Processo n.º 537/2015
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 21/Janeiro/2016
ASSUNTOS:
- Condução sob o efeito do álcool
- Direito de regresso da seguradora
SUMÁRIO :
Ainda que se reconheça a necessidade de prova dos pressupostos da responsabilidade do condutor e da comprovação do nexo causal entre o efeito do álcool e a produção do acidente, de acordo com os princípios da repartição do ónus da prova no processo;
Se observe que o acidente se pode produzir, independentemente do álcool, donde, em princípio, não se compreender que a responsabilidade transferida para a seguradora possa cessar só em função do factor do álcool, sob pena de um enriquecimento sem causa por banda da seguradora;
Muito embora se venha enfatizando uma perspectiva que passa por reconhecer a existência de um direito sancionatório civil;
Ainda que não se deixe de salvaguardar que as condutas dolosas ou culposas pela produção directa ou indirecta do acidente não podem ficar a coberto de uma transferência de responsabilidade padronizada em função de uma prudente, cuidada e normal conduta do segurado;
Não se deixa de reconhecer que cada caso é um caso, devendo-se privilegiar, perante uma prova difícil da causalidade entre o álcool no sangue e a produção do acidente, o recurso às regras da vida, do bom senso e da experiência comum, de forma a procurar a razão mais plausível para a conduta negligente geradora do acidente, devendo jogar aí, com particular relevância, as regras da experiência comum e as presunções legais e judiciais, tal como enunciadas nos artigos 342º e 344º, cabendo ao julgador retirar de um facto conhecido, com a grande probabilidade consabida e que lhe é inerente, o desencadear de outros factos desconhecidos, ou seja, a probabilidade muito forte de, a partir de uma expressiva taxa de alcoolemia, concluir, à míngua de outra razão aparente, no sentido de que o acidente se deu por causa daquela condução sob o efeito do álcool.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 537/2015
(Recurso Civil)
Data : 21/Janeiro/2016
Recorrente : - A Co. Limited
Recorrido : - B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. A Co. Limited, vem recorrer da douta sentença que julgou improcedente a acção que propôs contra B, exercendo pretenso direito de regresso, por o seu segurado ter agido sob influência do álcool, por ter satisfeito à lesada em acidente de viação determinado montante indemnizatório.
Para tanto, alega em síntese conclusiva:
1 - O artigo 16° do DL n.º 57/94/M de 28 de Novembro estipula que a seguradora tem direito de regresso contra o condutor se este tiver agido sob a influência do álcool;
2 - Não exige a necessidade de prova do nexo de causalidade entre a ocorrência do acidente e a condução com excesso de álcool;
3 - Não se deverá aplicar em Macau o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência proferido pelo STJ de Portugal com o n.º 6/2002, que exige para a procedência do direito de regresso da seguradora contra o condutor o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente;
4 - Na verdade, a realidade de Portugal difere substancialmente em relação a Macau, no que diz respeito ao consumo de álcool seguido de condução de veículos automóveis;
5 - Seria leonino o contrato de seguro que garantisse ao segurado a transmissão da responsabilidade civil para a seguradora em toda e qualquer circunstância independentemente do grau de ilicitude do comportamento do segurado (ou do condutor do veículo) sem que a seguradora pudesse ter qualquer contrapartida;
6 - O seguro de responsabilidade civil existe para protecção dos direi tos de terceiros, das vitimas dos acidentes de viação e não para proteger condutores delinquentes ou grosseiramente negligentes;
7 - Aliás, atendendo a que o comportamento perigoso foi do infractor, a colocar-se a situação de limitar o direi to de regresso da seguradora à prova do nexo de causalidade, sempre se dirá que o ónus desta prova deverá incumbir ao condutor do veículo e nunca à seguradora a qual é por definição uma terceira entidade totalmente alheia à conduta do infractor;
8 - Todavia, e sem conceder, mesmo que se entenda, como o fez a Meritíssima Juíza "a quo" que é necessária a existência do nexo de causalidade entre o consumo excessivo do álcool e a ocorrência do acidente de viação, sempre se dirá que existiu matéria provada suficiente para concluir pelo nexo de causalidade entre o excesso de álcool no sangue do R., condutor do veículo, e a ocorrência do acidente em discussão nos autos.
9 - É lógico e correcto considerar, atendendo ainda mais ao facto de não ter havido qualquer outra causa provada que a ingestão de álcool pelo R. acusando uma taxa de 01,01 g/1, foi a causa natural, directa e naturalística da diminuição das capacidades de percepção do espaço físico, da avaliação das distâncias, da velocidade e do desrespeito pelos sinais de trânsito, perturbando-lhe os reflexos e a coordenação motora e resultando no embate do seu veículo coo o ciclomotor de matrícula XXX.
10 - A presença de álcool no sangue do condutor em determinada quantidade e na falta de razão justificativa da manobra de que resultou o acidente leva a concluir, sem margem para dúvidas, que a alcoolémia teve influência na forma como foi efectuada essa manobra sendo, consequentemente, causa efectiva e adequada da produção do acidente, demonstrando-se, assim, o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente de viação concretamente verificado.
Nestes termos, nos melhores de Direi to e sempre com o Mui Douto suprimento de V. Excelências, deve, pelas apontadas razões, ser julgado procedente o presente recurso, condenando - e o R. a reembolsar a seguradora de todas as despesas por esta efectuadas em consequência do acidente de viação descrito nos autos, assim se fazendo a esperada e sã JUSTIÇA!
2. O réu, B, mais bem identificado nos autos, tendo sido notificado da motivação de recurso apresentada pela autora, vem, contra-alegar, dizendo, em suma:
O estado do réu, antes ou na ocorrência do acidente, não foi influenciado pelo álcool.
A 14.01.2006, pelas 4:00, o réu estava consciente quando deixou do referido restaurante.
O veículo do réu (matrícula XXX) estava estacionado mesmo à entrada do Restaurante Pak Lei Sin no Bloco 8 do Edf. Jardim Cidade, T´oi San.
O réu conduzia o carro, começando dali e percorrendo a Rua Dois da Cidade Nova de T'oi Sán, Avenida de Artur Tamagnini Barbosa e Avenida do Comendador Ho Yin, até ao cruzamento da Avenida do Comendador Ho Yin e Rua de Lei Pou Ch´ôn, só neste local é que chocou com a mota em causa (matrícula XXX).
No percurso acima referida, ou seja, do Restaurante Pak Lei Sin no sito no Bloco 8 do Edf. Jardim Cidade, T´oi San, até ao cruzamento onde ocorreu o acidente, o réu tinha passado por seis cruzamentos, seis passadeiras para peões zebra e dois sinais de prioridade, sendo uma via de alguns quilómetros.
Normalmente um bêbedo apresenta sinais de embriaguez tais como confusão mental, dificuldade no equilíbrio, fala alterada e, provavelmente, injúrias, agressão, resistência e desobediência a agentes policiais.
Segundo as regras da experiência comum, a condução em estado de embriaguez dá origem aos acidentes tais como passar para outra parte da faixa de rodagem e bater no veículo que circula em sentido contrário, bater contra objectos na via pública (postes de iluminação pública, caixotes de lixo, barreiras, sinais de trânsito), etc.
Na altura o réu conseguiu controlar bem o seu carro, não estando bêbedo nem influenciado pelo álcool.
No momento do acidente, o tempo estava bom, a estrada estava seca, a rua estava bem iluminada e havia pouco movimento.
Ao aproximar-se do cruzamento, o réu viu bem a estrada e o sinal de prioridade ali colocado.
Por sua negligência o réu não respeitou a indicação dada pelo sinal de cedência de passagem, sendo isso a causa exclusiva e directa que deu origem ao acidente.
