E ÓBITOS
DE HONG KONG
Cópia Autenticada de um Registo constante do Livro do Registo de Nascimento Arquivado nos termos da Legislação do Registo de Nascimentos e Óbitos

(1)
N.º de registo
XXX
(2)
Data e local de nascimento
04 de Dezembro de 1981
PRECIOUS BLOOD HOSPITAL
(3)
Nome (caso exista)
A
(4)
Sexo
Feminino
(5)
Nome do pai
C
(6)
Apelido e nome da mãe antes de casamento
D
(7)
Profissão do pai
Comerciante
(8)
Assinatura, identidade e residência do declarante
Assinatura C
Pai; XXX
(9)
Data de registo
08 de Janeiro de 1982
(10)
Assinatura de conservador
Assinatura (XXX), conservador do Distrito
(11)
Nome (caso seja acrescentado após o registo de nascimento
********

Certifica-se por este meio que se trata de uma verdadeira cópia de um registo constante do livro do registo de nascimento de Hong Kong.

Aos 3 de Setembro de 2010
XXX
O conservador de nascimentos e de óbitos
Ass.: vide o original”

2. “CONSERVATÓRIA DO REGISTO DE NASCIMENTOS E ÓBITOS DE HONG KONG
Cópia Autenticada de um Registo constante do Livro do Registo de Nascimento Arquivado nos termos da Legislação do Registo de Nascimentos e Óbitos
(3)
Nome (caso exista)
(4)
Sexo
(5)
Nome do pai
(6)
Nome da mãe antes de casamento
(7)
Profissão do pai
(8)
Identidade, residência e assinatura do declarante
(9)
Quando regista
(10)
Assinatura do conservador
(11)
Nome acrescentado após o registo de nascimento
(12)
Residente permanente de Hong Kong (determinado/não determinado)
B
Feminino
C
D
Garçon
C, Pai, XXX
25 de Julho de 1984
XXX

Determinado

Aos 26 de Julho de 1984
XXX (Senhora)
O conservador de nascimentos e de óbitos
Ass.: vide o original

Certifica-se por este meio que se trata de uma verdadeira cópia de um registo constante do livro do registo de nascimento de Hong Kong. “

3. “Serviço de Migração do Governo da RAEHK
Sra. B:

Requerimento de Certidão de Ausência de Registo de Casamento
Senhora D (falecida), titular do BIRHK n.º XXX

  Face ao requerimento de “certidão de ausência de registo de casamento (application for certificate of absence of marriage record)” da senhora D apresentado pela senhora B em 3 de Abril de 2014, vem responder o seguinte:
  Segundo o registo de casamento da presente Conservatória, a senhora D tinha contraído casamento em Hong Kong. Portanto, não podemos emitir a certidão de ausência de registo de casamento. Para mais informações detalhadas de casamento, por favor solicite a cópia autenticada de certidão de casamento depois de ter pagas as despesas indicadas.
  Eis o registo de casamento da senhora D contraído em Hong Kong: -
  Em 21 de Agosto de 1981


O vice-conservador de casamentos
Ass.: vide o original

Aos 14 de Abril de 2014”

4.
“Fórmula 6
Certidão do Trânsito em Definitivo do Decreto Temporário (divórcio)

Região Administrativa Especial de Hong Kong
Tribunal do Distrito
Acção de divórcio n.º FCMC57/2004

C
E
D


  Segundo a sentença da presente acção de divórcio proferida em 10 de Agosto de 2004, desde que ninguém apresente motivo justificativo de impedimento de trânsito em definitivo do decreto temporário, dentro de seis semanas a contar da data da emissão do decreto temporário, o casamento entre o autor, C, e a ré, D, celebrado em 21 de Agosto de 1981 na Conservatória do Registo de Casamentos de Kowloon de Hong Kong (n.º 5382), ficou dissolvido. Dado que ninguém apresentou estes motivos neste caso, certifica-se que o decreto supracitado transitou em definitivo e absoluto em 28 de Setembro de 2004.

Data: 30 de Setembro de 2004
O Juiz Presidente do Distrito
XXX
(Ass.: vide o original)
(carimbo do Tribunal do Distrito)”
    
    
IV - FUNDAMENTOS
    
O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pelo Tribunal de Hong Kong, de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:

1. Requisitos formais necessários para a confirmação;
2. Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
3. Compatibilidade com a ordem pública;
*
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”

    Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, nº2 do CPC.
A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.

Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.

    Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
    Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão proferida em recurso pelo Tribunal de Hong Kong, Região Administrativa Especial da República Popular da China, de 26 de Fevereiro de 2008, transitada em 10 de Abril de 2008, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento -, sendo certo que é esta que deve relevar.2
    
    Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
    “O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
     Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior3, entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
    É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
     Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.
    
2. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Maca
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
     Ora, facilmente se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice, tratando-se aqui da revisão de um divórcio que veio a ser decretado pelos tribunais de Hong Kong.
    
   3. Da ordem pública.
    Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6 E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
No caso em apreço, em que se pretende confirmar a sentença que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre a ora requerente e o seu marido, ão se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública.
Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, seja por mútuo acordo, seja quando o casamento chegou a um ponto em que já não é possível continuar.
O pedido de confirmação de sentença do Exterior não deixará, pois, de ser procedente.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a sentença do Tribunal da Região Administrativa Especial de Hong Kong da República Popular da China (RAEHK), de 10 de Agosto de 2004, decisão transitada em 28 de Setembro de 2004, nos seus precisos termos em que vem certificada.
Custas pelas requerentes.
Macau, 21 de Janeiro de 2016,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
    
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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