Processo nº 615/2014
Data do Acórdão: 25FEV2016
Assuntos:
Impugnação da matéria de facto
Presunções judiciais
SUMÁRIO
1. Não tendo sido cumprido o ónus de especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, nos termos prescritos no artº 599º/1-a) do CPC, é de rejeitar o recurso na parte que impugnou a matéria de facto.
2. A decisão de direito só pode fundar-se nos factos provados e/ou nas ilações extraídas dos factos provados, mas nunca directamente nos depoimentos em si, pois os depoimentos, tal como outros meios de prova, têm por função demonstrar factos, e são os factos ou as ilações deles extraídas que, por sua vez, vão sustentar a decisão de direito.
3. No exercício do seu poder de avaliação e interpretação da matéria de facto, o Tribunal de recurso pode utilizar presunções judiciais, fundadas nas máximas de experiência, nos princípios da lógica ou nos juízos correntes de probabilidade, deduzir outros factos a partir dos factos assentes, e na implementação do sistema de substituição, substituir, de imediato, a decisão impugnada por outra que a nova realidade fáctica imponha.
4. As ilações ou presunções judiciais a deduzir a partir dos factos apurados na 1ª instância são consequências lógicas ou desenvolvimento lógicos da factualidade provada e não podem alterar nem divergir desses factos julgados assentes pelo tribunal a quo, e conflituar com as respostas afirmativas e negativas aos quesitos.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 615/2014
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
A, veio propor contra B, ambas devidamente identificadas nos autos, a acção ordinária, que foi registada com o nº CV1-11-0102-CAO e correu os seus termos no 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, pedindo que fosse anulado o negócio de compra e venda de um imóvel, celebrado entre a Ré B e C, marido da Autora, assim como o cancelamento do respectivo registo da aquisição do imóvel a favor da Ré e tendo para o efeito requereu o chamamento do seu marido C como seu associado.
Citada para contestar e pronunciar-se sobre o requerido chamamento de C, veio a Ré contestar por excepção e por impugnação, tendo deduzido pedido reconvencional contra a Autora e o chamado.
Admitido o requerido chamamento e citado para a acção, o chamado nada disse.
Devidamente tramitada a acção, o Tribunal de primeira instância veio a proferir a seguinte sentença, julgando improcedente a acção:
A, casada com C, no regime de comunhão de adquiridos, de nacionalidade Chinesa, titular do BIRPM nº 7XXXXXX(3), residente em Macau na Rua de XXXX nº XX Edifício XXXX, 1º andar A,
vem instaurar a acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra
B, titular do BIRPM nº 5XXXXXX(8), casada, residente em Macau na Rua da XXXX nº XX, R/C A.
Vem a Autora alegar que estando casada com o seu marido desde 09.08.1996 este adquiriu por sucessão hereditária metade da fracção autónoma que identifica, vindo em 14.03.1997 a adquirir a outra metade indivisa da mesma, declarando aquando da escritura de compra e venda ser solteira o que não correspondia à verdade.
Em 03.01.2011 o marido da Autora vendeu a referida fracção autónoma à Ré pelo preço de MOP$1.754.400,00 tendo para o efeito declarado ser solteiro facto que não correspondia à verdade.
Desde 02.08.2010 a 30.03.2011 o marido da Autora esteve internado e impossibilitado de sair da Ala de Psiquiatria do Centro Hospitalar Conde São Januário apresentando total descontrolo das suas acções em virtude da doença e da medicação que tomava, situação que era do conhecimento da Ré.
Requerendo a intervenção provocada do seu marido C vem a Autora pedir que seja anulada a escritura pública celebrada em 3 de Janeiro de 2011 e cancelado o registo de aquisição do mencionado imóvel por banda da Ré.
Citada a Ré para contestar veio esta fazê-lo defendendo-se por excepção invocando a ineptidão da petição inicial, a caducidade do direito da acção, a ilegitimidade passiva e por impugnação.
