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Processo nº 888/2015
(Autos de recurso civil)

Data: 17/Março/2016

Assuntos: Doação entre casados
      Doação da meação num bem imóvel
      Direito material aplicável
      Impossibilidade legal do objecto
      Nulidade do contrato

SUMÁRIO
- O Autor e a Ré casaram na China em 1994, tendo o marido adquirido em 2002, por contrato de compra e venda, um imóvel situado em Macau. O casal adquiriu em 2010 o estatuto de residente permanente de Macau, tendo ambos celebrado em 2013 uma escritura pública de doação entre casados, através da qual o Autor declarou dar à Ré e esta declarou aceitar a meação no referido bem imóvel.
- Apesar de a lei competente para regular o regime de bens dos nubentes ser a lei do casamento da China, mas quanto à questão da validade do contrato de doação celebrado entre os cônjuges, afigura-se-nos ser a ordem jurídica de Macau a única que se encontra em contacto com a situação, pelo que é de acordo com a lei material de Macau que se deve apreciar aquela questão.
- Mesmo que assim se não entenda, e que se considere que a doação entre casados é uma relação jurídica de carácter patrimonial entre os cônjuges e que, ao mesmo tempo, se considere estar em contacto com outros ordenamentos jurídicos, mas como tal relação não depende de um específico regime de bens do casamento, antes vale para qualquer regime de bens, quer legal quer convencional, isto é, as normas que disciplinam a doação entre casados são comuns a todos os regimes de bens e não privativas de determinado regime de bens, entendemos que aquele tipo de regras constituem precisamente o chamado estatuto matrimonial patrimonial primário, devendo, quando muito, ser subsumível ao conceito quadro do artigo 50º e não ao do artigo 51º do CC.
- Segundo o disposto no nº 1 do artigo 50º, em conjugação com o nº 3 do artigo 30º, ambos do CC, sendo os cônjuges, à data da celebração do contrato de doação, residentes permanentes da RAEM, é aplicável a lei material da RAEM, por ser esta a lei da residência habitual comum dos cônjuges.
- É legalmente impossível o objecto de um negócio quando a lei ergue a esse objecto um obstáculo tão insuperável como o que as leis da natureza põem aos fenómenos fisicamente impossíveis.
- Ao contrário do que se verifica na compropriedade, em que esta consiste numa comunhão por quotas, os bens comuns dos cônjuges (casados segundo o regime de comunhão de adquiridos) traduzem-se numa comunhão sem quotas, na medida em que os vários titulares do património são sujeitos de um único direito, de uma quota ideal, em vista da sua especial afectação, pelo que os seus titulares estão impedidos de disporem o seu direito enquanto a relação conjugal se mantiver.
- Como a meação nos bens comuns não é susceptível de ser adquirida por outro consorte antes da dissolução do casamento ou de ser decretada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges, afigura-se-nos haver impossibilidade legal do objecto quando se celebre a escritura pública de doação entre casados, daí se conclui ser nulo o contrato de doação, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 273º do Código Civil.


O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 888/2015
(Autos de recurso civil)

Data: 17/Março/2016

Recorrente:
- A

Recorrida:
- B

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
A, Autor da acção de processo ordinário que corre termos no Tribunal Judicial de Base, inconformado com a sentença final que julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade do contrato de doação celebrado entre ele e a Ré B, dela interpôs o presente recurso ordinário para este TSI, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. No contexto do art.º 1607º/1 CC, o termo estipulação tem que ser interpretado no âmbito do seu do seu enquadramento teleológico e sua função que desempenha dentro do espírito do sistema.
2. O art.º 1607º/1 CC estabelece a regra imperativa da igualdade entre os cônjuges no que toca às suas relações patrimoniais, corolário da sua igualdade estatutária enquanto cônjuges, impondo-lhes, quanto ao que seja o seu património comum, direitos e deveres iguais, constituindo uma concretização do princípio da igualdade, acolhido no art.º 25º da Lei Básica da RAEM.
3. Estipulações contrárias a essa regra seriam quaisquer contratos celebrados entre os cônjuges que impusessem participações diferentes na globalidade do património comum, ou seja, modificações indirectas ao regime de bens do casamento na pendência deste, entendendo-se como tal aquelas que não respeitassem o que se determina em matéria de convenções pós-nupciais.