Não existe qualquer relação entre o acidente e o consumo, ou não, do álcool por parte do ré.
Depois da colisão entre dois veículos, o réu ligou logo, por sua iniciativa, para o número 999 a fim de informar a polícia do acidente.
O réu saiu imediatamente do carro para consolar os dois lesados da mota.
Foi o réu que forneceu ao guarda policial na cena do acidente as informações sobre o local da colisão.
Os sinais de embriaguez variam de pessoa para pessoa, dependendo dos factores tais como o estado biológico, hábito de consumo de bebidas alcoólicas e de alimentação.
O “mau comportamento no exercício de condução” do réu não foi originado pela taxa excessiva de álcool no sangue dele, antes pelo contrário, foi por excesso de confiança no exercício de condução.
Não existe nexo de causalidade entre o acidente e o consumo, ou não, do álcool por parte do réu.
Se a autora queira exercer o direito de regresso previsto no artº 16º, al. c) do DL nº 57/94/M, de 28 de Novembro, tem que comprovar o nexo de causalidade entre a “condução sob o efeito do álcool” e a “produção do acidente.
Mesmo que o condutor tenha bebido álcool, a ocorrência de um acidente de viação pode ser independente, completa ou parcialmente, do álcool. Portanto, para determinar qual a responsabilidade a ser transferida à seguradora deve confirmar-se a causa do acidente.
Analisado com cuidado o artº 16º, al. c) do DL nº 57/94/M, verifica-se que o legislador escreveu assim: “tiver agido sob a influência de álcool”.
Isso quer dizer que o exercício do direito de regresso pressupõe que o condutor do veículo segurado tenha praticado, sob a influência de álcool, um ou mais actos que provocaram a ocorrência do acidente.
Ademais, o segurador deve especificar o nexo de causalidade entre tais actos e o acidente, não podendo basear-se tão-somente na taxa excessiva de álcool observado no sangue do condutor que foi detectada após o acidente.
Senão o legislador poderia dizer “aquele que tenha conduzido” em vez de dizer “aquele que tenha agido”.
Pelo exposto, não se pode interpretar simplesmente que “o segurador tem o direito de regresso completo ou parcial sobre as indemnizações já pagas desde que consiga comprovar que a taxa de álcool observada no sangue do condutor ultrapasse o limite máximo permitido por lei”.
Segundo, conforme o princípio da igualdade de contrato, a autora celebrou com o réu um contrato de seguro sobre veículos, caso o réu pague pontualmente os prémios, a culpa e o risco do réu serão transferidos à autora, por outras palavras, a autora tem a responsabilidade de pagar as indemnizações.
Trata-se da violação dos princípios do direito civil (autonomia privada, prestação recíproca e liberdade de contrato) caso exija ao réu a restituição do montante das indemnizações e despesas pago pela autora sem ter nenhuma causa justificativa.
O acidente aconteceu em 14.01.2006, pelo que é aplicável a lei antiga, ou seja, o Código da Estrada, não a Lei do Trânsito Rodoviário que entrou em vigor em 01.10.2007.
Deste modo, não se aplica o artº 96º, nº 1 da Lei do Trânsito Rodoviário mas sim o artº 68º, nº 3 do Código da Estrada – Quem conduzir com uma taxa de alcoolémia igual ou superior a 0,8 e inferior a 1,5 gramas por litro de sangue é punido com multa de 1 500,00 a 7 500,00 patacas.
Diz o artº 20º (sic), nº 5 do Código da Estrada, “considera-se sob influência do álcool o condutor que apresentar taxa de alcoolémia igual ou superior a 0,8 gramas por litro de sangue.”
O artigo anteriormente é uma presunção legal. Ao abrigo do artº 343º do Código Civil, tal presunção legal pode ser ilidida mediante prova em contrário.
Tal como se disse anteriormente, com base nos factos descritos, impõe-se concluir que o réu não conduziu sob influência do álcool mesmo que tivesse bebido álcool antes da condução.
A ocorrência do acidente, de que resultou no pagamento de indemnizações por parte da autora aos lesados, foi exclusivamente causada pelo facto de que “o arguido (o réu), ao sair daquela rua, sabia estar obrigado a ceder a passagem a qualquer veículo que transitasse pela Avenida do Conselheiro Borja, mas avançou imprudentemente ao cruzamento sem ver se havia veículos a circular pela avenida”.
A autora respeitou o ónus de contraprova, tendo apresentado ao Tribunal na pendência da causa provas documental e testemunhas.
Das provas produzidas pelo réu resulta que não existe nexo de causalidade entre o acidente e a condução em estado de embriaguez.
O acidente ocorreu porquanto “o arguido (o réu), ao sair daquela rua, sabia estar obrigado a ceder a passagem a qualquer veículo que transitasse pela Avenida do Conselheiro Borja, mas avançou imprudentemente ao cruzamento sem ver se havia veículos a circular pela avenida”.
Face ao exposto, deve ser julgado improcedente o recurso da autora e ser mantida a decisão a quo.
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Da Matéria de Facto Assente:
- A A. exerce devidamente autorizada a indústria de seguros (alínea A) dos factos assentes).
- No exercício da sua actividade, a A. celebrou com C, um contrato de seguro do ramo automóvel, referente ao veículo automóvel, de marca MAZDA 121 DEMIO, de matrícula MG-XXXX, através do qual este, transferiu para a A. a responsabilidade civil perante terceiros emergente da circulação daquele veículo até ao limite de MOP$1.000.000,00, contrato que foi titulado pela apólice n.º 00036153. (fls. 10 dos autos) (alínea B) dos factos assentes).
- No dia 14 de Janeiro de 2006, pelas 4h10m da manhã, o R., conduzia o veículo segurado pela Avenida Comendador Ho Yin, em direcção à Rua Norte do Patane (alínea C) dos factos assentes).
- O fluxo do trânsito era normal para aquela hora da madrugada, estando a estrada dotada de luminosidade suficiente, encontrando-se o piso em boas condições de circulação (alínea D) dos factos assentes).
- O R. conduzia sob a influência do álcool, que após exame correspondeu a uma taxa alcoolemia de 1,01 g/1 (alínea E) dos factos assentes).
- O R. desrespeitou os sinais de cedência de passagem expressos no pavimento (marcas reguladoras) e de sinalização vertical, que existem no cruzamento da Avenida Comendador Ho Yin com a Rua Norte do Patane e que regulam o trânsito de quem circula por aquele lado da via (alínea F) dos factos assentes).
- Avançando, sem prestar atenção aos veículos que circulavam em sentido contrario e que detinham o direito de passagem (alínea G) dos factos assentes).
- O comportamento do R. levou a que embatesse no ciclomotor de matrícula CM-XXX, que circulava no sentido Avenida Conselheiro Borja em direcção à Avenida Almirante Lacerda, e que beneficiava da cedência de passagem que lhe era concedida pela sinalização de trânsito (alínea H) dos factos assentes).
- Na altura do embate, o ciclomotor, era conduzido por D, que transportava consigo E (alínea I) dos factos assentes).
- Provocando à condutora D, entre outros ferimentos que puseram em risco a sua vida, o rompimento do baço, fracturas nas costelas direitas e da clavícula que para sempre condicionaram a sua capacidade motora (alínea J) dos factos assentes).
- Por se ter transferido para a A. a responsabilidade civil perante terceiros, emergentes da circulação daquele veículo até ao limite de MOP$1.000.000,00, foi a A. condenada por sentença proferida no âmbito do processo n.º CR4-06-0121-PCC, já transitada em julgado, a pagar todos os prejuízos que a ofendida sofreu em consequência do mencionado sinistro (alínea K) dos factos assentes).
