Processo n.º 1081/2015 Data do acórdão: 2016-1-28 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– crime de tráfico de estupefacientes
– atenuação especial da pena
– art.º 18.º da Lei n.º 17/2009
– estrutura de organização no grupo de traficantes de droga
– jurisprudência do Tribunal de Última Instância
– ajuda prestada à polícia na captura de outro traficante de droga
– arrependimento da prática dos factos
– art.º 66.º, n.º 1, do Código Penal
S U M Á R I O
1. A atenuação especial da pena prevista no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto, não é de activação automática ou obrigatória, pois o Legislador empregou aí a expessão “pode…”.
2. No caso dos autos, da matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido, não se vislumbra alguma estrutura de organização (no sentido próprio do termo) no grupo de traficantes formado pelos 1.º e 2.º arguidos, pelo que no seguimento da posição jurisprudencial constante do Tribunal de Última Instância (veiculada mormente nos Acórdãos de 21 de Julho de 2010 do Processo n.º 34/2010, de 11 de Setembro de 2013 do Processo n.º 48/2013, e de 30 de Julho de 2015 do Processo n.º 39/2015), não se pode atenuar especialmente a pena do crime de tráfico de estupefacientes dos 1.º e 3.º arguidos, os quais ajudaram a Polícia Judiciária na captura dos 2.º e 1.º arguidos, respectivamente.
3. O arrependimento da prática dos factos delinquentes de tráfico de estupefacientes não dá para neutralizar as consabidamente prementes exigências da prevenção geral deste crime grave (o qual, como tal, deve ser punido com a pena a ser achada dentro da sua moldura normal), daí que não é de atenuar especialmente a pena do tráfico nos termos gerais do art.º 66.º, n.º 1, do Código Penal.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 1081/2015
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: 1.º arguido A
2.º arguido B
3.º arguido C
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acordão proferido a fls. 553 a 564 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-15-0212-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o 1.º arguido A, o 2.º arguido B e o 3.º arguido C, aí já melhor identificados, foram condenados todos pela prática de um crime consumado de tráfico de ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 8.º, n.o 1, da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto (doravante abreviada como Lei de droga), em oito anos e três meses de prisão, sete anos e nove meses de prisão e sete anos e cinco meses de prisão, respectivamente, sendo o 1.º e o 3.º arguidos também condenados pela prática de um crime consumado de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 14.º da mesma Lei, identicamente na pena de dois meses de prisão, ficando, pois, em cúmulo jurídico das respectivas duas penas parcelares, o 1.º e o 3.º arguidos finalmente condenados em oito anos e quatro meses de prisão única e sete anos e seis meses de prisão única.
Inconformados, vieram os três arguidos recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI).
O 1.º arguido pretende a aplicação, a seu favor, da norma do art.º 18.º da Lei de droga, para lhe ser especialmente atenuada a pena de prisão do crime de tráfico (devido ao alegado facto de a sua cooperação então prestada à Polícia Judiciária ter sido decisiva para a captura do 2.º arguido), ou, subsidiariamente, que passe a ser punido, por este crime, com pena de prisão inferior a cinco anos, e, em cúmulo jurídico, com cinco anos e um mês de prisão única (cfr. com mais detalhes, a motivação do recurso apresentada a fls. 602 a 607v dos presentes autos correspondentes).
O 2.º arguido requer que o seu crime de tráfico passe a ser punido com pena de prisão inferior a cinco anos, atenta a quantidade de droga em causa, a falta de antecedentes criminais e a sua confissão dos factos (cfr. com mais detalhes, a motivação do recurso apresentada a fls. 598 a 600 dos autos).