4. O contrato dos autos não se enquadra nas situações descritas no parágrafo anterior.
5. Admitindo a validade do contrato em apreço, tal significaria que, no momento da sua outorga, o património comum ficaria empobrecido no valor equivalente à meação do cônjuge-marido na fracção autónoma, e, em contrapartida, o património próprio da cônjuge-mulher ficaria enriquecido na mesma medida. Porém, no final, as partes continuariam sempre a ser meeiras do património comum que restasse, não se registando qualquer alteração à quota a cada um teria direito, caso ocorresse uma operação de partilha.
6. Em consequência, o contrato em apreço não apresenta qualquer correlação com o art.º 1607º/1, nem é violador do conteúdo da norma deste artigo, pelo que a invalidade do contrato não resulta daquele preceito, razão pela qual a ele não deverá ser subsumido.
7. Em face do art.º 51º/1 CC, a lei aplicável será aplicável a lei da residência habitual dos nubentes ao tempo da celebração do casamento. Aquando da celebração do casamento, ambos os nubentes eram residentes na RPC, pelo que o regime de bens há-de ser definido nos termos da respectiva legislação.
8. A norma do art.º 51º/1 CC esgota a sua função logo que se tenha fixado a lei que há-de regular a determinação e o conteúdo desse mesmo regime. As partes são casadas no regime da comunhão de adquiridos, sendo este o único elemento de conexão com o ordenamento da RPC, uma vez que, inquestionavelmente, todos os demais chamam como competente a regular a situação a lei material de Macau.
9. A titularidade do BIR da RAEM faz presumir que o seu titular tem aqui residência. Sendo ambas as partes portadoras de BIR, são residentes na RAEM.
10. Ao recorrer exclusivamente à norma de conflitos do art.º 51º CC, o tribunal a quo enquadrou o contrato dos autos no regime na disciplina do regime matrimonial patrimonial secundário, para depois subsumir a situação de facto integralmente à disciplina do mencionado artigo.
11. Porém, o contrato em apreço não respeita ao regime matrimonial patrimonial secundário – i.e., aquele cujos efeitos dependem de um concreto regime de bens -, mas sim ao regime matrimonial patrimonial primário – aquele cujos efeitos são totalmente autónomos do concreto regime de bens do casal.
12. Os artigos 50º e 51º CC não podem ser interpretados isoladamente, uma vez que entre eles se estabelece uma relação de subsidiariedade e de residualidade.
13. O casamento desencadeia dois tipos de efeitos patrimoniais: os que são independentes do concreto regime de bens, e os que são dependentes desse mesmo regime. Essa bidimensionalidade do direito patrimonial do casamento reflecte-se na existência de duas regras de conflitos, que estabelecem duas soluções conflituais distintas: uma para a matéria das relações entre cônjuges – o art.º 50º CC; e outra para os regimes de bens e convenções antenupciais – o art.º 51º CC. Ambas essas normas se referem à vertente patrimonial do casamento, embora com âmbitos e limites de aplicação distintos.
14. O art.º 51º CC disciplina as relações patrimoniais do casamento, também chamadas secundárias, i.e., dependentes de um regime de bens. A lei por ele indicada serve para definir o regime de bens vigente num determinado casamento e para regular todas as relações patrimoniais entre os cônjuges que só vigoram em certos regimes de bens. Ao seu conceito-quadro só podem ser subsumidas as normas respeitantes a um específico regime de bens. Através da lei designada pelo art.º 51º regulam-se as relações patrimoniais que determinam, em concreto, os direitos dos cônjuges sobre o seu património, define-se a propriedade sobre os bens do casal: o que é comum, o que é próprio de um e de outro.
15. O art.º 50º CC trata do problema geral da lei aplicável às relações entre cônjuges. Todas as regras do direito matrimonial patrimonial que não sejam privativas de determinado regime de bens – tais como regras sobre administração de bens, regime da responsabilidade por dívidas, normas sobre imprescritibilidade de dívidas, entre outras – são do âmbito de aplicação do art.º 50º. São regras que se aplicam, imperativamente, a todas as relações patrimoniais conjugais independentemente do regime de bens. O art.º 50º do CC regula, assim, as relações pessoais e as patrimoniais primárias, as quais não estão dependentes do estatuto patrimonial concreto do casamento. Assim, a vertente patrimonial do casamento não se esgota na lei indicada pelo art.º 51º, uma vez que os efeitos patrimoniais não dependentes de um regime de bens caem na esfera de aplicação do artigo 50º do CC.