- Prejuízos que ascenderam a MOP$434.427,00, correspondendo MOP$400.000,00 a danos não patrimoniais e MOP$34.427,00 a danos patrimoniais (alínea L) dos factos assentes).
- Para além do montante a que foi condenada a pagar à ofendida D, a A. pagou também ao Tribunal a título de custas o montante de MOP$3.222,00 (alínea M) dos factos assentes).
- A A. despendeu com o sinistro acima descrito as quantias referidas nas alíneas L. e M. (alínea N) dos factos assentes).
*
Da Base Instrutória:
Nenhum.”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa pela análise de uma questão, fácil de equacionar, mas de complexa solução, tendo suscitado na ordem interna da RAEM e nos ordenamentos que nos são próximos, como é o caso de Portugal, rios de tinta, soluções contraditórias e conduzido até, no caso daquela ordem jurídica do Exterior, levado até a fixação de jurisprudência que não se mostra suficientemente firme como daremos conta em seu devido tempo.
A questão é a seguinte:
Tem a Seguradora direito de regresso do condutor do veículo que conduzia sob o efeito do álcool, independentemente de se provar que o acidente se deu por esse motivo?
2. A solução da douta sentença recorrida alinha com a tese do acórdão uniformizador português do STJ, n.º 6/2002, publicado no DR, de 18/7/2002, por entender que os factos e direito analisados naquele aresto eram muito semelhantes aos que se debatem nos presentes autos - com efeito, trata-se também de um acidente viação em que o veículo do condutor causador do acidente, em quem foi detectado uma taxa de alcoolemia de 1,1g por litro de sangue, violou regras estradais vindo a embater num outro veículo em circulação no local do acidente e, à data, vigorava uma norma idêntica à prevista no artigo 16°, c), do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro (artigo 19°, c), do Decreto-Lei n.º 522/85) - destacando aí a Mma Juíza o excerto seguinte:
“Dada a similitude acima referida e a profundidade com que se debruçou sobre a questão sub judice, julga-se de analisar detalhadamente esse aresto e daí nos dilucidarmos sobre o problema que nos ocupa agora.
Conforme o referido Acórdão, são basicamente três as posições tomadas: 1. o direito de regresso é um efeito automático da condução com determinada taxa de alcoolemia, pois funda-se no desvalor da acção do condutor; 2. o direito de regresso pressupõe o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e o acidente cuja prova incumbe ao Autor; 3. o direito de regresso pressupõe o nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e o acidente presumindo-se, no entanto, tal relação a favor do Autor.
O Acórdão em apreço adoptou o 2° entendimento com argumentos que interessam, nessa sede, transcrever: "Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a produção do acidente (artigo 342.º do Código Civil), como se decidiu nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I, p. 39, e de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 494, p. 325. Os elementos que constituem o fundamento do direito de regresso são factos constitutivos do direito que ao autor cabe demonstrar."
Isso no que diz respeito às regras gerais da repartição do ónus da prova.
Já quanto à eventual inversão do ónus da prova, o mesmo aresto fez a seguinte análise: "A inversão do ónus da prova, obrigando o segurado a provar que não teve culpa, apresenta-se como aquela que de jure constituendo se poderia, numa primeira aproximação, considerar mais justa na medida em que ficaria ao condutor que circula naquelas condições, ou seja, em situações de mais facilmente provocar acidentes, o ónus de provar que, apesar de circular em condições irregulares, não contribuiu para o acidente. E, sacrificada a seguradora à função social de reparar os danos, estaria em condições bem mais fáceis para responsabilizar o condutor, tanto mais que a condução naquelas circunstâncias corresponde a um agravamento do risco no contrato. Uma seguradora não aceitaria, em geral, assumir o risco nas condições previstas na alínea c) do artigo 19.º Todavia, pressentimos a dificuldade do legislador em enveredar por tal caminho. Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente." (sublinhado nosso).
Quanto à letra e ao espírito do artigo 19° do Decreto-Lei n° 522/85, o Acórdão em análise pronunciou-se neste sentido: "Em todo o caso seria sempre o legislador a tomar a opção que entendesse mais adequada. Posto isto, há que concluir que o direito de regresso está limitado no artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85 a situações restritas e que vêm aí mencionadas, não funcionando como sanção civil reparadora contra todo e qualquer agente que provoque o dano. Daí que só possa existir quando se verificarem as circunstâncias aí especificadas. No caso em apreço exige-se que haja condução sob influência do álcool a ditar o comportamento do condutor. Não é suficiente que o condutor estivesse sob a influência do álcool, sendo necessário que esse facto seja a causa ou uma das causas do acidente (v. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S), voz. V-I, p. 39, e de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I, p. 59). A justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade pelo autor entre a condução sob a influência do álcool e o acidente resulta dos próprios termos da alínea c) do artigo 19.º o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro. É necessário que o demandado aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduzisse etilizado nos termos previstos nas normas penais ou contra-ordenacionais. O grau de alcoolemia podia estar acima dos limites legais, o que seria fundamento para a condenação em sede própria no regime penal como actividade perigosa. Mas uma tal condução pode não contribuir para o acidente. A expressão usada na lei, agido sob a influência do álcool, é uma exigência relativa à actuação do condutor que não tem de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Diz a lei agir sob a influência do álcool e não estar sob a influência do álcool (circunstância que vem ressaltada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 325) .... E seria, ao menos, arriscado cuidar em fazer a equivalência automática de que o direito de regresso existia sempre que o legislador, por razões ligadas à circulação rodoviária, viesse fazer qualquer alteração àquilo que considera influência de álcool susceptível de responsabilizar automaticamente o condutor segundo tais critérios. Estamos assim com a corrente jurisprudência (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, e de 19 de Julho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376) que entende que o legislador se quisesse dispensar a prova do nexo de causalidade diria simplesmente que o direito de regresso existia se o condutor conduzisse com álcool." (sublinhado nosso).
A clareza dos fundamentos acima transcritos excluem qualquer possibilidade de ligação automática entre a verificação de certa taxa de alcoolemia e a produção de determinado acidente ou pretensão de relação de causalidade natural entre estes mesmos factos. Com efeito, da letra do artigo 19°, c), do Decreto-Lei n° 522/85, vê-se que o que está em causa é o efeito que determinada taxa de alcoolemia pode ter na produção de acidentes e isto, obviamente, por intermédio do condutor que previamente ingeriu substâncias alcoólicas. Ora, a exposição feita no Acórdão é cristalina: "Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente". É precisamente por força disso que entendeu o Acórdão em análise que nada no Decreto-Lei n° 522/85 aponta para a dispensa da prova do nexo de causalidade ou a inversão do ónus da prova que, segundo o regime geral delineado no CC, cabe à seguradora.
Seguindo de perto o mesmo raciocínio para a apreciação do presente caso a que se aplicam normas de conteúdo idêntico, é manifesto que os factos assentes são demasiados escassos para que os pedidos da Autora possam proceder. De facto, nada ficou provado acerca do efeito do álcool sobre a verificação do acidente. O mero facto de o Réu conduzir sob o efeito de bebidas alcoólicas, por si, não significa que foi o álcool que levou à verificação do acidente. Para o efeito, é indispensável que haja outros factos que apontam, por exemplo, que o acidente se deu porque o álcool fez com que o Réu embatesse na vítima. Em suma, que o álcool foi a causa do acidente.
Pelo que, é de rejeitar a tese de que a taxa de alcoolemia detectada é o suficiente para concluir que o Réu agiu sob a influência do álcool, nos termos exigidos pelo artigo 16°, c), do Decreto-Lei n.º 57/94/M, de 28 de Novembro e de que o Réu deve restituir à Autora o que esta pagou à lesada.”