Veio também a Ré deduzir reconvenção alegando que caso venha a proceder a pretensão da Autora e uma vez que a Ré não tinha conhecimento dos alegados vícios a mesma tem de ser ressarcida não só do preço que pagou pela compra da fracção como também das despesas em que incorreu por conta dessa compra tais como o imposto de selo, emolumentos notariais e imposto de selo, registo predial e honorários, bem como, o valor gasto em obras de conservação, reparação e beneficiação do imóvel, pelo que, pede a condenação da Autora e C a pagarem à Ré a quantia global de MOP$2.126.243,00.
A Autora replicou respondendo à matéria das excepções, defendendo-se por impugnação quanto à matéria da reconvenção no que concerne às obras e pedindo a condenação da Ré como litigante má-fé, concluindo pela improcedência das excepções e pedido reconvencional e ser a acção julgada procedente como requerido na p.i.
A Ré respondeu à matéria da má-fé.
A folhas 128 foi proferido despacho a admitir a intervenção principal provocada de C.
Foi proferido despacho saneador onde se julgou improcedente a excepção da ineptidão da petição inicial bem como a da ilegitimidade.
Procedeu-se a julgamento com observância do formalismo legal mantendo-se a validade da instância.
As questões a decidir nestes autos consistem em saber:
1. Da caducidade do direito da Autora para pedir a anulação da escritura por nela não ter intervindo;
2. Se o negócio enferma de vício decorrente da incapacidade por anomalia psíquica do interveniente C aquando da celebração da escritura;
3. Quanto ao pedido reconvencional, em caso de procedência do pedido da Autora se a Ré incorreu nas despesas que invoca por força e na sequência da aquisição da fracção autónoma, bem como se realizou por conta da coisa das despesas que invoca a título de benfeitorias e consequentemente se tem direito a ser ressarcida das mesmas.
Da instrução e discussão apurou-se a seguinte matéria de facto:
a) A Autora e CC, contraíram casamento civil, em Macau, no dia 9 de Agosto de 1996, sem convenção antenupcial.
b) Por sucessão hereditária CC, recebeu metade indivisa da fracção autónoma designada por “E-DOIS” do segundo andar “E”, do prédio sito em Macau, com o n.º 7 da Rua do XXXX.
c) Em 14 de Março de 1997, CC, adquiriu por compra a outra metade indivisa da fracção autónoma designada por “E-DOIS” do segundo andar “E”, do prédio sito em Macau, com o n.º 7 da Rua do XXXX.
d) Em 29 de Dezembro de 2010, C (C), por acordo escrito, na qualidade de promitente vendedor, declarou prometer vender à Ré, que sua vez declarou prometer comprar, pelo preço global de HKD$1,700,000.00 (um milhão e setecentos mil dólares de Hong Kong), equivalente a MOP$1,754,400.00 (um milhão, setecentas e cinquenta e quatro mil e quatrocentas patacas), a referida fracção autónoma “E-DOIS” do segundo andar “E”, do prédio sito em Macau, com o n.º 7 da Rua do XXXX.
e) No momento da celebração do referido acordo escrito, a Ré pagou a C (C), a título de sinal, o montante de HKD$500,000.00 (quinhentos mil dólares de Hong Kong), conforme disposto na cláusula 3ª, tendo entregue a este para o efeito um cheque bancário (“cashier order”) nesse valor.
f) Foi convencionado no aludido acordo escrito, que a escritura definitiva de compra e venda seria outorgada impreterivelmente até ao dia 28 de Janeiro de 2011, obrigando-se a Ré a pagar nessa ocasião o preço remanescente do referido imóvel, no montante de HKD$1,200,000.00 (um milhão e duzentos mil dólares de Hong Kong), conforme se retira das cláusulas 3ª e 4ª do mesmo acordo escrito.
g) Em 3 de Janeiro de 2011, C, declarou vender à Ré Leung, Siu Peng, pelo preço de MOP$1,754,400.00 (um milhão setecentas, e cinquenta e quatro mil e quatrocentas patacas), livre de quaisquer ónus ou encargos, a fracção autónoma, para habitação, designada por “E2” do 2.º andar “E”, da Rua do XXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 20XXX, a fls. 37, do Livro B-46.