16. A solução jurídica do caso impõe a determinação do conceito-quadro ao qual será subsumível o contrato de doação entre casados.
17. A doação entre casados configura uma modalidade especial do contrato de doação, cuja disciplina específica encontra assento nos artigos 1620º ss. e, por remissão expressa do mesmo dispositivo, no regime geral das doações.
18. Todos os elementos da interpretação jurídica abonam a conclusão de que a doação entre casados não possui qualquer interdependência face ao concreto regime de bens do casamento.
19. Errou o tribunal a quo quando sujeitou a matéria do contrato de doação entre casados dos autos à disciplinar do regime matrimonial patrimonial secundário.
20. Não dependendo a doação entre casados de um específico regime de bens, mas não deixando a doação de configurar uma relação jurídica de carácter patrimonial entre os cônjuges, ela é subsumível ao conceito-quadro do art.º 50º CC.
21. O art.º 50º CC chama, como primeira conexão a reger o estatuto pessoal e patrimonial matrimonial primário, a lei da residência habitual comum dos cônjuges.
22. A lei da residência habitual comum das partes, face às disposições conjugadas dos artigos 24º, 30º/1, 2, 3 e 4, 50º/1 CC, é a lei de Macau.
23. Na decisão sob recurso ficou provado que Recorrente e Recorrida são titulares do BIR, presumindo-se que têm residência habitual em Macau – presunção essa que não foi ilidida.
24. Ainda que se entenda que Recorrente e Recorrida têm também residência habitual na RPC, dispõe o art.º 30º/4 CC que, tendo o indivíduo mais de uma residência habitual, sendo uma delas em Macau, a lei pessoal é a lei de Macau.
25. Assim, por aplicação da conexão do art.º 50º/1, a lei aplicável é a lei de Macau.
26. De acordo com o disposto no art.º 45º/1 CC, estando em causa a aquisição, por doação, de um prédio situado em Macau, tudo quanto respeite ao “estatuto real” deve ser regulado pela lex rei sitae.
27. No caso dos autos, tendo por objecto um facto jurídico do foro obrigacional realizado em Macau, a análise dos aspectos formais e substanciais do contrato pressupõe o chamamento da ordem jurídica que deve regular cada um desses aspectos.
28. As regras de conflitos pertinentes à matéria das obrigações provenientes de negócios jurídicos são as dos artigos 40º e 41º CC.
29. Na falta de escolha da lei aplicável, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresente uma conexão mais estreita (artigos 40º e 41º CC).
30. Na falta da designação da lei reguladora pelas partes, aplica-se a lei do lugar com a qual o negócio se ache mais estreitamente conexo, ou seja, a lex loci celebrationis, presumindo-se que, nos casos em que o contrato tenha por objecto direito real sobre imóvel, essa conexão existe com o país onde o imóvel se situa.
31. Conjugados os artigos 40º e 41º CC, a lei reguladora da substância do negócio jurídico é a lei de Macau.
32. A nulidade constitui matéria de direito de conhecimento oficioso, nada impedindo que se invoquem, em sede de recurso, causas de nulidade que não hajam sido invocadas na acção, ou sobre as quais o tribunal a quo ao não se tenha pronunciado.
33. Uma das causas da invalidade do negócio dos autos é a indeterminabilidade do objecto do negócio.
34. O objecto imediato do contrato de doação é a constituição de uma relação jurídica translativa da propriedade, a título gratuito; e o objecto mediato é o quid sobre o qual recaem aqueles efeitos jurídicos.
35. Um dos requisitos da validade do negócio jurídico é a possibilidade física e legal do seu objecto.
36. Um dos elementos da possibilidade legal desse objecto é constituído pela sua determinabilidade.
37. No momento da conclusão do negócio, mesmo que o objecto do negócio não esteja completamente determinado, ele tem que ser, pelo menos, determinável.
38. Um negócio cujo objecto fosse indeterminável seria fulminado de nulidade, por impossibilidade do objecto, nos termos do art.º 273º CC. É o caso do negócio dos autos.
39. As partes são casadas entre si, tratando-se, por isso, o contrato em apreço de uma doação entre casados, não deixando, porém, de constituir uma doação.