O 3.º arguido também deseja, a título principal, a atenuação especial da pena do seu crime de tráfico, ou à luz do art.º 18.º da Lei de droga (devido à sua ajuda prestada à Polícia Judiciária que levou à captura sucessiva dos dois outros arguidos), ou mesmo sob a égide do art.º 66.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal (CP) (por causa sobretudo do seu arrependimento sincero já manifestado nos autos), e, subsidiariamente, a punição deste crime apenas com seis anos de prisão, nos termos do art.º 65.º, n.º 2, alíneas c), d) e e) do CP (tendo em consideração mormente a falta de antecedentes criminais e a justiça relativa em relação aos outros dois arguidos do processo) (cfr. com mais detalhes, a motivação do recurso apresentada a fls. 609 a 615 dos autos).
Aos três recursos respondeu o Ministério Público no sentido de manutenção do julgado (cfr. a resposta una de fls. 620 a 625v).
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 643 a 645v), pugnando também pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Como não vem impugnada a matéria de facto já descrita como provada nas páginas 9 a 15 do texto do recorrido acórdão de 23 de Outubro de 2015 (ora a fls. 557 a 560 dos autos, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido) e sendo o objecto dos três recursos em questão circunscrito tão-só à medida da pena, é de tomar tal factualidade provada como fundamentação fáctica da presente decisão de recurso, nos termos permitidos pelo art.º 631.º, n.º 6, do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 4.º do Código de Processo Penal.
Dessa factualidade provada, sabe-se, em especial, o seguinte:
– desde Janeiro de 2015, o 3.º arguido C começou a dedicar-se ao tráfico de droga em Macau; e em 2 de Fevereiro de 2015, cerca das 16 horas, foi interceptado pelo pessoal da Polícia Judiciária para investigação, na sequência da qual lhe foram apreendidos, após feita a revista ao seu corpo, um total de 1,323 gramas (1,22 + 0,103) de quantidade líquida de Ketamina (inicialmente para seu consumo próprio) e um outro total de 13,80 gramas de quantidade líquida de Ketamina (inicialmente para venda a outrem), para além de ser apreendido, na busca realizada na residência dele, um total de 5,21 gramas de quantidade líquida de Ketamina (inicialmente para venda a outrem), quantidades de Ketamina todas essas que tinham sido compradas por ele antes ao 1.º arguido A;
– por ter sentido remorso da sua conduta, o 3.º arguido prestou colaboração à Polícia, na sequência da qual o pessoal da Polícia Judiciária veio interceptar, cerca das 18:45 horas do mesmo dia, o 1.º arguido A para investigação, tendo apreendido logo, em revista feita ao corpo deste, um total de 57,70 gramas de quantidade líquida de Ketamina (destinado à venda a outrem), para além de ter apreendido, depois num sítio revelado e indicado pelo próprio 1.º arguido, um total de 110 gramas de quantidade líquida de Ketamina (inicialmente para venda a outrem) e um outro total de 14 gramas de quantidade líquida de Ketamina (inicialmente para seu consumo próprio), quantidadas de Ketamina todas essas que tinham sido trazidas clandestinamente para Macau em 30 de Janeiro e 1 de Fevereiro de 2015 pelo 2.º arguido B e por este entregues ao próprio 1.º arguido;
– por ter sentido remorso da sua conduta, o 1.º arguido prestou colaboração à Polícia, na sequência da qual o pessoal da Polícia Judiciária acabou por interceptar, cerca das 12:00 horas de 3 de Fevereiro de 2015, o 2.º arguido B para investigação;
– foi pelo menos desde o primeiro terço do ano 2014 que o 1.º arguido começou a dedicar-se ao tráfico de droga em Macau, sendo a droga por ele traficada e consumida toda antes trazida clandestinamente para Macau para ser entregue a ele próprio pelo 2.º arguido, mediante o acordo de ambos, e sob indicação dele ao 2.º arguido;
– o 1.º arguido tem seguintes antecedentes criminais:
