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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 29 / 2006

Recorrente: A
Recorrida: B







1. Relatório
   Nos presentes autos foi requerida a providência cautelar de arresto pela B sobre três fracções autónomas registadas em nome da A. A providência foi concedida e a decisão transitada em julgado.
   Pretendendo posteriormente a requerida da providência cautelar proceder ao arrendamento de uma das fracções em causa e realizar nela obras, a requerente da providência manifestou a sua oposição. Por despacho do juiz do Tribunal Judicial de Base, foram autorizados o arrendamento e as obras de modificação.
   Inconformada com esta decisão, veio a requerente do arresto B interpor recurso para o Tribunal de Segunda Instância e obteve provimento com a revogação da decisão recorrida.
   Por sua vez, recorre deste acórdão a parte contrária para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões das suas alegações:
   “1. Os bens penhorados (e assim também os arrestados) podem ser validamente dispostos independentemente da concordância do exequente (arrestante).
   2. Todavia tal disposição é ineficaz em relação ao arrestante.
   3. A ineficácia de que fala a lei significa tão-só o seguinte: os actos de disposição sobre os bens arrestados, não modificarão o seu destino, para que o arresto foi decretado, maxime, não alterarão o direito do arrestante, ficando inelutavelmente sujeito ao destino para que a providência foi decretada.
   4. A disposição dos bens arrestados não carece de autorização judicial para a sua inteira validade. Esta só seria necessária se o acto por si vier a por em causa a finalidade para que foi decretada a providência.
   5. O Tribunal Judicial de Base ao “autorizar” o arrendamento limitou-se apenas a confirmar o que decorre do regime do arresto, e a atestar que o acto em si, não vinha a alterar o direito do arrestante.
   6. A revogação do despacho de “autorização” em nada acrescenta, nem retira dos autos, pois a título algum a arrendamento em causa passou a ser inválido, por falta de suporte judicial.
   7. Mesmo que tal seja uma falsa questão, a concordância do arrestante não é também condição de validade do acto.
   8. É que o arresto não importa de per si a invalidade dos actos de disposição sobre os bens arrestados.
   9. O ónus que o arrendamento representaria para os futuros adquirentes, é uma falsa questão para o caso dos autos, atento ao disposto no n.º 2 do art.º 814.º do CPCM: o arrendamento caducaria logo que se proceda à venda judicial e ao pagamento do preço, desde que celebrado após o registo do arresto.
   10. Dos autos não resulta que as projectadas obras possam reduzir de antemão o valor da fracção, diminuindo-se assim a garantia patrimonial que representa a fracção arrestada.
   11. Também a fundamentação vertida no douto acórdão a favor do provimento do recurso interposto pela autora, é insuficiente, pois embora respeitável, não demonstra uma relação de probabilidade séria de que tais obras podem efectivamente diminuir a garantia que a fracção representa.
   12. Ao dar provimento ao recurso interposto pela autora, o Tribunal ora recorrido, deu uma interpretação superficial do disposto nos art.ºs 351.º, CPCM e 618.º do CCM, bem como desatendeu a norma do n.º 2 do art.º 814.º do CCM.”
   Pedindo o provimento do recurso e a revogação do acórdão recorrido.
   