40. A doação é um contrato translativo da propriedade, cuja causa é o espírito de liberalidade do doador, o qual dispõe gratuitamente de coisa ou direito em favor do donatário.
41. Por ser um contrato, a doação está necessariamente sujeita à disciplina das regras gerais sobre o negócio jurídico, constante dos artigos 209º ss. CC. No caso específico dos autos, o negócio sub judice está, ainda, sujeito às regras especiais da doação sobre casados, positivadas nos artigos 1602º ss. CC.
42. No contrato dos autos, o objecto mediato é constituído pelo bem doado, ou seja, a meação do doador na fracção autónoma, integrando esta o património comum do casal.
43. Meação é “a participação ideal que incide sobre todo o património comum, em conjunto, e não sobre cada bem em concreto”. É o direito de cada um dos cônjuges a uma determinada quota naquilo que é o património comum, considerado como património colectivo, ou de mão comum.
44. Quota essa que se cifra em metade do valor o património comum (art.º 1607º/1) CC -, mas cujo conteúdo em concreto somente há-de apurar-se quando ocorra a operação de partilha, quer ela surja pela dissolução da união, ou por via do incidente de separação de pessoas e bens.
45. Enquanto vigorar a comunhão patrimonial conjugal, nenhum dos cônjuges pode dispor da sua meação num bem específico, ou de parte especificada neste, uma vez que tal é objectivamente impossível, visto que o seu direito não é mensurável em termos de uma quota ou parte. O seu directo é indeterminável – e sê-lo-á até que ocorra a operação de partilha.
46. No negócio jurídico dos autos, o cônjuge-marido alienou, em favor da cônjuge-mulher, a sua meação na fracção autónoma. Mas qual a medida dessa meação? A resposta é: nenhuma, porque tal não é determinável. O seu direito é uno e inteiro, indiviso e indivisível, sobre todo o património comum.
47. Sendo assim, o objecto do negócio em apreço é indeterminado, mas também indeterminável, uma vez que, no momento da sua conclusão, não é possível às partes saber qual será a medida do seu direito sobre o imóvel em causa, e permanecerão nessa ignorância até que ocorra uma operação de partilha – a qual pode até nem vir a ter lugar em momento algum.
48. Sendo o objecto do negócio indeterminável, ele é juridicamente impossível, o que implica a sua nulidade, nos termos do art.º 273º CC.
49. O Código Civil vigente em Macau até ao estabelecimento da RAEM continha uma norma que estabelecia que “Só podem ser doados bens próprios do doador” (art.º 1764º).
50. O legislador de Macau de 1999 optou por moderar a recepção do princípio da imutabilidade no direito local. Nesse processo, o legislador da Macau eliminou também a norma que constava do art.º 1764º/1 do Código Civil anterior a 1999.
51. Investigações mais recentes concluem que a proibição de doações entre casados de bens comuns não resulta do princípio da imutabilidade, mas sim que procede de outras razões: a consignação desses bens às necessidades da vida da família e a da garantia dos credores.
52. Perante o vazio legal criado pela eliminação da norma do antigo art.º 1764º/1, é preciso perceber se a supressão daquela norma representa uma intenção deliberada do legislador de passar a admitir que as doações entre casados possam passar a recair sobre bens comuns do casal; ou se, pelo contrário, a exclusão daquela norma constitui um lapso do legislador, incompatível com o plano da lei.
53. Os princípios que obstam a que a doação entre casados possam obstar incidir sobre bens comuns são: (i) o princípio da indivisibilidade do património de mão comum; (ii) o princípio da afectação dos bens comuns às necessidades da família; e (iii) o princípio da garantia dos credores.
54. Partindo de várias normas do Código Civil, é possível induzir um princípio da indivisibilidade dos bens integrados no património comum enquanto se mantiver a sociedade conjugal, salvo se ocorrer separação judicial de pessoas e bens (art.º 1624º), ou no caso de convenção pós-nupcial pela qual os cônjuges alterem o regime de bens do casamento (art.º 1578º CC).
55. Enquanto tal não suceda, ou não ocorra partilha motivada pela cessação da união conjugal, o património comum é indiviso e indivisível, não podendo nenhum dos cônjuges alienar ou onerar a sua meação nos bens que integram aquela património.