– em 3 de Dezembro de 2009, no Processo n.º CR1-08-0361-PCS, foi condenado por um crime de tráfico de quantidade diminuta e por um crime de detenção de droga, em multa e pena única de prisão, suspensa na execução, pena de prisão essa já declarada extinta;
– em 14 de Novembro de 2013, no Processo n.º CR1-13-0313-PCS, foi condenado (com o trânsito em julgado da decisão ocorrido em 25 de Novembro de 2013) por um crime de condução sob influência de estupefaciente e por um crime de consumo de estupefaciente, inclusivamente na pena única de cinco meses de prisão, suspensa na execução por um ano e seis meses;
– e em 16 de Dezembro de 2013, no Processo n.º CR2-13-0240-PSM, foi condenado (com o trânsito em julgado da decisão, após decidido o respectivo recurso, ocorrido em 11 de Setembro de 2015) por um crime de condução sob influência de estupefaciente e por um crime de consumo de estupefaciente, na pena única de cinco meses de prisão efectiva;
– os 2.º e 3.º arguidos não têm antecedentes criminais em Macau;
– o 1.º arguido declarou ter por nível de instrução o 3.º ano do curso secundário elementar não completo, trabalhar em casino com vinte a trinta mil patacas de rendimento mensal, e com a mãe e dois descendentes a seu cargo;
– o 2.º arguido declarou ter por nível de instrução o 4.º ano do curso secundário, trabalhar como “bate-fichas”, com cerca de mil e duzentas patacas de rendimento mensal, e sem encargos familiares nem económicos;
– o 3.º arguido declarou ter por nível de instrução o 1.º ano do curso secundário elementar, estar desempregado, a viver à custa do dinheiro de poupança, com os pais a seu cargo, e com encargos de amortização de empréstimo predial.
Conforme a fundamentação do acórdão recorrido (tecida concreta e inclusivamente na página 16 do respectivo texto, a fl. 560v dos autos), os três arguidos, na audiência de julgamento, confessaram os factos delinquentes básicos pelos quais se encontravam acusados.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Os 1.º e 3.º arguidos começam por pedir a atenuação especial da pena do crime de tráfico, com invocação do art.º 18.º da Lei de droga, segundo o qual no caso de prática dos factos descritos inclusivamente no art.º 8.º dessa própria Lei, “se o agente abandonar voluntariamente a sua actividade, afastar ou fizer diminuir consideravelmente o perigo por ela causado ou se esforçar seriamente por consegui-lo, auxiliar concretamente na recolha de provas decisivas para a identificação ou captura de outros responsáveis, especialmente no caso de grupos, de organizações ou de associações, pode a pena ser-lhe especialmente atenuada ou haver lugar à dispensa de pena”.
Da leitura desta norma jurídica, resulta claro que a atenuação especial da pena (ou a dispensa da pena) não é de activação automática ou obrigatória, pois o Legislador empregou a expessão “pode…”.
A propósito do tema, é jurisprudência constante do Venerando Tribunal de Última Instância que: “Para que seja possível accionar o mecanismo de atenuação especial ou dispensa da pena previsto no art.º 18.º da Lei n.º 17/2009, é necessário que as provas fornecidas sejam tão relevantes capazes de identificar ou permitir a captura de responsáveis de tráfico de drogas de certa estrutura de organização, com possibilidade do seu desmantelamento” (cfr. mormente os doutos Acórdãos de 21 de Julho de 2010 do Processo n.º 34/2010, de 11 de Setembro de 2013 do Processo n.º 48/2013, e de 30 de Julho de 2015 do Processo n.º 39/2015).
No caso dos autos, da matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido, não se vislumbra alguma estrutura de organização (no sentido próprio do termo) no grupo de traficantes formado pelos 1.º e 2.º arguidos, pelo que no seguimento da acima referida douta posição jurisprudencial do Venerando Tribunal de Última Instância, não se pode atenuar especialmente a pena do crime de tráfico dos 1.º e 3.º arguidos (e mesmo que o 3.º arguido tenha prestado ajuda à Polícia Judiciária na captura – nota-se – de um só arguido, qual seja, o 1.º arguido, e não na captura sucessiva dos 1.º e 2.º arguidos).
