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Proc. nº 684/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 03 de Março de 2016
Descritores:
-Acção para petição de herança
-Escritura notarial de habilitação

SUMÁRIO:

I. A acção para petição de herança apresenta uma natureza mista: nem pessoal, nem real, mas ambas as coisas. Pessoal, quanto ao reconhecimento da qualidade de herdeiro; Real, quanto à devolução dos bens à massa da herança e /ou ao quinhão do herdeiro autor.

II. Ela tem uma dupla vertente: na primeira, o reconhecimento ao demandante da sua qualidade de herdeiro e, na segunda, a condenação dos possuidores dos bens à sua restituição à herança. Portanto, nas acções de petição de herança, a causa de pedir consiste na sucessão “mortis causa” e na subsequente apropriação por outrem de bens pertencentes à massa hereditária.

III. Só faz sentido a petição da herança enquanto judicialização de uma pretensão orientada a um resultado decisor necessário e útil tendente a uma posterior partilha. Com ela o que se pretende é que os possuidores abram mão da posse sobre os bens para que possam ser partilhados por todos os herdeiros, incluindo - com maior ou menor surpresa para os demandados - o autor da acção, que também se arroga sucessor do autor da herança.

IV. Se a herança tiver sido já objecto de partilha, já a acção de petição de herança está votada ao fracasso, uma vez que aí o autor só poderá lançar mão de acção de reivindicação.

V. É possível o uso desta acção contra os herdeiros que registaram em seu nome, como coisa indivisa, um determinado bem imóvel com base numa escritura notarial de habilitação de herdeiros.

VI. Se o registo predial foi efectuado com base em factos que se sabe não serem verdadeiros, ele é considerado falso, o que permite ao autor da acção o seu pedido de cancelamento e restituição dos bens registados à herança.

VII. A escritura notarial de habilitação é um documento autêntico (art. 363º, CC), e, enquanto tal, faz prova plena dos factos (declarações e outros) que neles são referidos como praticados pela autoridade ou oficial público documentador, bem como dos que nele são atestados como objecto da sua percepção directa, mas não daqueles que constituem objecto de ciência perante ele produzidos ou constantes de documentos que lhe sejam apresentados, nem sequer tão pouco dos que sejam objecto de apreciação ou juízos pessoais seus.
Proc. nº 684/2015