   A recorrida apresentou as seguintes conclusões das suas contra-alegações:
   “1. Por requerimento de fls. 601, veio a “A” apresentar recurso do douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Segunda Instância de Macau, o qual julgou procedente o recurso interposto pela ora recorrida.
   2. Na sua alegação a recorrente olvida que, o arresto se traduz num meio conservatório da garantia patrimonial de um crédito, que à semelhança da penhora, consiste numa apreensão judicial de bens, encontrando a sua regulação substantiva e adjectiva próprias nos art.ºs 615.º a 618.º do CC e 351.º a 355.º do CPC, normativos que, para lá de consagrarem o arresto como um meio de conservação da garantia patrimonial dos credores, regulam também os seus pressupostos e efeitos e determinam quais são as suas vicissitudes.
   3. É nos art.ºs 704.º e seguintes do CPC – e, no que especificamente concerne ao arresto sobre bens imóveis, nos art.ºs 723.º e seguintes – que reside, por força da remissão contida no n.º 2 do art.º 351.º, a regulamentação do arresto e a resposta acerca dos seus efeitos e vicissitudes.
   4. Um dos principais efeitos jurídicos do arresto, cuja fonte se localiza precisamente no regime da penhora, é a perda dos poderes de gozo da requerida do arresto em relação ao objecto do arresto, as três fracções autónomas melhor identificadas nos autos e entre as quais se encontra a fracção “QR/C”.
   5. Assim, quaisquer obras de modificação a realizar na fracção arrestada deveriam ter sido propostas pelo depositário e autorizadas somente depois de ouvidos requerente e requerida mas apenas se tais obras se destinassem a beneficiar e servir os fins da presente acção.
   6. Após o decretamento do arresto os bens foram retirados da posse e livre disposição da requerida / recorrente para que fiquem e permaneçam vinculados e adstritos aos fins deste processo, isto é a satisfação do direito de crédito da recorrida, não podendo a requerida, como tal, efectuar ou promover a realização de quaisquer obras na fracção “QR/C”, por se encontrar privada da sua administração.
   7. Acresce que, a administração dos bens judicialmente apreendidos, para lá de ser retirada ao requerido e proprietário dos bens, está limitada e circunscrita ao indispensável para a sua preservação, enquanto garantia patrimonial.
   8. As obras em questão, cuja descrição pormenorizada consta do ofício de fls. 389 e seguintes, prevendo a alteração da estrutura e da substância da fracção autónoma “QR/C”, de tal modo que a sua reposição no estado original iria obrigar a realização de novos, profundos e dispendiosos trabalhos, desconhecendo-se inclusive se os mesmos são de exequibilidade possível, extravasam em muito os limites de uma normal administração e devem por isso ser liminarmente rejeitadas.
   9. As obras em apreço não visando servir os fins do presente arresto, que são o de garantir o pagamento do crédito da requerente / recorrida, mas sim beneficiar exclusivamente a requerida / recorrente, não poderão ser autorizadas.
   10. A concretização das obras em questão implicaria uma diminuição efectiva do valor de mercado do imóvel arrestado e com isso uma redução do valor da garantia em que o presente arresto se traduz, ao acarretar uma enorme e significativa limitação do uso e possibilidade de utilização da fracção arrestada (que apenas poderia passar a ser usada com os fins acima mencionados).
   11. Uma das consequências dos efeitos típicos e legais do arresto como apreensão judicial de bens, é a requerida / recorrente carecer em absoluto de qualquer legitimidade para proceder ao arrendamento da fracção autónoma “QR/C” por lhe terem sido sonegados os poderes de gozo sobre esta fracção.
   12. A decisão sobre o modo de exploração dos bens arrestados tem de ser presidida pela obrigatoriedade de essa exploração servir os interesses do arresto e, como tal, destinar-se exclusivamente a permitir a conservação da garantia patrimonial do crédito da requerente, garantia em que tal arresto se traduz.
   13. O arrendamento da fracção autónoma “QR/C”, nos moldes em que a requerente pretende ver deferida a sua autorização, é, por força do disposto no n.º 1 do art.º 618.º do CC, totalmente ineficaz em relação à requerente, ora recorrida.
   14. O que a lei pretende salvaguardar com a disposição acima expressa é que o requerido possa dispor ou onerar os bens arrestados de maneira a serem frustradas as finalidades do arresto.
   15. O arrendamento constitui um ónus que cai no âmbito de aplicação da norma legal supra mencionada, que compreende não só os actos de alienação e oneração em sentido estrito mas também os actos constitutivos de direitos reais menores.
   16. Diga-se em abono da tese de o arrendamento configurar um ius in re que, ao pertencer “ao locatário um direito de gozo que ele exerce directamente sobre a coisa, sem necessidade de cooperação activa e permanente do locador” está plenamente justificada a atribuição de carácter real à locação, mormente aos direitos do locatário, acrescendo a isto a consagração legal da oponibilidade da locação ao adquirente da coisa locada no art.º 1004.º do CC.
   17. Por isso a generalidade da doutrina e a grande maioria da jurisprudência consideram que o art.º 1004.º é inaplicável à venda da coisa locada em processo executivo. “Esta hipótese deve considerar-se incluída na regra do n.º 2 do art.º 824.º, sendo portanto, inoponíveis ao comprador as relações locativas constituídas posteriormente ao registo de qualquer arresto, penhora ou garantia (e ainda as constituídas em data anterior, na media em que a respectiva eficácia perante terceiros dependa de registo e este não haja sido feito).
   18. A extensão do arresto aos frutos civis dos imóveis decorre da lei e não precisa, à semelhança do que sucede com a penhora, de ser requerida autonomamente. É uma extensão automática que opera caso se venha a concluir que os imóveis apreendidos se encontram arrendados ou o venham a ser no decurso do procedimento cautelar (mas aqui com os limites e as restrições que já se enunciaram).
   19. Apenas no caso de exclusão expressa do arresto de quaisquer partes integrantes ou frutos por parte do despacho que ordena o arresto é que esta extensão legal e automática não opera, o que in casu não sucedeu.
   20. Caso as fracções autónomas arrestadas nos presentes autos venham a ser, no âmbito da respectiva exploração a cargo do depositário, arrendadas as rendas a receber estão por força da lei abrangidas pelo arresto e devem, por isso, ser depositadas à ordem dos autos para garantia, em futura acção executiva, do direito de crédito da requerente.
   21. O douto acórdão recorrido não enferma de nenhum dos vícios que a recorrente lhe imputa, tendo efectuado uma irrepreensível aplicação e interpretação das normas jurídicas relevantes.”
   Entendendo que deve ser rejeitado o recurso.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   Arrendamento de imóvel arrestado
   A recorrente considera que as obras e arrendamento a realizar numa das fracções autónomas arrestadas são válidos, independentemente do consentimento da recorrida e da autorização do tribunal, e não conduz à diminuição do valor da respectiva fracção.
   