h) A Ré despendeu com emolumentos notariais, impostos de selo, registo predial, e em honorários para a realização do negócio o valor global de MOP$41,843.00.
i) Em 2 de Agosto de 2010 C, por sofrer de esquizofrenia, foi internado na Ala de Psiquiatria do Centro Hospitalar Conde São Januário, tendo tido alta hospitalar em 30 de Março de 2011.
j) O internamento referido no item anterior impossibilitava C de sair da Ala de Psiquiatria onde estava internado, tendo, contudo, sido autorizado pela médica a sair do hospital no período de 21 de Dezembro de 2010 a 4 de Janeiro de 2011, o que fez.
k) Em 02.09.2011 C foi internado no Centro Hospitalar Conde de S. Januário.
l) A Ré procedeu a obras de conservação, reparação e beneficiação da fracção : reparação e pintura das paredes e do tecto, reparação e beneficiação da cozinha e casa de banho, reparação e renovação do sistema eléctrico e substituição do pavimento, tendo gasto MOP$330.000,00 (trezentas e trinta mil patacas) com a sua execução.
Cumpre assim, apreciar e decidir.
Da excepção de caducidade do direito à acção por banda da Autora.
O conhecimento desta questão face ao que dispõem os nº 1 e 2 do artº 1554º do C.Civ. apenas interessaria à decisão da causa caso a causa de pedir fosse a venda de bem comum sem o consentimento do cônjuge aqui autor.
Porém, tal como resulta do despacho de folhas 153 a causa de pedir desta acção não é a anulabilidade da venda com base na falta de consentimento do cônjuge meeiro, mas sim e apenas com base na incapacidade acidental do vendedor.
Destarte, não foi quesitada a matéria relativa à caducidade do direito à acção por inútil, como inútil continua a ser conhecer da questão.
Pelo que, pese embora haja sido invocada pela Ré em sede de excepção, por não ser essa a causa de pedir fica prejudicada a apreciação da mesma.
Da incapacidade acidental de C aquando da realização da venda a que se reportam estes autos.
Pese embora Lei, Si Tong estivesse internado na Ala de Psiquiatria, os factos a que se reportam estes autos ocorreram quando lhe foi autorizado uma interrupção do internamento.
Nos termos do artº 335º nº 1 do C.Civ. caberia à Autora demonstrar a incapacidade acidental de Lei, Si Tong aquando da realização da escritura, porém nada se provou no que a essa matéria concerne.
Destarte, a acção no que concerne aos pedidos da Autora apenas pode improceder.
Do pedido reconvencional.
O Pedido reconvencional é feito apenas para a eventualidade de proceder o pedido da Autora de anulação da escritura pública.
Ou seja, o pedido reconvencional está numa relação de subsidiariedade relativamente ao pedido da Autora.
Improcedendo o pedido da Autora fica prejudicada a apreciação do pedido reconvencional, uma vez que nada há a restituir.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, impõe-se julgar a acção improcedente porque não provada e em consequência absolver a Ré do pedido da Autor julgando-se prejudicada a apreciação do pedido reconvencional face à improcedência daquele.
Custas a cargo da Autora.
Registe e notifique.
Inconformada com a sentença, a Autora recorreu dela para esta segunda instância, concluindo e pedindo:
1. O presente recurso vem interposto da douta Sentença que decidiu julgar totalmente improcedente a presente acção ordinária instaurada pela Autora, ora Recorrente, e absolver a Ré, ora Recorrida, dos pedidos formulados nos autos, que se traduziam em, ser anulada a escritura pública celebrada no cartório do Notário Privado Luís Reigadas, no dia 3 de Janeiro de 2011, entre C e a Ré e ser cancelado o registo de aquisição da fracção autónoma, para habitação, designada por "E2" do 2.° andar "E", da Rua do XXXX, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 20XXX, a fls. 37, do Livro B-46.