Outrossim, o 3.º arguido fundamenta o seu pedido de atenuação especial da pena do crime de tráfico também com base na cláusula geral de atenuação especial da pena do art.º 66.º, n.o 1 e n.º 2, alínea c), do CP. Contudo, é entendimento do presente Tribunal ad quem que o seu arrependimento da prática dos factos delinquentes de tráfico de droga não dá para neutralizar as consabidamente prementes exigências da prevenção geral deste crime grave (o qual, como tal, deve ser punido com a pena a ser achada dentro da sua moldura normal), daí que não é de atenuar especialmente a pena do tráfico deste arguido recorrente, nos termos gerais do art.º 66.º, n.º 1, do CP.
Os 1.º e 2.º arguidos foram condenados como co-autores materiais de um crime consumado de tráfico de estupefacientes. Em princípio, ambos deveriam levar uma pena de prisão sensivelmente igual na duração, tendo em conta as quantidades de Ketamina em causa na conduta delituosa deles. Se bem que tenha sido pela ajuda prestada pelo 1.º arguido é que a Polícia Judiciária conseguiu interceptar o 2.º arguido, esta circunstância favorável à medida da pena do 1.º arguido fica algo apagada pelos seus antecedentes criminais, sobretudo quando o crime de tráfico desta vez foi cometido na plena vigência do período de suspensão da execução da pena de prisão única imposta no anterior Processo n.º CR1-13-0313-PCS.
Assim sendo, e tudo ponderado à luz dos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 65.º, n.os 1 e 2, do CP, crê-se que as penas achadas pelo Tribunal recorrido para o crime de tráfico destes dois arguidos, dentro da moldura penal de três a quinze anos de prisão, já não têm mais margem para qualquer redução, de maneira que haverá que manter o julgado nesta parte, incluindo a pena parcelar do crime de consumo do 1.º arguido e a pena única deste, já determinadas também com justeza sensata pelo Tribunal recorrido.
Já quanto ao 3.º arguido: considerando inclusivamente a sua ajuda prestada à Polícia Judiciária na captura do 1.º arguido, a falta de seus antecedentes criminais, e a quantidade líquida total (em 19,01 gramas) de droga em causa na sua conduta de tráfico, que é manifestamente inferior à quantidade traficada pelos outros dois arguidos, julga-se, em prol da justiça relativa, ser de passar a punir o crime de tráfico do 3.º arguido somente com seis anos de prisão, com o que, em cúmulo jurídico desta nova pena com a do seu crime de consumo (art.º 71.º, n.os 1 e 2, do CP), este arguido passará a ser punido com seis anos e um mês de prisão única.
Naufragarão, pois, os recursos dos 1.º e 2.º arguidos, enquanto procederá o pedido subsidiário formulado pelo 3.º arguido no seu recurso, sem mais indagação por ociosa.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em negar provimento aos recursos do 1.º arguido A e do 2.º arguido B, e julgar parcialmente provido o recurso do C, passando a condenar este 3.º arguido em seis anos de prisão pela autoria de um crime consumado de tráfico de estupefaciente, e, em cúmulo jurídico desta pena com a já imposta no acórdão recorrido para o seu crime de consumo de estupefaciente, finalmente na pena única de seis anos e um mês de prisão.
Os 1.º e 2.º arguidos pagarão as custas dos seus recursos, com quatro UC de taxas de justiça para o 1.º arguido, e duas UC de taxa de justiça para o 2.º arguido, o qual pagará também duas mil patacas de honorários a favor da sua Ilustre Defensora Oficiosa. Pagará o 3.º arguido metade das custas do seu recurso, com duas UC de taxa de justiça correspondente ao decaimento do seu pedido principal formulado no recurso.
Comunique a presente decisão aos Processos n.os CR1-13-0313-PCS e CR2-13-0240-PSM do Tribunal Judicial de Base, para os efeitos tidos por convenientes.
Macau, 28 de Janeiro de 2016.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
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