56. O património comum conjugal constitui um património de afectação, que goza de autonomia em face do património próprio de cada um dos cônjuges, sobretudo evidentes no facto de o património comum conjugal responder pelas dívidas dos cônjuges que tenham sido contraídas em proveito da sociedade conjugal.
57. O princípio da protecção dos credores é um princípio transversal ao direito privado.
58. Dentro disciplina específica das relações dos cônjuges, encontramos diversas também regras destinadas à protecção dos credores, e, bem assim, no âmbito do direito notarial e registral.
59. Ínsito ao direito civil, há um princípio de protecção dos credores, o qual, por razões de certeza jurídica, obriga a que, quando estes estabelecem as suas relações jurídicas negociais, conheçam de antemão o estado civil e o regime de bens do casamento da outra parte (quando casada).
60. Os princípios da indivisibilidade do património de mão comum, da afectação dos bens comuns às necessidades da família e da garantia dos credores opõem-se à ideia da admissibilidade das doações de bens comuns entre casados.
61. Assim se concluindo ser a supressão da regra que limitava o objecto das doações entre casados aos bens próprios contraria ao próprio plano da lei objectiva, tendo o legislador, com a sua eliminação, criado uma lacuna normativa que carece de integração.
62. Nos termos do art.º 9º, e inexistindo para o caso análogo, deve a lacuna integrada pelo recurso à “norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema” (art.º 9º CC).
63. A norma a criar pelo intérprete deverá ser igual à que vigorou no Código Civil de Macau até 1999, a qual determinava que: “Só podem ser doados bens próprios do doador.”
64. Ao ter decidiu como decidiu, o tribunal a quo:
a) Violou, na douta sentença recorrida, o disposto nos artigos 50º, 51º/1, 273º e 287º, todos do Código Civil;
b) Fez uma errada interpretação do art.º 1607º CC, ao entender que lhe devem ser subsumíveis as doações entre casados, uma vez que aquele artigo apenas tem por objecto os negócios jurídicos entre os membros do casal que criem uma desigualdade quantitativa no seu direito à meação;
c) Fez uma errada interpretação do art.º 51º/1 CC, uma vez que as doações entre casados não cabem no âmbito do seu conceito-quadro;
d) Deveria ter aplicado os artigo 40º, 41º, 45º e 46º todos do CC, enquadrando o negócio do autos no âmbito dos conceitos-quadro daqueles artigos, por se tratar de um contrato celebrado na RAEM, entre residentes na RAEM, tendo por objecto um imóvel situado na RAEM, e, em consequência, aplicando ao caso o direito da RAEM;
e) Deveria ter aplicado o art.º 273º/1 CC, declarando a nulidade do contrato com fundamento na impossibilidade do seu objecto;
f) Deveria ter aplicado o art.º 9º CC, reconhecendo a existência de uma lacuna da lei pelo vazio legal criado pela supressão do antigo art.º 1764º/1 CC;
g) Mais deveria, em consequência, ter procedido à criação de uma norma igual à que constava daquele artigo (“Só podem ser doados bens próprios do doador.”), declarando a nulidade do contrato por violação do art.º 287º CC.
Conclui, pedindo que se conceda provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e, em seu lugar, proferindo-se outra decisão que declare a nulidade do contrato de doação entre casados celebrado entre as partes.
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Ao recurso não respondeu a recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II) FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
Autor e Ré são casados entre si no regime da comunhão de adquiridos.
Na pendência do casamento, em 30 de Outubro de 2002, os Autor e Ré adquiriram, por contrato de compra e venda, a fracção autónoma designada por “AR/C”, do rés-do-chão “A”, para comércio, com sobreloja, do prédio urbano sito em Macau, com os números 6 e 6-A da Rua Marques de Oliveira, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 12771, freguesia de Santo António, cuja propriedade horizontal se encontra inscrita sob o n.º 23165 do livro F20, inscrito na matriz predial sob o n.º 37956.
A mencionada fracção possui o valor matricial de MOP$2.224.800,00.
A propriedade da fracção encontra-se inscrita a favor do Autor na Conservatória do Registo Predial, sob o n.º 56595, do livro G, com menção do estado civil de casado com a Ré no regime da comunhão de adquiridos.
Em 23 de Março de 2013, Autor e Ré celebraram, no Cartório Notarial do Dr. António Passeira, uma escritura pública de doação entre casados, no qual o Autor declarava dar à Ré a sua meação na sobredita fracção.