3. A questão mereceu já apreciação da nossa parte, no Proc. n.º 372/2011, de: 23/Fevereiro/2012, a tomada de posição que se sumariou nos seguintes termos:
“1. Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a produção do acidente 2. Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente. 3. O nexo causal entre a quantidade de álcool no sangue e a produção do resultado, o acidente, deve-se extrair da articulação e conjugação da globalidade dos factos, cabendo às instâncias - aqui 1ª e 2ª - concluir a partir da factualidade apurada se o acidente se produziu porque o condutor estava embriagado ou por uma qualquer outra razão. 4. A fixação de tal relação causal não assenta em prova diabólica, porque julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados o que passou pela frente do juiz. A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou. (…)”
No Processo nº 325/2011, de 13/Fevereiro/2014, desenvolvemos a seguinte argumentação:
“ (…)
Posto isto, mantendo-se o mesmo entendimento acima explicitado, na nossa análise vamos recorrer a dois acórdãos mui recentes da Jurisprudência Comparada e se nos afiguram ser muito elucidativos, pois que ainda que tenham chegado a resultados diferentes, não deixam de enunciar uma regra que se mostra fulcral, qual seja a de que aquele nexo causal a que alude a norma, entre a quantidade de álcool no sangue e a produção do resultado, o acidente, se deve extrair da articulação e conjugação da globalidade dos factos, cabendo às instâncias - aqui 1ª e 2ª - concluir a partir da factualidade apurada se o acidente se produziu porque o condutor estava embriagado ou por uma qualquer outra razão.
No 1º acórdão do STJ, processo n.º 129/08.7TBPL.G1.S1, de 6/7/2011, consigna-se a norma em presença deve ser interpretada de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento.
Esta relação causal, na sua vertente naturalística, constitui ainda matéria de facto, a fixar pelas instâncias.
A fixação de tal relação causal não assenta em prova diabólica, porque julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados o que passou pela frente do juiz.
A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou.
No julgamento da matéria de facto, hão-de, pois, as instâncias tomar posição.
E de uma forma lapidar aí se diz:
«E nem nos parece que assim se está a remeter o direito de regresso a um regime de prova diabólica, com base na ideia de que, por via de regra, o condutor sóbrio também pode ter acidentes com o “desenho” característico do estado de embriaguês e, consequentemente o juiz nunca, ou quase nunca, terá elementos para “imputar o que aconteceu ao álcool”.
Julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados ou não provados o que passou pela frente do juiz. A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou (Cfr-se, a este propósito, A. Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 435). Muito do que se dá ou pode dar como provado não foi objecto de produção de prova que imediatamente o revele. Basta pensar nos factos do foro íntimo, nos factos hipotéticos, nos factos de percepção extremamente rara e aí por diante.
Para além deste inerente ponderar, sempre mais ou menos intenso, estão ao alcance do juiz de facto as presunções naturais, que podem ser extraídas nos termos do artigo 351.º do Código Civil, desde que o respectivo conteúdo não haja sido recusado em resposta negativa a matéria perguntada na BI (...)
A este Tribunal resta, pois, a apreciação em abstracto sobre se a relação de causalidade nos casos em que for estabelecida é adequada a produzir o evento, como o produziu.
Nos casos em que não for naturalisticamente estabelecida ficam, por natureza, vazios de sentido tais poderes.
(...)»
Caso diferente e solução contrária – também não interessando aqui a solução encontrada, esta já, pró-seguradora - foi então o acidente tratado no 2º acórdão e que passamos a referir. Trata-se do acórdão do STJ, processo n.º 380/08.0YXLSB.C1.S1, de 7/6/2011.
O importante é o princípio que aí se estabelece e que na sua formulação não se afasta do enunciado no caso acima visto.
O importante é reter que se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo. Trata-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º CC).
O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente deve aferir-se da conjugação de diversos elementos, designadamente a prova testemunhal produzida, a própria dinâmica do acidente, o grau de alcoolemia registado, com os elementos científicos irrefutáveis, as regras da experiência, as normas legais aplicáveis e a teleologia do legislador subjacente às normas.
Na verdade, aí, nesse acórdão, não se deixou de consignar:
«Como é sabido, “perante a orientação jurisprudencial que prevaleceu no Acórdão uniformizador 6/02, o direito de regresso atribuído à seguradora no confronto do beneficiário do seguro obrigatório de responsabilidade civil que tenha agido sob a influência do álcool – obrigando-a a garantir o efectivo pagamento das indemnizações devidas aos lesados, como reflexo da função de protecção social do seguro obrigatório, mas facultando-lhe, de seguida, a repercussão do sacrifício patrimonial que teve de suportar sobre o beneficiário do seguro a quem seja de imputar a lesão – não é um efeito automático da violação objectiva das normas penais ou contra – ordenacionais que dispõem sobre as condições psicológicas e de domínio do comportamento de veículos automóveis, (proibindo-a sempre que se ultrapasse determinado limiar de alcoolemia), nem assenta numa presunção legal de causalidade do grau de alcoolemia apurado quanto ao condutor relativamente à eclosão do acidente.”1
E, assim sendo, da doutrina que acabou por ter sido adoptada nesse acórdão, pode dizer-se que hoje é dado como assente (no âmbito daquele DL 522/85) que, para o alegado direito de regresso da seguradora que satisfez a indemnização seja reconhecido, tem a mesma, para além de provar a culpa do condutor na produção do evento danoso, ainda de alegar e provar factos de onde resulte o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e o evento dele resultante.»
Isto é, recai efectivamente sobre a seguradora o ónus da prova quanto aos factos constitutivos do direito de regresso que exercita, demonstrando que o grau de alcoolemia do condutor funcionou como causa real, efectiva e adequada ao desencadear do acidente.
O nexo de causalidade entre o álcool e o acidente afere-se da conjugação de diversos elementos, designadamente a prova testemunhal produzida, a própria dinâmica do acidente, o grau de alcoolemia registado, com os elementos científicos irrefutáveis, as regras da experiência, as normas legais aplicáveis e a teleologia do legislador subjacente às normas.
Ora é do conhecimento comum que o álcool influencia os comportamentos, actuando sobre o cérebro, mesmo que os seus efeitos não sejam visíveis; todavia, quando a concentração do álcool no sangue atinge os 0,5 g/l já são perceptíveis.
Não obstante, os dados científicos irrefutáveis quanto à interferência do álcool nas capacidades e reflexos necessários à condução do automóvel, o Tribunal dispôs de meios de prova concretos que lhe permitiram dar por assente que o réu, em virtude do álcool, tinha a respectiva capacidade de condução comprometida, sendo determinante a interferência do álcool na condução ilícita do réu e, em consequência, no acidente dos autos.
Mas se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo. 3 Trata-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º CC).
Como se considera no citado acórdão,, “é inteiramente lícito às instâncias servirem-se nesta sede de presunções judiciais ou naturais, nelas fundando as suas conclusões acerca das circunstâncias que conduziram ao acidente em regras ou máximas de experiência, por essa via completando, articulando e interligando o que directamente decorre da livre valoração das provas «atomisticamente» produzidas em audiência”. O único limite que naturalmente vigora nesta matéria e que nada tem a ver com a situação processual ora em análise é “que decorre de a Relação não poder ultrapassar a falta de prova do nexo de causalidade, recorrendo a presunções judiciais, tornando assim contraditório o julgamento da matéria de facto, que não alterou”.
Na verdade, o que o referido acórdão uniformizador impõe é a realização de uma avaliação concreta, casuística e prudencial de todas as circunstâncias envolventes do acidente, de modo a determinar e em que medida é que o concreto estado de alcoolemia apurado quanto ao condutor pode ter sido determinante das infracções estradais e erros ou falhas na condução cometidos e que decisivamente desencadearam ou contribuíram para o acidente.