Acordam no Tribuinal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I - Relatório
A (A), titular do BIRM n.º 1XXXXXX(0), residente na Rua XXXX, N.º XX, Edifício XXXX, andar 4C, Macau (澳門XX街XX號XX大廈4樓C座),
intentou no TJB contra ----
B (B), residente na Rua da XXXX, n.º XX, Edifício XXXX, 6º Andar, B, Macau, (澳門XX街XXXX閣6樓B座);
C (C), residente em XXXX, XXXX Graden, Bloco X, 7.º Andar H, Hong Kong (香港XXXX花園第X座7樓H);
D, (D), residente na Rua de XXXX, n.º XX, Jardim XXXX, Bloco 1E, Macau (澳門XX街XX號XX花園第一座8樓E座) e,---
E (E), residente em XXXX, Edifício XXXX, Bloco K, 15º Andar, Casa 05, Hong Kong (香港XXXX花園K座15樓05室),
Uma acção de petição de herança sob a forma de processo comum e ordinário (CV3-11-0048-APJ), ---
Pedindo, a) que fosse reconhecida como herdeira legítima de F, b) que os réus fossem condenados a restituir à herança os bens de que se apropriaram e c) que fosse ordenado o cancelamento de registo feito na Conservatória do Registo Predial de uma fracção autónoma imobiliária que identifica.
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Por sentença de 27/02/2015, foi a acção julgada parcialmente procedente quanto ao primeiro pedido e improcedente quanto aos restantes.
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É contra essa decisão que se insurge a autora da acção através do presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«I. O Tribunal a quo julgou apenas parcialmente procedente a acção e declarou que a Autora, ora Recorrente, é herdeira legítima do de cujus F (F) também conhecido por F e F;
II. A sentença recorrida indeferiu os outros dois pedidos formulados pela Autora, no sentido de:
a) Condenar os Réus a restituir à herança os bens de que indevidamente se apropriaram e;
b) Ser ordenado o cancelamento do registo feito na Conservatória do Registo Predial, sobre o número com a descrição 521, da fracção autónoma com a designação BR/C, com o número de inscrição 1XXXXXG, apresentação nº 2, datada de 10 de Dezembro de 2008, a favor dos ora Réus;
III. É com esta parte da sentença que não se conforma a ora Recorrente;
IV. O Tribunal a quo julgou improcedente o 2º pedido porquanto “o facto assente não comprova que os Réus tenham recebido qualquer bem pertencente à sucessão (...), uma vez que não existe qualquer facto a suportar a dedução da Autora, por isso, não comprova este pedido”;
V. O Tribunal a quo julgou improcedente o 3º pedido uma vez que “A Autora não deduz a falsidade do título deste registo, por isso, não pode (o tribunal a quo) determinar a nulidade deste registo; como não existe um fundamento para cancelar o registo, não pode comprovar o pedido da Autora”;
VI. Salvo melhor entendimento, considera a ora Recorrente que a sentença proferida pelo Tribunal a quo padece do vício de erro na aplicação do direito;
VII. O Tribunal a quo declarou a ora Recorrente herdeira legítima do de cujus F;
VIII. As declarações prestadas pelo Réu e cabeça-de-casal B aquando da habilitação de herdeiros que data a 24 de Novembro de 2008, não correspondem à verdade, por serem comprovada mente falsas;
IX. Nem os Réus são os únicos herdeiros do de cujus F nem o de cujus morreu viúvo, porquanto o casamento contraído entre este e a Autora na província de Guangdong (Tai San) na China, no dia 18 de Agosto de 2003, é válido, conforme devidamente decidido pelo Tribunal a quo;
X. Sendo falsas as declarações da cabeça de casal, é igualmente falsa a escritura pública de habilitação notarial outorgada no dia 10 de Dezembro de 2008 que titula o registo predial da fracção autónoma supra referida em nome dos Réus;
XI. Consequentemente, é nulo o registo predial da titularidade daquela fracção autónoma em nome dos Réus, nos termos conjugados dos artigos 14º e 17º a) do Código do Registo Predial;
XII. Não obstante o douto Tribunal a quo ter expressamente referido: “Conforme os factos mencionados, a declaração feita na escritura pública, que fundamenta o registo, não se equipara com o facto de a Autora ser herdeira legítima de F, constituindo um vício de nulidade.”;
XIII. O douto Tribunal a quo entendeu que não podia declarar a nulidade daquela escritura e do registo a que a mesma deu origem, uma vez que a ora Recorrente não deduziu expressamente o incidente de falsidade do título e a nulidade daquele registo predial.