A transmissão foi declarada à Direcção do Serviço de Finanças (DSF), para efeitos de liquidação do Imposto do Selo, em 23 de Março de 2013.
Em 27 de Março de 2013, após proceder à liquidação do imposto a pagar, a DSF emitiu a guia respectiva, para pagamento de MOP$58.401,00.
Autor e Ré procederam ao pagamento do Imposto do Selo em 28 de Março de 2013.
Foi requerido à Conservatória do Registo Predial o registo da aquisição resultante da doação, pela apresentação n.º 196 de 2 de Abril de 2013.
Por despacho datado de 23 de Abril de 2013, o Conservador do Registo Predial recusou o registo, com fundamento “nos artigos 17º alínea c), 59º e 60º todos do Código do Registo Predial. A fracção autónoma ora objecto de registo está indeterminado sic, tendo em vista que a meação constitui uma participação dum património conjugal considerado globalmente no seu activo e no seu passivo, sendo que nos termos em que a doação foi feita equivale a uma doação de uma quota indivisa sobre uma coisa concreta do referido património, quota que só existe depois de uma partilha de comunhão”.
O Autor pretende obter o reembolso pelos emolumentos e imposto despendidos com a escritura.
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Foi celebrado em Macau por escritura pública um contrato de doação entre Autor e Ré, enquanto casados segundo o regime de comunhão de adquiridos.
Pretende o Autor que se declare a nulidade do referido negócio.
A sentença recorrida julgou improcedente a acção, por entender que, tendo as partes residência habitual na China à data do casamento, ao abrigo do artigo 51º, nº 1 do Código Civil, era aplicável a lei do Interior da China, mais especificamente a lei do casamento de 10 de Setembro de 1980 a qual não prevê normas semelhantes ao artigo 1607º, nº 1 do Código Civil, isto é, nela não estava previsto que a doação em questão era nula.
Inconformado, recorreu o Autor da sentença.
O caso é o seguinte:
O Autor e a Ré casaram na China em 1994, tendo o marido adquirido em 2002, por contrato de compra e venda, um imóvel situado em Macau. O casal adquiriu em 2010 o estatuto de residente permanente de Macau, tendo ambos celebrado uma escritura pública de doação entre casados, através da qual o Autor declarou dar à Ré e esta declarou aceitar a meação no referido bem imóvel.
Pugna o Autor pela nulidade da dita doação.
Estatui-se no nº 1 do artigo 51º do Código Civil que “a substância e efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, legal ou convencional, são definidos pela lei da residência habitual dos nubentes ao tempo da celebração do casamento”.
De acordo com a norma ora citada, no que respeita à lei aplicável ao regime de bens do casamento, uma vez que os nubentes tinham residência habitual na China ao tempo da celebração do casamento, embora sejam actualmente residentes permanentes de Macau, dúvidas não restam de que a lei competente para reger a matéria do regime de bens do casamento é a lei da China.
Mas o que se discute no presente caso é saber se é válida a doação da meação celebrada entre os cônjuges em 2013, sendo assim, convém saber se essa relação tenha algum contacto com outros ordenamentos jurídicos, caso contrário não valeria a pena recorrer às regras de conflito, por não se tratar de uma relação privada plurilocalizada.
Em boa verdade, não obstante a lei competente para regular o regime de bens dos nubentes ser a lei do casamento da China, mas não podemos esquecer que a doação foi celebrada em 2013 em Macau, relativamente a um bem situado em Macau (mais precisamente, meação dum bem imóvel situado em Macau), altura em que os outorgantes já eram residentes permanentes da RAEM, pelo que se nos afigura, salvo o devido respeito, ser a ordem jurídica de Macau a única que se encontra em contacto com a situação.
Nestes termos, entendemos que a questão da validade do contrato de doação celebrado entre os cônjuges deve ser apreciada de acordo com a própria lei material de Macau.
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Mas mesmo que assim se não entenda, e que se considere que a doação entre casados é uma relação jurídica de carácter patrimonial entre os cônjuges e que, ao mesmo tempo, se considere estar em contacto com outros ordenamentos jurídicos, temos ainda outra razão para justificar a aplicação da lei material de Macau.
Em boa verdade, conforme defendido pelo recorrente, e bem, o casamento, pela sua natureza, desencadeia dois tipos de efeitos patrimoniais: primeiro, os que são independentes do concreto regime de bens; outro, os que são dependentes de um específico regime de bens.