Ora foi manifestamente isto que as instâncias realizaram no caso em apreço, tendo tomado em conta todo o circunstancialismo concreto envolvente do embate verificado, ponderando adequadamente a influência que o relevante grau de alcoolemia demonstrado envolvia na capacidade de controle e domínio da viatura, concluindo, em termos que consideramos perfeitamente razoáveis e adequados, não apenas que tal grau de alcoolemia, em abstracto, era adequado para ditar um afrouxamento das suas capacidades, provocando-lhe desatenção e falta de reacção na condução mas também que, em concreto, tal grau de alcoolemia influenciou o comportamento do condutor do automóvel com a matrícula 00-00-00, reduzindo-lhe as capacidades de percepção do espaço físico e da avaliação das distâncias e lhe causou lentidão na capacidade de reacção e perturbação dos reflexos, sendo por causa do estado de alcoolemia em que se encontrava que perdeu o controle da trajectória do referido veículo, quando o pôs em andamento, guinando para a berma do lado direito da faixa de rodagem e de seguida invadindo a faixa onde seguia o veículo «SUZUKY», nela se atravessando, impedindo assim qualquer manobra que evitasse o embate.
Tal matéria de facto apurada significa que, no litígio subjacente aos presentes autos, foi plenamente demonstrada uma específica e concreta ligação causal entre o estado de alcoolemia do condutor e as deficiências e erros de condução que despoletaram o acidente, ou seja, a taxa de álcool no sangue influenciou, efectiva e decisivamente, o tipo de condução praticado, funcionando, deste modo, como causa efectiva e naturalística do acidente em discussão.
Deste modo, perante a matéria de facto apurada pelas instâncias quanto ao nexo de causalidade «naturalístico» entre o estado de alcoolemia do condutor do veículo UT e as falhas de condução por ele cometidas e que despoletaram o acidente, está cumprido o ónus da prova que incidia sobre a seguradora, relativamente aos pressupostos condicionadores do exercício do direito de regresso, com base na citada norma legal, improcedendo, nesta sede, a argumentação deduzida pelo recorrente.»
Em sentido contrário, nesta instância, vd. o Proc. nº 346/2011, de 29/NOV/2012, aí se tendo decidido, com um voto de vencido, que “Face ao disposto no artº 16º-c) do D. L. nº 57/94/M, quando o condutor tiver agido sob influência do álcool, o direito de regresso da seguradora não está limitado aos danos que a influência de álcool tenha provocado ou agravado.
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O V.º TUI, no Processo n.º 52/2011, de 9 de Novembro de 2011, em caso de abandono de sinistrados, mas que não deixa de ter alguma relevância para o caso “subjudice”, julgou em termos que vieram também a ser adoptados em recente acórdão do STJ, como abaixo daremos conta.
No acórdão do TUI, salientou-se:
“(…)
Em face de normas semelhantes às acabadas de citar (o artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro), a jurisprudência portuguesa confrontou-se com a questão que se debate nos autos. Uma corrente entendeu que o direito de regresso da seguradora contra o condutor que abandona sinistrado tem sempre lugar. Uma outra propendeu a que tal direito de regresso só se limita aos danos que se prove tenham resultado do abandono, exigindo à seguradora a prova desse nexo de causalidade entre o abandono do lesado e os danos. Esta última tese parece, actualmente, ser a prevalecente.
Questão semelhante tem sido debatida a propósito do direito de regresso da seguradora pelos danos provocados por condutor sob o efeito do álcool que, aliás, tanto no nosso Direito, como no português, decorre da mesma norma da que regula as consequências do abandono de sinistrado [alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M e alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, respectivamente]. Uma tese defende o direito de regresso irrestrito da seguradora. Outra entende que esta só tem direito de regresso quanto aos danos que se prove terem resultado da condução sob o efeito do álcool.
Vejamos como se coloca e resolve a questão à luz do Direito de Macau.
3. O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. O direito de regresso da seguradora
Como explica MARIA MANUELA CHICHORRO2, citando, em parte, JOSÉ VASQUES3, “O contrato de seguro de responsabilidade civil assenta em geral em dois pilares fundamentais: a distribuição do risco e a imputação de responsabilidade a quem tira proveito de uma actividade, sintetizada na expressão ubi commoda, ibi incommoda. No caso do seguro automóvel, essa actividade corresponde à utilização de veículos terrestres a motor para obtenção de vantagens, sendo considerada uma actividade perigosa pelo meio que utiliza – veículos a motor – e exigindo, por isso, um especial regime.
Paralelamente evidenciam-se a função social e económica do contrato de seguro e, assim, do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. A desproporção entre o dano sofrido pelo lesado e a capacidade indemnizatória do civilmente responsável cria a necessidade de contratar o seguro. Através dele, redistribui-se o valor constituído pelos prémios de seguros de todas as apólices, canalizando-o para os lesados, vítimas de acidentes de viação. A indemnização do lesado já não se realiza, assim, em nome do princípio da responsabilidade individual, mas em nome do risco social que a circulação automóvel constitui, para o qual o lesante paga conjuntamente com todos os outros automobilistas. A essencialidade da culpa (individual) é substituída pelo imperativo (social) de reparação dos danos. Nisso consiste a função social do contrato de seguro, à qual subjazem princípios de interesse público”.
Por isso mesmo, só em casos muito especiais a lei veio admitir que a seguradora pudesse exercer um direito de regresso após pagamento de indemnização ao lesado.
A utilização da expressão “apenas”, constante do proémio do artigo 16.º, mostra claramente que a enumeração das situações em que se permite o direito de regresso à seguradora, constantes do artigo 16.º são de natureza taxativa4. São estas apenas e não outras.
Na alínea a) do artigo 16.º prevê-se o direito de regresso contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente. A conduta tem de ser intencional, ainda que não criminosa, como no caso do proprietário que danifica o veículo próprio.
Por força da alínea b) a seguradora pode pedir a indemnização paga aos lesados, aos autores e cúmplices de roubo, furto ou furto de uso do veículo causador do acidente.
Na alínea c) está consagrado o direito de regresso da seguradora em três situações:
- Contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir;
- Contra o condutor que tiver agido sob a influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;
- Contra o condutor que haja abandonado o sinistrado.
Na alínea d) estatui-se o direito de regresso da seguradora contra o responsável civil por danos causados a terceiros em virtude de queda de carga ocorrida durante o seu transporte e que tenha sido devida a deficiência de acondicionamento. Portanto, sanciona-se a mera negligência no acondicionamento da carga que tenha caído durante o transporte.
Na alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo.
4. Direito de regresso da seguradora pelos danos provocados por condutor que abandona sinistrado
Como é sabido, na interpretação da lei, o intérprete tem de partir da sua letra, embora sem se cingir a ela, sendo que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 8.º, n. os 1 e 2 do Código Civil).
A letra da alínea c) do artigo 16.º aponta decisivamente para a solução segundo a qual o abandono de sinistrado conduz ao direito de regresso contra o condutor, independentemente de os danos terem ou não sido especificamente causados ou agravados pelo crime de abandono. Claro que o condutor tem de ter sido o responsável pelo acidente e, por via disso, a seguradora teve de satisfazer indemnização ao lesado. Mas da letra da lei não resulta que o direito de regresso da seguradora só se pode efectivar se a seguradora provar que os danos foram devidos ao abandono e não ao acidente.