XIV. A ora Recorrente considera assim que o Tribunal a quo deveria ter ordenado o cancelamento do registo predial da fracção autónoma supra referida com base na sua nulidade.
XV. A nulidade é um vício de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 279º do Código Civil;
XVI. Resulta expressamente da douta decisão do Tribunal a quo que é falsa a escritura de habilitação notarial outorgada no dia 10 de Dezembro de 2008, porquanto as declarações aí prestadas não correspondem à verdade uma vez que a Autora é herdeira legítima do de cujus, e que é consequentemente nulo o registo da fracção autónoma supra referida em nome dos Réus;
XVII. Nada impedia o Tribunal a quo de declarar a falsidade do título e a consequente nulidade do registo;
XVIII. O Juiz não esta sujeito às alegações das partes no tocante à aplicação das regras de direito, nos termos do disposto no artigo 567º do CPC;
XIX. Salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo poderia e deveria ter declarado oficiosamente a falsidade da escritura e a nulidade do registo efectuado com base na mesma;
XX. E declaração oficiosa da falsidade da escritura e da nulidade do registo podia e deveria ter sido feita alicerçada nas previsões combinadas dos artigos 279º do CC e 567º do CPC, e porque também assim o exigiam os Princípios da Celeridade e da Economia Processual, já que se evitaria intentar nova acção baseada nos mesmos factos, só para deles extrair diferentes consequências jurídicas;
XXI. Do facto assente de “o prédio acima identificado havia sido registado em nome dos ora Réus”, contrariamente ao entendimento do douto Tribunal a quo, resulta necessariamente que os Réus, ora Recorridos, receberam tal bem que pertencia à herança;
XXII. Conferindo o registo a presunção da titularidade do direito de propriedade aos Réus, nos termos do artigo 7º do CRP, o mesmo significa que o referido bem já se encontra na titularidade dos Réus;
XXIII. O bem deixou de se encontrar afecto à herança para transitar para a esfera jurídica dos Réus;
XXIV. Estando, provado que a aquisição da propriedade deste bem o foi de forma nula com base em título falso, estava o douto Tribunal a quo devidamente legitimado para condenar os Réus, ora Recorridos, a restituir à herança o bem de que ilegitimamente se apropriaram.
XXV. Não tendo sido declarada a nulidade da aquisição e o cancelamento do registo feito na Conservatória do Registo Predial, a sentença recorrida viola o disposto nos artigos 279º do CC, 567º do CPC, os Princípios da Celeridade e da Economia Processual, e o artigo 7º do CRP.
III. Da Isenção de Pagamento de Preparos, Custas e de Patrocínio Judiciário
A ora Recorrente está isenta de pagamento de preparos, custas e pagamento de patrocínio judiciário, conforme cópia do despacho da Comissão de Apoio Judiciário já junta aos autos.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá a douta decisão do Tribunal a quo ser parcialmente revogada e substituída por uma outra que:
a) Declare a falsidade da escritura pública de habilitação de herdeiros celebrada no dia 10 de Dezembro de 2008, no Segundo Cartório Notarial Público da RAEM e, consequentemente,
b) Declare também a nulidade e o cancelamento do registo da aquisição da propriedade a favor dos Recorridos em relação à fracção autónoma BR/C do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o número 521, efectuado pela Ap. nº 2, datada de 10 de Dezembro de 2008, e titulado pela inscrição 1XXXXXG,
c) Condene os Recorridos a restituir à herança os bens de que indevidamente se apropriaram.
Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!».
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Os recorridos responderam ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
«1) Salvo o devido respeito, os Recorridos não se conformam com todos os factos invocados pela Recorrente na sua alegação e vêm impugná-los.
2) A Recorrente fundamentou o recurso ora interposto na existência do vício de erro na aplicação do direito na sentença recorrida, uma vez que entendeu principalmente que o Tribunal recorrido devia, nos termos do art.º 279º do Código Civil, declarar oficiosamente a falsidade da escritura pública de reconhecimento da qualidade sucessória e a nulidade do registo feito com base nesta escritura, verificando-se, portanto, a violação do disposto no art.º 279º do Código Civil e no art.º 567º do Código de Processo Civil, bem como a infracção do princípio da economia processual e do disposto no art.º 7º do Código do Registo Predial.