Como observam João Nuno Riquito e Teresa Leong1, “diz-se que são subsumíveis no conceito quadro da regra de conflitos do art. 50º do CC aquelas regras de direito material que conforma o chamado estatuto jurídico matrimonial patrimonial primário. Com efeito, compõem o estatuto matrimonial patrimonial primário aquelas regras de direito material que regulam relações de carácter patrimonial, ou são comuns a todos os regimes de bens, isto é, dizendo respeito ao regime de bens, são comuns a todos os regimes de bens, ou então aquelas normas que, dizendo respeito às relações patrimoniais, não têm nada a ver com o regime de bens, isto é, independentes dos regimes de bens. No conceito quadro do art. 51º do CC, caberão aquelas normas que compõem o chamado estatuto jurídico matrimonial patrimonial secundário, aquelas normas que disciplinam relações jurídicas patrimoniais entre os cônjuges tendo em atenção um específico regime de bens vigente num determinado casamento.”
No mesmo sentido, refere Helena Mota2 que “o art. 52º do CC (que corresponde ao artigo 50º do CC de Macau) determina a lei aplicável às relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, excepto os regimes de bens. Pertencem assim ao âmbito de aplicação da lei designada pelo art. 52º todas as regras que regulam as relações patrimoniais entre os cônjuges desde que não estejam dependentes de um determinado regime de bens”.
Em nossa opinião, ainda que se entenda a referida doação entre casados achar-se em contacto com mais do que um ordenamento jurídico no espaço, mas como tal relação não depende de um específico regime de bens do casamento, antes vale para qualquer regime de bens, quer legal quer convencional, isto é, as normas que disciplinam a doação entre casados são comuns a todos os regimes de bens e não privativas de determinado regime de bens, entendemos que aquele tipo de regras constituem precisamente o chamado estatuto matrimonial patrimonial primário, devendo, quando muito, ser subsumível ao conceito quadro do artigo 50º e não ao do artigo 51º do CC.
Segundo o disposto no nº 1 do artigo 50º do CC, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei da sua residência habitual comum.
Por sua vez, nos termos do nº 3 do artigo 30º do CC, presume-se que tem residência habitual em Macau aquele que tenha direito à titularidade do BIRM, e sendo os cônjuges, à data da celebração do contrato de doação, residentes permanentes da RAEM, fácil é concluir que a lei aplicável é a de Macau, por ser esta a lei da residência habitual comum dos cônjuges.
*
Assente ficou a aplicabilidade do ordenamento jurídico de Macau, importa agora analisar se o contrato de doação enferma de alguma causa de nulidade.
Pugna o recorrente pela nulidade do referido contrato por impossibilidade e indeterminabilidade do objecto.
Preceitua-se no nº 1 do artigo 273º do Código Civil que é nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
O objecto jurídico é o conteúdo ou substância do negócio, sendo o seu objecto material o bem, a coisa ou a prestação, de cuja fruição o negócio em última análise se ocupa. O artigo 273.º do Código Civil de Macau engloba as duas realidades, também designadas, respectivamente, por objecto imediato e objecto mediato.3
É fisicamente impossível o objecto do negócio que envolve uma prestação impossível no domínio dos factos4, e é legalmente impossível o objecto de um negócio quando a lei ergue a esse objecto um obstáculo tão insuperável como o que as leis da natureza põem aos fenómenos fisicamente impossíveis.5
O negócio é contrário à lei quando contraria as normas imperativas, enquanto as supletivas podem ser sempre derrogadas ou modificadas pela vontade dos particulares.6
Por outro lado, o objecto negocial deve estar individualmente concretizado no momento do negócio ou pode vir a ser individualmente determinado, segundo um critério estabelecido no contrato ou na lei7. Daí que se devem considerar nulos, por falta deste requisito, os negócios cujo objecto não foi determinado nem é determinável.
Interessa-nos aqui a impossibilidade legal do objecto.