Diga-se, aliás, que a tese do ora recorrente não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Ora, se a lei pretendesse tal fim - isto é, direito de regresso condicionado à prova de que os danos resultaram do abandono - certamente que o teria prescrito, como fez, de resto na alínea e) do preceito em causa. Na verdade, na situação prevista nesta alínea e) o direito de regresso é exercido contra o responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica, que não tenha cumprido essa obrigação, mas este pode provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo, caso em que o direito de regresso não se efectiva. Mas tal mecanismo não se prevê na alínea c), pelo que se tem de concluir que nesta situação o direito de regresso tem lugar independentemente da prova do nexo de causalidade entre o abandono e os danos.
Diga-se, ainda que tal prova – como também noutra das situações previstas na alínea c) (prova de que os danos foram especificamente devidos à condução sob o efeito álcool) seria impossível ou quase, diabólica, já foi designada.
Efectivamente, como é possível provar que os danos no lesado foram devidos ao seu abandono ou devidos ao estado alcoólico do condutor do veículo e não ao acidente em si?
A ser assim, teríamos de concluir que a norma em causa seria uma norma sem aplicação ou de quase impossível aplicação, o que constitui uma indicação de que não estaríamos no melhor caminho interpretativo, visto que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil ).
Por outro lado, por alguma razão, os que defendem a tese da necessidade do nexo de causalidade entre os danos e o abandono do sinistrado ou da condução sob o efeito álcool (equiparando sempre as duas situações), omitem a terceira situação prevista na alínea c): o direito de regresso da seguradora contra o condutor não legalmente habilitado para conduzir. Então e neste caso também seria necessário a prova da causalidade entre os danos e a falta de habilitação para conduzir? Seria uma solução absurda.
O que, manifestamente, se pretendeu na alínea c) foi, por razões preventivas e também repressivas, não beneficiar da protecção do seguro quem não tiver licença para conduzir, o condutor que ultrapassar os limites de álcool no sangue ou estiver intoxicado por outras substâncias e quem cometa o crime de abandono de sinistrado (voluntário, pois é este o caso dos autos, pelo que apenas cabe examinar esta situação), desde que sobre o condutor recaia o dever de indemnizar, sendo irrelevante que os danos sejam especificamente devidos às situações descritas.
É que a responsabilidade civil, além da função reparadora, tem também uma função preventiva e punitiva, não sendo a pena privada estranha ao nosso ordenamento jurídico civil, como por exemplo, no regime do sinal (artigos 446.º e 820.º do Código Civil, tal como os restantes artigos que se citarão neste parágrafo), na sanção pecuniária compulsória (artigo 333.º), passando pelo regime de revogação das doações por ingratidão do donatário (artigo 964.º), na fixação de sanções pecuniárias pela assembleia de condóminos (artigo 1341.º), na incapacidade sucessória por indignidade (artigo 1874.º) , na deserdação (artigo 2003.º).
O que se pretendeu, foi, desta maneira, desincentivar a condução por quem não estiver legalmente habilitado para conduzir, a condução sob influência de álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos e o abandono de sinistrados.
Por outro lado, o artigo 517.° do Código Civil não dispõe aquilo que o recorrente alega, que parece antes estar a referir-se ao artigo 490.º do Código Civil, mas também tal como o anterior, completamente estranho ao problema que está em causa.
Conclui-se, assim, que o direito de regresso da seguradora, que satisfez indemnização ao lesado em acidente de viação, contra o condutor, previsto na alínea c) do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 57/94/M, quando haja abandono voluntário de sinistrado, não está limitado aos danos que o abandono tenha provocado ou agravado.”
6. Atentemos no que se diz em recente acórdão uniformizador do STJ Ac. STJ, de 2/7/2015, Proc. n.º 620/12.0T2AND.C1.S1:
“A grande questão que se tem colocado a propósito deste tipo de situações pode traduzir-se na seguinte interrogação: deverá funcionar como facto constitutivo do direito de regresso da seguradora o mero perigo presumido ou abstracto, resultante de uma verificação objectiva das referidas circunstâncias potenciadoras do agravamento dos riscos de circulação? ou , bem pelo contrário, a titularidade do referido direito de regresso comportará antes a demonstração de uma causalidade concreta entre a circunstância (potenciadora, em abstracto, de agravamento do risco) e o efectivo despoletar do acidente – cabendo o ónus da prova de tal nexo causal ou à própria seguradora que invoca o direito de regresso ou, pelo menos, assistindo ao demandado a possibilidade de provar que, no caso, tal nexo causal se não verificou?
Saliente-se que a resposta a esta questão não pode ser dada, perante o conteúdo das disposições legais em vigor, de modo absolutamente genérico e inequívoco; assim:
A)- nalguns casos, é a própria letra da lei que aponta claramente para a necessidade de demonstração ( pela seguradora) ou para a possibilidade de ilisão (pelo segurado) da existência do referido nexo de causalidade concreta: é o que acontece (no diploma legal ora em análise) com as circunstâncias (presumivelmente agravantes, no plano abstracto, dos riscos de circulação) referentes ao próprio veículo, estatuindo-se que o direito de regresso só abrange os danos de terceiros que decorram, precisa e efectivamente, da queda da carga deficientemente acondicionada ( al.d); ou que (al. f) sejam imputáveis a deficiências provenientes do mau funcionamento do veículo não apresentado a inspecção (e que teriam plausivelmente sido verificadas e obrigatoriamente corrigidas se o proprietário o tivesse submetido tempestivamente a inspecção obrigatória),– facultando-se-lhe, neste caso, a prova da irrelevância da omissão da inspecção periódica na concreta dinâmica do acidente;
B)- noutras situações, a letra da lei parece apontar ou indiciar que possa bastar, como facto constitutivo do direito de regresso da seguradora, a verificação objectiva de certa circunstância potenciadora de um agravamento abstracto e presumido do risco de circulação, nomeadamente atinente às condições do condutor, como sucede com a falta de título habilitante para conduzir ( não se referindo aqui, ao menos de forma expressa, a necessidade de demonstração que o acidente se deveu concretamente a imperícia do condutor motivada pela falta de carta habilitante, nem se prevendo explicitamente a possibilidade de o condutor /demandado ilidir a presunção de que quem está desprovido de título legítimo para conduzir não tem as indispensáveis habilitações técnicas, provando que o acidente nada teve a ver com a falta de título habilitante para o exercício da condução);
C)- finalmente, há casos em que a lei se serve de expressão ambígua ou equívoca, ao definir os pressupostos do direito de regresso da seguradora através de conceitos a que podem perfeitamente, mesmo numa interpretação enunciativa, atribuir-se sentidos diferentes: é o que sucede tipicamente com a previsão do efeito que, no art. 19º, se atribuía à condução sob influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos ( al. c), segunda parte), consentindo perfeitamente a expressão utilizada (condução sob influência do álcool ou de estupefacientes) dúvidas fundadas sobre o sentido literal da norma: agir sob influência do álcool é apresentar, no momento do acidente, taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida? Ou, pelo contrário, deverá antes interpretar-se tal expressão como significando que só age sob influência do álcool quem praticou o erro de condução que despoletou o acidente em consequência da quebra ou diminuição das faculdades e capacidades pessoais normalmente inerentes à taxa de alcoolemia verificada?
Como é sabido, tais dúvidas, inteiramente consentidas pelo próprio elemento literal da norma, foram solucionadas pelo STJ através do acórdão uniformizador nº 6/2002, em que se consagrou o entendimento que tal expressão ambígua devia ser interpretada como exigindo a prova de um concreto nexo causal entre o estado subjectivo do agente influenciado pelo álcool e a dinâmica do acidente e o resultado danoso por ele provocado, estando tal ónus a cargo da seguradora que exerce o direito de regresso: a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.;
D)- resta, por último, notar que a evolução legislativa – na passagem do DL 522/85 para a actual lei do seguro obrigatório automóvel – parece fazer-se no sentido de (ao menos na literalidade dos preceitos) acentuar a vertente de objectividade no funcionamento dos pressupostos do direito de regresso atribuído à seguradora: assim, desde logo, no que respeita à condução sob influência do álcool e estupefacientes, o art. 27º al. c) do DL 291/07 prescreve agora que a seguradora tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
Daqui resultou o recente aparecimento de jurisprudência que – relativamente a acidentes a que seja aplicável este novo diploma legal – passou a entender que os pressupostos do direito de regresso não implicam já a demonstração de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia do condutor e a dinâmica do acidente; veja-se, por exemplo, o recente Ac. de 09-10-2014, proferido pelo STJ no P. 582/11.1TBSTB.E1.S1, em que se decidiu que:
Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.