2. Resulta claramente que a douta decisão recorrida se encontra inquinada do vício de falta de fundamentação, assim como erro na apreciação da prova o que importará a respectiva revogação e substituição da mesma por douto Acórdão desse Venerando Tribunal que condene a ora Recorrida nos termos formulados nos presentes autos.
3. O Tribunal a quo não fundamenta devidamente a sua decisão, pois limita-se a referir a interrupção do intemamento e que era à ora Recorrente que caberia provar a incapacidade acidental de C.
4. Na verdade, resulta do próprio teor da decisão que o douto Tribunal a quo considerou pelo menos como provado que C, por sofrer de esquizofrenia, foi internado na Ala de Psiquiatria do Centro Hospitalar Conde São Januário, em 2 de Agosto de 2010 C, tendo tido alta hospitalar em 30 de Março de 1011.
5. Ao aceitar tal factualidade, o próprio Tribunal a quo reconheceu que durante esse período de tempo, C se encontrava diminuído mentalmente, caso contrário, não havia necessidade no referido internamento.
6. No entanto, o Tribunal a quo ressalva na sua douta sentença que não obstante C estivesse internado na Ala Psiquiátrica, os factos a que se reportam estes autos ocorreram quando lhe foi autorizada uma interrupção no internamento.
7. A verdade é que uma interrupção do internamento não significa que o estado do paciente, que levou ao internamento do mesmo, se tenha alterado, ou tenha havido alguma melhoria, pois para isso existe a alta médica, e caso se entendesse que C apresentava francas melhorias no seu estado de saúde, a sua médica ter-lhe-ia dado alta médica.
8. A sua saída temporária do internamento apenas se deveu ao facto de se tratar da época natalícia e o paciente ter pedido por diversas vezes alta médica conforme confirmado pela Dra. D, médica que acompanhou C durante o seu internamento.
9. Sendo que a mesma testemunha afirmou que lhe concedeu uns dias de "férias" hospitalares, mas que o paciente continuava em tratamento, tendo inclusivamente de tomar medicação.
10. Nesta conformidade, não se entende a posição tomada pelo douto Tribunal a quo, quando refere que os factos a que se reportam os autos ocorreram quando lhe foi autorizado uma interrupção do internamento. Pois ficou provado que mesmo durante esse período C se encontrava em tratamento e a ser medicado, não tendo havido uma melhoria significativa no seu estado de saúde, caso contrário, teria recebido alta hospitalar ao invés das já mencionadas “férias”.
11. A verdade é que C esteve internado por padecer de esquizofrenia, e tal maleita condicionava todos os aspectos da sua vida, traduzindo-se de acordo com a Dra. D no facto de o paciente entender que as pessoas que estão ao lado não o tratam bem e tendo também têm ilusões, parecendo que alguém está a falar com eles e também não conseguem controlar o seu próprio pensamento, por exemplo, durante uma conversa que tenha consigo é possível que ele ache que outras pessoas podem conhecer o conteúdo da conversa entre ele e outra pessoa, e ao ter estes sintomas não consegue dormir.
12. Resultando evidente que dentro do período compreendido entre 2 de Agosto de 2010 e 3 de Março de 2011, C apresentava tais sintomas, tendo inclusivamente a esposa de C telefonado para o hospital durante as “ferias” dando conta de que o paciente não estava bem.
13. Mesmo após ter tido alta em Março de 2011, C voltou a ser internado novamente em 2 de Setembro do mesmo ano. O que demonstra que o seu quadro clínico não só era altamente instável, como os próprios médicos que o voltaram a internar consideraram que os sintomas da esquizofrenia continuavam a manifestar-se.
14. O testemunho da Dra. D, foi no mínimo incoerente, pois tanto afirmava que C apresentava claros sinais de esquizofrenia, como de seguida dizia que afinal o seu estado era estável, para mais à frente afirmar que durante o período de ausência do hospital ele continuava em tratamento e medicado, o que demonstra que afinal não havia estabilidade alguma, e tal incoerência faz com que o testemunho da Dra. D não seja credível bastante para criar a convicção de que o estado de saúde de C era estável.