   Para apreciar a questão, é de examinar os efeitos que o arresto tem sobre o bem arrestado.
   Segundo o art.º 351.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), o arresto consiste numa apreensão judicial de bens, à qual são aplicáveis as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrariar o preceituado na secção deste Código dedicada a arresto.
   Em termos substantivos, prescreve o art.º 618.º do Código Civil (CC):
   “1. Os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao requerente do arresto, de acordo com as regras próprias da penhora.
   2. Ao arresto são extensivos, na parte aplicável, os demais efeitos da penhora.”
   O n.º 1 deste artigo corresponde ao art.º 809.º do mesmo Código que estatui os efeitos da penhora:
   “Sem prejuízo das regras do registo, são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados.”
   
   Como meio de garantia do cumprimento dos direitos do credor contra o risco de perder a subsistência dos bens do devedor, o arresto retira o bem do poder de gozo do arrestado e torna relativamente ineficazes os actos de disposição do direito subsequente.
   Adaptando o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa sobre a penhora ao arresto, tal ineficácia relativa significa que os actos de disposição ou oneração são inoponíveis ao requerente do arresto, pelo que, quanto a ele, é como se não tivesse havido qualquer disposição ou oneração do bem ou direito arrestado. Mas naturalmente, a inoponibilidade relativa dos actos praticados pelo arrestado sobre os bens arrestados justifica-se apenas na exacta medida em que ela seja necessária à prossecução dos fins de satisfação do crédito do arrestante.1
   E em relação ao arrendamento, continua o mesmo autor: “A penhora de um prédio provoca a inoponibilidade ao processo executivo do arrendamento celebrado pelo executado.”2
   Portanto, o arrendamento de imóvel objecto do arresto celebrado pelo arrestado é inoponível ao arrestante.
   
   Por outro lado, dispõe o art.º 729.º do CPC:
   “1. Além dos deveres gerais do depositário, incumbe ao depositário judicial o dever de administrar os bens com a diligência e zelo de um bom pai de família, bem como a obrigação de prestar contas.
   2. Na falta de acordo entre o exequente e o executado sobre o modo de explorar os bens penhorados, o juiz decide, ouvido o depositário e feitas as diligências necessárias.”
   Assim, cabe ao depositário, e não ao arrestado, administrar o bem arrestado. Se houver acordo entre o arrestante e o arrestado, a exploração dos bens arrestados é realizada segundo o acordado. Na falta de acordo entre eles, o juiz decide o que é mais conveniente, depois de ouvir o depositário e feitas as diligências necessárias, podendo, por exemplo, autorizar o arrendamento como forma de exploração dos bens penhorados e arrestados. Mas em qualquer dos casos, é sempre o depositário a realizar a exploração.
   Há autor até defende a nulidade do arrendamento efectuado pelo executado:
   “Constituindo o arrendamento um acto de administração, a situação enquadrava-se melhor no art.º 843.º: após a penhora, só ao depositário cabia efectuá-lo, pelo que era nulo (e não apenas inoponível à penhora) o arrendamento efectuado pelo executado.”3
   
   Portanto, com a oposição da requerente do arresto, o juiz não pode, sem mais, autorizar o arrendamento e as obras de modificação sobre uma das fracções arrestadas requeridos pela arrestada, fora do mecanismo previsto no n.º 2 do referido art.º 729.º do CPC, tal como foi decidido na primeira instância.
   É possível o arrendamento e a realização das obras de alteração na fracção arrestada, designadamente por prazo curto, mas o arrendamento deveria ser sempre feito pelo depositário, sujeito naturalmente à caducidade prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 1022.º do CC por fim dos poderes legais de administração.
   É de julgar, assim, improcedente o recurso.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
   Custas pela recorrente nesta e na segunda instância.


   Aos 17 de Outubro de 2007.



Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, LEX, Lisboa, 1998, p. 240 e 241.
2 Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, p. 243.
3 José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, Depois da Reforma, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2004, p. 266, nota 7-A. O art.º 843.º é do Código de Processo Civil português e tem o mesmo conteúdo do referido art.º 729.º do Código de Processo Civil de Macau.
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Processo n.° 29 / 2006 11