3) Pelos factos dados como provados após a audiência, só se demonstra que a declaração constante da escritura pública em que fundamenta o registo é incompatível com o facto de a Recorrente ser herdeira legítima de F (F).
4) Dispõe-se no art.º 365º, n.º 1 do Código Civil: “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade, oficial público ou notário respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora;”.
5) Prevê-se no art.º 366°, n.º 1 do Código Civil: “A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade.” e prevê-se no n.º 2: “O documento é falso, quando nele se atesta como tendo sido objecto da percepção da autoridade pública, oficial público ou notário qualquer facto que na realidade se não verificou, ou como tendo sido praticado pela entidade responsável qualquer acto que na realidade o não foi”.
6) “A essa zona de factos do foro interno dos declarantes ou de factos exteriores, não ocorridos no acto da escritura e fora até do cartório notarial, não chegam as percepções do funcionário documentador. São factos que podem, consequentemente, ser impugnados por qualquer das partes, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estarem cobertos pela força probatória plena deste”. (Vide Acórdão do processo n.º 3/2001 do TUI, p. 11)
7) Na escritura em causa não se verifica a situação prevista no n.º 2 do art.o 3660 do Código Civil, não sendo falsa a aludida escritura pública de reconhecimento da qualidade sucessória.
8) Ainda que a escritura fosse falsa, se a Recorrente (Autora) pretendesse que o Tribunal considerasse falsa a escritura, seria um pedido de declaração de falsidade deduzido na petição inicial. (Vide Acórdão do processo n.º 3/2001 do TUI, p. 11)
9) O Tribunal só deve, oficiosamente, declarar falsa a escritura em causa quando se verifique a situação prevista no n.º 3 do art.º 366º do Código Civil: “Se a falsidade for evidente em face dos sinais exteriores do documento, pode o tribunal, oficiosamente, declará-lo falso”. Neste processo não se encontra a situação mencionada no n.o 3 do art.º 366º do Código Civil, pelo que o Tribunal recorrido não necessita de declarar, oficiosamente, falsa a aludida escritura.
10) Como o título de registo não é falso, o respectivo registo também não é nulo.
11) Assim sendo, in casu, face à incompatibilidade entre a declaração constante da escritura em que fundamenta o registo e o facto de a Recorrente ser herdeira legítima de F (F), a declaração de falsidade do título de registo devia ser solicitada pela Recorrente logo na petição inicial, com vista a pedir o cancelamento do respectivo registo, em vez de ser, oficiosamente, feita pelo Tribunal recorrido ao abrigo do art.o 279º do Código Civil.
12) Ademais, o Tribunal recorrido não violou o disposto no art.º 567º do Código de Processo Civil, visto que não se verifica a situação de exame oficioso e que neste caso trata-se duma situação que não está relacionada com o direito indisponível.
13) Os Recorridos não concordam com a existência da infracção do princípio da economia processual pelo Tribunal recorrido que foi invocada pela Autora.
14) “O princípio da economia processual tem de ser entendido em articulação com os demais princípios, designadamente com o princípio do contraditório. Se aquele princípio tivesse o conteúdo pretendido pela Autora, deixava de haver necessidade de chamar ao processo as pessoas contra as quais se pretende tomar medidas: o juiz tomaria a decisão logo após o peticionante ter deduzido a sua pretensão. Seria o princípio da economia processual no seu estado mais puro...” (Vide Acórdão do processo n.º 31/2007 do TUI, p. 10)
15) A Recorrente não deduziu na petição inicial o pedido de declaração de falsidade da escritura, pelo que, ao contrário, o Tribunal recorrido violaria o princípio do contraditório se proferisse directamente a sentença.
16) “O princípio do contraditório visa dar a possibilidade de os interessados serem ouvidos e poderem trazer ao conhecimento do Tribunal factos que não foram alegados pelo peticionante ou fundamentos jurídicos que foram omitidos por este. Visa dar ao tribunal um conhecimento mais alargado e completo da situação em causa, a fim de que a decisão a tomar seja a mais justa”. (Vide Acórdão do processo n.º 31/2007 do TUI, p. 10)