15. Aliás, o testemunho do Dr. D, segunda testemunha a ser ouvida no julgamento, o médico que internou C em 2 de Agosto de 2010, foi bastante mais claro, tendose limitado a referir que entre 1997 e 2010, período durante o qual acompanhou C, este esteve internado por 5 vezes, o que é por si só revelador da total instabilidade mental do paciente.
16. Afirmou também com clareza que o paciente sofria de esquizofrenia e que foi esta a causa do seu internamento em 2 de Agosto de 2010 e que não teve conhecimento das supra referidas "férias" hospitalares.
17. Por fim, assegurou que só depois de o paciente ter uma situação estável, é que lhe poderia ser dada alta médica, ao contrário do afirmado pela primeira testemunha que justificou o facto da concessão das "férias" com a estabilidade do paciente, nessa conformidade, a ser assim, ao invés das "férias" teria imediatamente dado alta ao paciente.
18. Portanto, na valoração dos depoimentos das testemunhas, consideramos que o douto Tribunal a quo, optou por valorizar o testemunho confuso da Dra. Lao Im Wal, em detrimento do testemunho claro e elucidativo do Dr. D.
19. A quarta testemunha ouvida, E, bombeiro e colega de trabalho de C, referiu claramente que era facilmente perceptível que C padecia de uma doença mental e que tal facto era notório, mesmo para quem não o conhecesse.
20. Não entende a ora Recorrente o porquê de este último testemunho não ter sido valorizado, uma vez que o mesmo comprova cabalmente que o problema de C era notório, o que levaria a que o estado de incapacidade acidental fosse cabalmente provado.
21. Assim, nos termos do artigo 250º do Código Civil, deveria o Tribunal a quo, ter considerado que durante o acto praticado por C na celebração do contrato de compra e venda do imóvel melhor identificado nos autos, este se encontrava e incapacitado de entender o sentido da sua declaração negocial, sendo que tal facto era notório, de acordo com a prova produzida em sede de audiência de julgamento, principalmente pelos testemunhos das segunda e quarta testemunhas.
22. Na douta sentença da qual se recorre, o Tribunal a quo, na sua parca fundamentação, refere que caberia à Autora demonstrar a incapacidade acidental de C aquando da realização da escritura, porém, nada se provou no que a essa matéria concerne.
23. Ora, este entendimento não é pacífico, uma vez que há discordância em alguma doutrina quanto a quem é que incumbe provar a incapacidade.
24. Acresce que, como se não fosse bastante a actualidade e notoriedade do problema de saúde de C, durante a escritura de compra e venda do imóvel melhor descrito nos presentes autos, notamos ainda um facto que não foi devidamente valorado pelo douto Tribunal a quo e que consideramos ser fundamental para se aferir do estado esquizofrénico de C na altura da celebração do contrato de compra e venda do imóvel melhor descrito no presentes autos, realizada em 3 de Janeiro de 2011.
25. Tal facto traduz-se num erro grosseiro sobre o valor de venda do imóvel, pois as partes declararam que o valor da venda seria de MOP$722,400.00, tendo esse valor constado da escritura pública de compra e venda. Ora, tal valor é irrisório, tendo em conta o imóvel compreendido no referido negócio.
26. Sendo alarmante que uma vez o teor da escritura pública tenha sido lido em voz alta e traduzida para a língua chinesa, nenhuma das partes se tenha apercebido de tal anormalidade.
27. Todavia, algum tempo depois, o referido valor foi rectificado, o que leva a crer que na altura da assinatura do contrato de compra e venda, Lao, Sio Tong não se encontrava na posse de todas as suas capacidades cognitivas, sendo tal facto notório, tendo-se assim, aproveitado disso mesmo os ora Recorridos para adquirirem o imóvel em referência por um valor muito abaixo do valor real do imóvel.
28. Todos os argumentos supra, vão ao encontro do facto de, na altura da assinatura do contrato de compra e venda do imóvel melhor identificado nos presentes autos, C se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração negocial, tendo ficado provado que tal incapacidade era notória, o que, nos termos do artigo 250º do Código Civil, conduz inevitavelmente à anulação da escritura pública de compra e venda.