6.3. Finalmente, a terceira situação de facto constitutiva do direito de regresso da seguradora é a que presentemente nos ocupa e decorre da previsão normativa contida na parte final da al. c) do art. 19º do DL 522/85, ao estatuir que a seguradora goza de direito de regresso contra o condutor quando este haja abandonado o sinistrado.
(…)”
O acórdão em referência segue a posição já defendida entre nós pelo V.º TUI, indo no sentido de várias decisões proferidas por aquele alto Tribunal de Portugal, exigindo o dolo no abandono, constatando que o abandono do sinistrado é um facto posterior à consumação do acidente – e que, portanto, nem sequer no plano abstracto e presumido poderia ter tido alguma relevância causal no despoletar – e na dinâmica – daquele, destacando a autonomia relativamente ao plano das causas e culpas na produção do acidente.Para concluir que ,de um ponto de vista funcional, à acção de regresso – enquanto reportada a indemnizações pagas a título de ressarcimento de danos relativamente aos quais não ocorreu qualquer nexo causal com o facto constitutivo do direito de regresso ( o abandono doloso da vítima) - se deve atribui a natureza de sanção civil – levando as finalidades de prevenção geral e de reforçada censura ético-jurídica de determinadas condutas estradais à personalização da responsabilidade do seu autor , apagando ou precludindo, no plano das relações internas entre seguradora e tomador/beneficiário do seguro, a garantia de cobertura dos riscos de circulação que normalmente decorreria da vigência do contrato.
Devendo ainda a questão colocar-se num outro plano, tendo a ver, não com a legitimidade da previsão legislativa de sanções patrimoniais civis ou com o princípio non bis in idem, mas antes com a indispensável convocação, dos princípios fundamentais da culpa, da proporcionalidade e da adequação, não devendo inviabilizar-se, à partida, a opção legislativa consistente em prever e instituir verdadeiras sanções civis, prosseguindo legitimamente (nomeadamente em áreas da responsabilidade civil conexa com a responsabilidade penal e contra-ordenacional) finalidades de prevenção geral, é naturalmente indispensável que as mesmas suportem o confronto com os referidos princípios, não podendo a sua cominação conduzir a resultados manifestamente iníquos, por claramente desproporcionados á gravidade e censurabilidade dos comportamentos que estão na base da respectiva aplicabilidade.
Ou seja: a aplicação de determinada sanção de natureza patrimonial ao agente, mesmo situada no estrito domínio das relações civis, nunca poderá funcionar em termos puramente objectivos e automáticos, desencadeando-se imediatamente perante a verificação de determinada factualidade objectiva, contemplada, devendo poder-se formular, quanto à própria factualidade constitutiva do direito de regresso, um juízo de censura, incidente sobre a conduta do agente e contemplando, por exemplo, a possível ocorrência de causas de exclusão da culpa. (…)
Pelo que pelo acórdão que se vem citando se uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do art. 19º do DL 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.“
5. A douta sentença, com todo o respeito pelo seu labor e valia, não leva em linha de conta a evolução que a abordagem da questão, pela Jurisprudência interna e comparada, tem desenvolvido.
As posições que a este propósito têm sido desenvolvidas pelo nosso TUI e pelo STJ fazem-nos reflectir.
No sentido de mantermos no essencial o caminho por nós anteriormente traçado, mas vendo, nas diferenças, as linhas-força que merecem ser destacadas, relevando-se, a partir da constatação de que os casos de abandono de sinistrado, em que a conduta do abandono é alheia à produção dos danos pelo acidente, são diferentes, da constatação de que cada caso expressamente consagrado na lei como gerador do direito de regresso tem particularidades próprias, da constatação de que cada caso é um caso, reafirmamos no essencial a posição por nós assumida.
Assim,
Reconhece-se a necessidade de prova dos pressupostos da responsabilidade do condutor e da comprovação do nexo causal entre o efeito do álcool e a produção do acidente, de acordo com os princípios da repartição do ónus da prova no processo;
O acidente pode produzir-se, independentemente do álcool, donde, em princípio, não se compreender que a responsabilidade transferida para a seguradora, só por essa razão, deixe de poder ser accionada, muito embora se venha enfatizando uma perspectiva que passa por reconhecer a existência de um direito sancionatório civil (penas privadas de que fala o TUI);
A não se entender assim, existiria um desequilíbrio contratual resultante do facto de o segurado estar a suportar importâncias que só a seguradora devia pagar pela simples razão de que foi isso que foi acordado: a transferência de responsabilidade no caso de culpa ou risco na produção de um acidente; ainda que não se deixe de salvaguardar que as condutas dolosas ou culposas pela produção directa ou indirecta do acidente não podem ficar a coberto de uma transferência de responsabilidade padronizada em função de uma prudente, cuidada e normal conduta do segurado;
Sublinhando, contudo, que a natureza sancionatória cível da responsabilidade civil tem por função a reparação dos prejuízos e não mais do que isso. A ideia de sanção moral também deve ser alheia ao direito de regresso, pois não é essa a função do reembolso. Não deve ser por via do instituto da responsabilidade civil, com atropelo da autonomia privada, equilíbrio das prestações, liberdade contratual, que se sancionam os comportamentos anti-sociais.
A considerar que as despesas resultantes do acidente, por uma razão independentemente do álcool, não ficariam a cargo da seguradora, tal situação geraria um manifesto enriquecimento sem causa da seguradora.
E, como lembra Vaz Serra, BMJ 69, 256, o “dever de regresso funda-se no enriquecimento injustificado à custa de outros credores e, por conseguinte, quando do negócio jurídico ou de disposição especial não resulta outra coisa, deve ter o alcance que resultar do facto de, em consequência da satisfação do credor, certo ou certos devedores terem enriquecido injustificadamente à custa de outro ou outros”
6. Depois, importa atentar na letra da norma que diz que há regresso quando o condutor tiver agido sob a influência de álcool, devendo, pois, os danos ser em função do facto gerador dos mesmos e que ao mesmo tempo seja causa do regresso, ou seja, a actuação por causa do álcool. Não deixa aqui de haver uma nota clara que vai no sentido da causalidade entre a causa e o efeito. Não teria sido mais fácil para o legislador, se fosse essa a sua vontade, ter dito ”aquele que tenha conduzido” e já não “aquele que tenha agido”?
Evidencia-se até uma desproporção manifesta na contemplação do direito de regresso em situações de culpa leve do condutor ou até de concorrência de culpas, não se compreendendo facilmente que a seguradora ficasse desonerada do que pagou se, por exemplo, o condutor, não obstante o álcool, independentemente dos motivos, fosse também ele vítima ou sinistrado.
E pensemos numa situação de risco. Será que nesse caso - a lei não distingue -, conduzindo o agente sob o efeito do álcool - observando-se que mesmo nesse caso não deixou de agir sob aquele efeito -, ficaria eximida a Seguradora? Mesmo considerando que se restringe esse regresso aos casos de culpa do agente, estaria bem que se mantivesse a exclusão nos casos em que apenas ela, a culpa, se não apurou, mas o álcool não deixou de ser apurado? E, apurando-a, a culpa, claramente se comprovasse que o condutor, apenas, com 0,1gr/l ou por absurdo, 0,0001gr/l de taxa de álcool, foi culpado porque ia a conversar ao telemóvel e não olhou para onde devia? E pode-se considerar que agiu sob o efeito do álcool a partir de qualquer taxa de alcoolemia?