Explica ELSA VAZ DE SEQUEIRA, citado no douto Acórdão do TUI, de 30.7.2015, proferido no âmbito do Processo nº 44/2015, que «não é fácil separar estes conceitos (impossibilidade legal do objecto do negócio jurídico ou objecto do negócio contrário à lei), questionando-se amiúde sobre a própria relevância desta distinção, tanto mais que o efeito resultante de qualquer um destes vícios gera sempre e de forma indistinta a nulidade do negócio. Acreditando, no entanto, que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, como preceitua o artigo 9.º, a doutrina tem tentado encontrar um critério que permita proceder à presente distinção. É assim que surge a ideia de que a impossibilidade legal pressupõe um “objecto jurídico que, independentemente de quaisquer regras, sempre seria inviável” (Menezes Cordeiro, 2014: 556), por lei erguer “a esse objecto um obstáculo tão insuperável como o que as leis da natureza põem aos fenómenos fisicamente impossíveis” (C. Mota Pinto, 2012: 556). Um obstáculo desta índole existe, designadamente, “quando a ordem jurídica não prevê tipos negociais ou meios para” a realização do objecto “ou quando não o admite sequer em relações jurídicas privadas”, como acontece, por exemplo, na promessa da celebração de um negócio que a ordem legal proíbe ou no acordo uma prestação legalmente impossível de efectuar, nomeadamente, a transferência da propriedade para quem já é proprietário (Heinrich Hörster, 2000: 523). Diferentemente, “será contrário à lei (ilícito) o objecto quando viola uma disposição da lei, isto é, quando a lei não permite uma combinação negocial com aqueles efeitos (objecto imediato) ou sobre aquele objecto mediato” (C. Mota Pinto, 2012: 557). Neste caso, “o negócio é materialmente possível”, mas contradiz normas imperativas (Heinrich Hörster, 2000: 523). Numa palavra, na impossibilidade legal, o ato é de todo inviável, por a lei obviar à sua prática, ao passo que na contrariedade à lei, o ordenamento jurídico não tem como impedir a prática do ato proibido. Este pode ser efectivamente realizado, embora em violação de uma norma injuntiva».
No caso vertente, provado está que o Autor e a Ré celebraram uma escritura pública de doação entre casados, na qual o primeiro declarou dar à Ré e esta declarou aceitar a meação numa determinada fracção autónoma que era bem comum do casal.
Entende-se meação o produto da divisão dos bens comuns do casal em partes iguais, por terem cessado as relações patrimoniais entre os cônjuges, por acto entre vivos ou mortis causa.8
Como observam Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, vigorando entre os cônjuges o regime de comunhão de adquiridos, “os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afectação, a lei concede certo grau de autonomia, e que pertence aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela”.
Adiantando ainda aqueles ilustres professores que “antes de estar dissolvido o casamento ou de ser decretada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges, não podem estes dispor (p. ex., vendendo-a, doando-a, hipotecando-a) da sua meação nos bens comuns, assim como não lhes é permitido pedir a partilha dos mesmos bens antes da dissolução do casamento”.
De facto, ao contrário do que se verifica na compropriedade, em que esta consiste numa comunhão por quotas, os bens comuns dos cônjuges (casados segundo o regime de comunhão de adquiridos) traduzem-se numa comunhão sem quotas, na medida em que os vários titulares do património são sujeitos de um único direito, de uma quota ideal, em vista da sua especial afectação, pelo que os seus titulares estão impedidos de disporem o seu direito enquanto a relação conjugal se mantiver.
No presente caso, salvo o devido respeito, como a meação nos bens comuns não é susceptível de ser adquirida por outro consorte antes da dissolução do casamento ou de ser decretada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges, afigura-se-nos haver impossibilidade legal do objecto quando se celebre a escritura pública de doação entre casados, daí se conclui que o contrato de doação em causa deve ser considerado nulo, não podendo o mesmo gerar efeitos jurídicos, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 273º do Código Civil.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pela recorrente A e, em consequência, revogando a sentença recorrida e declarando a nulidade do contrato de doação celebrado em 23.3.2013 entre A e B.
Custas pela Recorrida.
Registe e notifique.
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RAEM, 17 de Março de 2016
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 João Nuno Riquito e Teresa Leong, Direito Internacional Privado, FDUM, 2013, pág. 387 e 388
2 Helena Mota, Os efeitos patrimoniais do casamento em direito internacional privado, Coimbra Editora, 2012, pág. 102
3 Acórdão do TUI proferido no Processo nº 44/2015
4 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, pág. 258
5 Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 550
6 Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, pág. 258
7 Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, pág. 548
8 Dicionário Jurídico, Ana Prata, 4ª edição
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Processo Civil 888/2015 Página 25