29. Donde se retira que o douto tribunal a quo incorreu numa errónea apreciação da prova trazida aos presentes autos o que inquina a decisão ora sob recurso de erro de julgamento da matéria de facto.
Termos em que deverá ser revogada a douta Sentença do Tribunal a quo e ser substituída por douta decisão desse Venerando Tribunal que determine a anulação da escritura pública celebrada em 3 de Janeiro de 2011 e o respectivo cancelamento do registo da aquisição do mencionado imóvel a favor do ora Recorrido., com todas as consequências legais.
Assim se fará a costumada
Justiça!
A Ré respondeu pugnando pela improcedência do recurso.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Tendo em conta a forma como foram tecidas as conclusões do recurso, parece que a Autora recorrente começa por impugnar a matéria de facto, na parte que diz respeito à matéria relacionada com a (in)capacidade do chamado C no momento da celebração da escritura pública da compra e venda, e depois pretende, no caso do êxito da alteração da matéria de facto, rogar a revogação da decisão de direito e em substituição a consequente procedência da acção da anulação.
E subsidiariamente, questiona a decisão de direito tomada pelo Tribunal a quo no sentido de julgar improcedente a acção de anulação com fundamento no inêxito da demonstração pela Autora da incapacidade acidental de C aquando da realização da escritura pública, uma vez que na óptica da recorrente, a matéria de facto assente na primeira instância já demonstra a notoriedade da incapacidade acidente de C nos termos prescritos no artº 250º do CC e portanto é suficiente para sustentar a procedência da acção de anulação.
Então comecemos por apreciar o fundamento principal do recurso, que é a impugnação da matéria de facto assente.
Apesar de ter identificado e transcrito algumas passagens da gravação dos depoimentos prestados por três testemunhas na audiência de julgamento para sustentar a pretendida comprovação da incapacidade acidental de C, e ter indicado alguns depoimentos que na sua óptica foram mal valorados, a recorrente não especificou quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, tendo-se limitado a dizer conclusivamente que, tendo em conta os depoimentos transcritos, o estado de incapacidade acidental de C devia ter sido cabalmente provado.
Assim, por incumprimento manifesto do ónus de especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, nos termos prescritos no artº 599º/1-a) do CPC, é de rejeitar o recurso na parte que impugnou a matéria de facto.
Passemos então a debruçar-nos sobre o fundamento subsidiário do recurso.
Aqui a recorrente pretende questionar a interpretação da matéria de facto feita na sentença recorrida pelo Tribunal a quo, imputando-lhe o erro na avaliação da matéria de facto provada.
Para o Tribunal a quo, apesar de ter sido provado que C estava internado por ter padecido da esquizofrenia durante o período compreendido entre 02AGO2010 e 03MAR2011, o certo é que a Autora não logrou demonstrar a incapacidade acidental de Lei Si Tong aquando da realização da escritura pública, uma vez que esta foi outorgada no meio de um período compreendido entre 21DEZ2010 e 04JAN2011, em que lhe foi autorizada pela médica assistente uma interrupção do internamento e em que comprovadamente saiu da Ala de Psiquiatria do hospital.
Pelo contrário, a recorrente defende que, perante a matéria de facto provada, nomeadamente o facto de C ter sido internado por ter padecido da esquizofrenia durante o período compreendido entre 02AGO2010 e 03MAR2011, devia-se ter ficado provado que “mesmo durante esse período C se encontrava em tratamento e a ser medicado, não tendo havido uma melhoria significativa no seu estado de saúde, caso contrário, teria recebido alta hospitalar ao invés das já mencionadas “férias”.
Portanto, na esteira desse raciocínio, a recorrente entende que o Tribunal a quo andou mal quando julgou improcedente a acção de anulação com fundamento de que “……os factos a que se reportam estes autos ocorreram quando lhe foi autorizada uma interrupção do internamento” .