Acresce que não se vê razão para que o legislador tivesse de intervir numa situação duvidosa, que bem pode ser objecto de uma exclusão expressamente acordada, como o são tantas outras, por vezes, quase leoninas, no âmbito das diferentes coberturas.
Por último, se, nos casos da al. e) do art. 16º do DL n.º 57/94/M, de 28 de Nov., se prevê expressamente que existe direito de regresso sobre o “responsável pela apresentação do veículo à inspecção periódica referida no artigo 10.º, que não tenha cumprido essa obrigação, excepto se o mesmo provar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo”, salvaguarda esta não prevista nas outras situações (alíneas a) a d)), donde se pretende retirar o argumento de que nestes casos o direito de regresso existe sempre independentemente do nexo causal entre a situação típica e a produção do acidente, pois que aí já não se prevê uma exclusão expressa do direito de regresso, é porque, na situação prevista na norma citada, o último responsável é o proprietário do veículo que pode nem ter sido o interveniente no acidente.
Não é, pois, legítima esta interpretação a contrario, na medida em que se observa uma situação específica que impõe tal estatuição, completamente diferente das restantes, vista uma aparente desconexão entre a conduta geradora do regresso e o dano causado pelo acidente nos casos de falta de inspecção. Aí o legislador teve necessidade de ser expresso e não já assim nas outras situações em que o nexo causal entre a conduta e o acidente não deve deixar de ser apurado; aqui, a causalidade do regresso resulta entre um acto do condutor e o sinistro, ali, entre um acto que, prima facie, nada tem que ver com o acidente.
7. Dir-se-á que é evidente que nas situações de risco se exclui o direito de regresso. Pois bem, se assim é, o critério lógico do raciocínio sofre uma quebra, já que para que se excluir o risco o facto relevante é a conduta negligente e já a não a mera condução sob influência do álcool, mas para considerar o regresso nos casos de culpa negligente, então, aí, o critério já passa a ser a mera condução sob a influência do álcool, pois para os defensores da tese que se vem delineando em Macau, nos casos de culpa, desde que haja álcool, já não interessa apurar a causa concreta do acidente.
O que se diz, por outras palavras, é que o fundamento último para garantir um direito de regresso estará uma concepção que se pretende ínsita à ordem jurídica de sancionar civilmente uma conduta potenciadora de um risco agravado de condução, se esta for feita sob influência do álcool. Jã não interessa o acidente em si, mas a condução numa situação de perigosidade potencial.
Não obstante o que se vem dizendo, evoluímos para admitir que esse seja um valor prosseguido pela ciência jurídica, que a esse desiderato se chegue por via de um exercício dogmático, mas importa relativizar as consequências desta construção e não esquecer que cada caso é um caso, continuando a pensar que não se pode formular uma regra cega, de que não há direito de regresso desde que se comprove que o condutor conduzia com álcool.
Importará sempre analisar o circunstancialismo concreto e partir daí para a procura das razões que possam excluir uma causalidade cientificamente comprovada entre uma condução com uma taxa de álcool expressiva e uma grande probabilidade de, nessas condições, o acidente sobrevir.
Nem sequer se pode afirmar que se ficciona uma presunção – como vimos, a lei aplicável, determina o que seja uma condução sob efeito do álcool, não se podendo dizer que essa estipulação seja restrita para as situações contravencionais ou criminais -, donde, ainda por aí, seria ao segurado condutor que caberia provar, para afastar o direito de regresso, que o acidente se não verificou por causa do álcool, mas sim por esta ou aquela razão devidamente descrita.
8. Que pode ser mui difícil o julgador elevar-se acima do mundo visível dos factos e descortinar qual a resolução interior que desencadeia uma condução desastrada e desastrosa, sem dúvida! Mas essa é outra questão.
Jogarão aqui, com particular relevância, as regras da experiência comum e as presunções legais e judiciais, tal como enunciadas nos artigos 342º e 344º, cabendo ao julgador retirar de um facto conhecido, com a grande probabilidade consabida e que lhe é inerente, o desencadear de outros factos desconhecidos, ou seja, a probabilidade muito forte de, a partir de uma expressiva taxa de alcoolemia, concluir, à míngua de outra razão aparente, no sentido de que o acidente se deu por causa daquela condução sob o efeito do álcool.
Era este o sentido assertivo da declaração de voto do Senhor Conselheiro Oliveira Barros, ao dizer, ainda que acompanhando a tese que fez vencimento no Ac. do STJ n.º 6/2002, “que a dificuldade da prova exigida pode eventualmente ser mitigada pelo uso criterioso de presunção simples, natural, judicial, ou de experiência, que os artigos 349.º e 351.º do Código Civil consentem, assente em que a condução com TAS (taxa de álcool no sangue) elevada importa normalmente diminuição da aptidão para bem conduzir e o consequente agravamento dorisco de acidente.”.
9. O acidente aconteceu em 14.01.2006, pelo que é aplicável a lei antiga, ou seja, o Código da Estrada e não a Lei do Trânsito Rodoviário que entrou em vigor em 01.10.2007.
Deste modo, não se aplica o artº 96º, nº 1 da Lei do Trânsito Rodoviário mas sim o artº 68º, nº 3 do Código da Estrada - Quem conduzir com uma taxa de alcoolémia igual ou superior a 0,8 e inferior a 1,5 gramas por litro de sangue é punido com multa de 1 500,00 a 7 500,00 patacas.
Por outro lado, o artº 12º, nº 5 do Código da Estrada prevê, “considera-se sob influência do álcool o condutor que apresentar taxa de alcoolémia igual ou superior a 0,8 gramas por litro de sangue.”, daqui decorrendo o estabelecimento de uma presunção legal.
10. Posto isto, descendo ao concreto, a taxa de álcool detectada, uma taxa alcoolemia de 1,01 g/1, a hora do acidente, de madrugada, numa situação de fluência normal de trânsito para aquela hora, boas condições de piso, luminosidade suficiente, o R. desrespeita os sinais de cedência de passagem expressos no pavimento (marcas reguladoras) e de sinalização vertical, que existem no cruzamento, avança, sem prestar atenção aos veículos que circulam em sentido contrario e que detêm o direito de passagem, por causa do seu embate no ciclomotor de matrícula, que circula no sentido Avenida Conselheiro Borja em direcção à Avenida Almirante Lacerda, e que beneficia da cedência de passagem que lhe era concedida pela sinalização de trânsito.
Diremos que muito provavelmente a desatenção do R. foi provocada pelo álcool com que conduzia, pelo que não é difícil concluir no sentido da verificação de um nexo causal entre a condução sob o efeito do álcool como causadora do acidente.
Nesta conformidade, a acção não deixará de proceder, tendo a Seguradora direito de regresso, que incluirá tão-somente a indemnização que foi satisfeita e já não outras despesas, nomeadamente as judiciais, pois sempre podia ter evitado o recurso a tais vias.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em revogar a douta sentença proferida e, em consequência, julgando a acção procedente, em condenar o R. B a pagar à A., A Limited, o montante de MOP 434.427,00 (quatrocentos e trinta e quatro mil quatrocentos e vinte e sete patacas), a título de direito de regresso pelos montantes indemnizatórios por si satisfeitos à lesada cível, pelo acidente descrito nos autos.
Custas pela recorrido.
Macau, 21 de Janeiro de 2016,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
537/2015 47/47