Ora, conforme se vê na sentença recorrida, foi pelo Tribunal a quo dada provada a seguinte matéria de facto, relacionada com o estado de saúde de C:
* Em 2 de Agosto de 2010 C, por sofrer de esquizofrenia, foi internado na Ala de Psiquiatria do Centro Hospitalar Conde São Januário, tendo tido alta hospitalar em 30 de Março de 2011.
* O internamento referido no item anterior impossibilitava C de sair da Ala de Psiquiatria onde estava internado, tendo, contudo, sido autorizado pela médica a sair do hospital no período de 21 de Dezembro de 2010 a 4 de Janeiro de 2011, o que fez.
* Em 02.09.2011 C foi internado no Centro Hospitalar Conde de S. Januário.
Portanto, não constam da factualidade assente os “factos” reportados como provados pela recorrente, de que C, no momento da celebração da escritura pública, se encontrava incapacitado, por ter padecido da esquizofrenia, para celebrar validamente o negócio de compra e venda da fracção.
E quanto muito, esses “factos” são meras ilações que a recorrente tenta extrair do facto de C se encontrar internado, por sofrer de esquizofrenia, naquele período compreendido entre 02AGO2010 e 03MAR2011 e do teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas D e E que descreveram o estado de saúde de C.
Mas já pretende com fundamento nessas ilações lograr a revogação da decisão de direito e em substituição a anulação por este TSI do negócio da compra e venda.
Assim, a nós cabe agora averiguar se com o recurso à presunção judicial podemos extrair os factos demonstrativos da incapacidade acidental de Lio Sio Tong, e da sua notoriedade e cognoscibilidade no momento da feitura da escritura pública.
Ora, em primeiro lugar, é de repetir que, ao contrário do que alega a recorrente, não foi levado à base instrutória e portanto nunca podia ter sido provado nos autos que “mesmo durante esse período C se encontrava em tratamento e a ser medicado, não tendo havido uma melhoria significativa no seu estado de saúde, caso contrário, teria recebido alta hospitalar ao invés das já mencionadas “férias”.”
Em segundo lugar, é de salientar que a decisão de direito só pode fundar-se nos factos provados e/ou nas ilações extraídas dos factos provados, mas nunca directamente nos depoimentos em si, pois os depoimentos, tal como outros meios de prova, têm por função demonstrar factos, e são os factos ou as ilações deles extraídas que, por sua vez, vão sustentar a decisão de direito.
Ante esta matéria de facto provada, o Tribunal a quo fundamentou a improcedência da acção de anulação nestes termos:
Da incapacidade acidental de C aquando da realização da venda a que se reportam estes autos.
Pese embora Lei, Si Tong estivesse internado na Ala de Psiquiatria, os factos a que se reportam estes autos ocorreram quando lhe foi autorizado uma interrupção do internamento.
Nos termos do artº 335º nº 1 do C.Civ. caberia à Autora demonstrar a incapacidade acidental de Lei, Si Tong aquando da realização da escritura, porém nada se provou no que a essa matéria concerne.
Destarte, a acção no que concerne aos pedidos da Autora apenas pode improceder.
Ou seja, para o Tribunal a quo, a improcedência da acção deve-se ao facto de a Autora não ter logrado provar a incapacidade acidental de C no momento da feitura do negócio jurídico cuja anulação ora se pede.
Na verdade, nos termos do disposto no artº 335º/1 do CC, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
In casu, a Autora pretende, ao abrigo do disposto no artº 250º do CC, exercer o direito de anulação, com fundamento na incapacidade acidental de C e na notoriedade e cognoscibilidade da incapacidade acidental.
Para demonstrar a incapacidade acidental e da sua notoriedade e cognoscibilidade no momento da feita da escritura pública, a Autora alegados os seguintes factos:
* A Ré é amiga de C, conhecendo a sua família e o seu estado de saúde;
* No período compreendido entre 02AGO2010 e 30MAR2011, em que ficou internado, C apresentava total descontrolo das suas acções;
* Em virtude do seu comportamento bipolar e histeria e da elevada medicação a que se encontrava sujeito;
* Circunstâncias que o tornavam incapaz de tomar decisões por si só;
* C não tinha capacidade de entender e querer no momento em que celebrou a escritura pública;
* C não entendeu o alcance e a natureza do aludido negócio dado que estava fortemente medicado; e
* Era visível para qualquer pessoa, nomeadamente para a Ré, que a saúde mental da C apresentava graves desequilíbrios, e que o seu estado de perturbação e desorientação, lhe afectavam, de forma séria, a capacidade de entender e querer.
Só que nenhum desses factos ficou provado.
Justamente por não comprovação desses factos, o Tribunal julgou não demonstrada a incapacidade acidental de Lio Sio Tong, nem a sua notoriedade e cognoscibilidade no momento da feitura da escritura pública.
Agora em sede de recurso, a recorrente avançou com fundamento subsidiário que consiste na extracção das ilações da matéria de facto provada, para demonstrar a alegada incapacidade acidental de C e a sua notoriedade e a cognoscibilidade no momento da feitura da escritura pública.
Ora, a propósito das presunções judiciais a efectuar por um tribunal de 2ª instância, ensina Amâncio Ferreira que no exercício do seu poder de avaliação e interpretação da matéria de facto, o Tribunal de recurso pode utilizar presunções judiciais, fundadas nas máximas de experiência, nos princípios da lógica ou nos juízos correntes de probabilidade, deduzir outros factos a partir dos factos assentes, e na implementação do sistema de substituição, substituir, de imediato, a decisão impugnada por outra que a nova realidade fáctica imponha – in Manual dos Recursos em Processo Civil, 6ª edição, pág. 222 a 223.
Diz o artº 342º do CC que “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”.
Isto significa que as ilações ou presunções judiciais a deduzir a partir dos factos apurados na 1ª instância são consequências lógicas ou desenvolvimento lógicos da factualidade provada e não podem alterar nem divergir esses factos julgados assentes pelo tribunal a quo, e conflituar com as respostas afirmativas e negativas aos quesitos.
In casu, tal como vimos supra, mereceu respostas negativas na 1ª instância uma série dos factos, alegados pela Autora na petição inicial e levados à base instrutória, todos demonstrativos do estado de saúde e da incapacidade acidental de C aquando da celebração da escritura pública.
Se nós agora conseguíssemos deduzir da matéria de facto provada as ilações de que C se encontrava notoriamente incapacitado no momento da escritura pública, certamente estaríamos a afirmar algo que não poderia ser reportado como decorrência lógica dos factos provados e a dar como provados os factos que contrariam as respostas negativas aos quesitos versando sobre a matéria fáctica alegadamente demonstrativa da incapacidade acidental de C.
O que de per si já impede de extrair ilações no sentido que a recorrente defende.
Por outro lado, perante a matéria de facto, nomeadamente na parte que diz respeito ao estado de saúde mental de C, no momento da feitura da escritura pública, não cremos que se possa retirar dessa parte da matéria de facto provada as ilações de que C se apresentava com a incapacidade acidental, notória e cognoscível da Ré, no momento da outorga da escritura pública que tem por objecto a compra e venda do imóvel em causa, pois a experiência de vida e as lógicas das coisas ensinam que C não podia ter sido autorizado pelo médico assistente a sair da Ala de Psiquiatra do hospital para gozar uns dias de “férias” se se encontrasse ainda num estado de incapacidade de entender e querer, notória e cognoscível.
Assim, sem comprovação de outros factos por via de presunção judicial e apenas com base na matéria de facto assente, não podemos deixar de entender, tal como doutamente entende o Tribunal a quo, que a Autora não logrou demonstrar o estado de incapacidade acidental, notório e cognoscível, da Ré, no momento da celebração do negócio de compra e venda do imóvel.
Portanto, não resta outra solução que não seja a de improcedência do presente recurso.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a sentença recorria.
Registe e notifique.
RAEM, 25FEV2016
Lai Kin Hong
Joao A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
Ac. 615/2014-23