17) Pelas razões acima expostas, devem ser julgados improcedentes todos os pedidos formulados pela Recorrente, rejeitando-se o recurso interposto pela mesma.».
*
Cumpre decidir.
***
II – Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
«A Autora contraiu casamento com F (F), também conhecido por F e F, no dia 18 de Agosto de 2003, em Taishan City, da província de Guangdong, na China. (F acto provado al. A))
F (F), também conhecido por F e F, veio a falecer a 31 de Outubro de 2008 em Macau. (Facto provado al. B))
F (F), também conhecido por F e F, era titular de domínio útil do prédio urbano sito à Rua de Nossa Senhora do Amparo, n.º 49-B, com o n.º de descrição 521 e parte identificadora da fracção autónoma BRJC, cuja finalidade é o comércio. (Facto provado al. C))
O prédio acima identificado havia sido registado em nome dos ora Réus. (Facto provado al. D))
Este registo foi feito com base na escritura pública de habilitação notarial de herdeiros, data de 10 de Dezembro de 2008, que se encontra no Segundo Cartório Notarial Público da RAEM, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. (Facto provado al. E))
Na qual, consta como cabeça-de-casal, e responsável pelas declarações prestadas o Réu B. (Facto provado al. F))
Dessas declarações constam as seguintes declarações:
1) Que os Réus são os únicos herdeiros do de cujus F (F), também conhecido por F e F;
2) E que o de cujus morreu viúvo da sua primeira mulher Tam Iok Lin, também chamada Tam Yuk Lin e Tam Ioc Lin. (Facto provado al. G))
O matrimónio contraído entre a Autora e F (F), também conhecido por F, não foi transcrito no Registo Civil de Macau. (Resposta ao art.º 1º da base instrutória)
À data do casamento F (F), também conhecido por F e F, já era residente de Macau, sendo titular do BIRM com o número 7018381(9). (Resposta ao art.º 2º da base instrutória)
Na data do seu falecimento F (F), também conhecido por F e F, o mesmo residia na Rua de Nossa Senhora do Amparo, n.º 49, Edf. Nga Vo, 4º andar C, Macau. (Resposta ao art.º 3º da base instrutória)
O F (F), também conhecido por F e F, era titular de algumas contas bancárias. (Resposta ao art.º 7º da base instrutória)».
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III – O Direito
1 – Recorde-se, em primeiro lugar, que a acção tinha em vista o reconhecimento da qualidade da autora como herdeira do de cujus F e a restituição de todos os bens à herança, incluindo uma fracção imobiliária e o dinheiro de contas bancárias depositado em nome do falecido. Estamos, pois, no âmbito da acção a que se refere o art. 1913º do Código Civil: petição de herança.
No presente recurso jurisdicional vem posta em causa a sentença recorrida na parte referente aos segundo e terceiro pedidos que a autora da acção havia formulado.
O TJB considerou que A era herdeira do falecido F, também conhecido por F e F, julgando assim procedente o 1º pedido formulado na petição inicial. Porém, quanto aos restantes dois pedidos entendeu que:
- Não se apurou que os RR tivessem recebido qualquer bem da herança; logo, não podia decretar a restituição à herança dos bens.
- A autora não invocou a nulidade da escritura pública de habilitação notarial de herdeiros; logo, não podia ordenar o cancelamento do registo feito na Conservatória em nome dos recorridos.
Apreciando.
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2 – A petição da herança é definida no art. 1913º como sendo o meio através do qual alguém pede “judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título”.
Houve, é certo, quem tivesse colocado o eixo central da acção no reconhecimento da qualidade de sucessor. É o caso de J. Rodrigues Bastos, para quem a petição de herança " é a acção por meio da qual aquele que pretende ser chamado a uma herança reclama o reconhecimento da sua qualidade de herdeiro. Esta acção, não tende tanto à entrega das coisas como ao reconhecimento da qualidade de herdeiro, com o propósito de recuperar, no todo ou em parte, o que constituir o património hereditário" (Direito das Sucessões, 1981, pág. 158).
No entanto, a pretensão e a acção têm uma natureza mista: nem pessoal, nem real, mas ambas as coisas. Pessoal, quanto ao reconhecimento da qualidade de herdeiro; Real, quanto à devolução dos bens à massa da herança e /ou ao quinhão do herdeiro autor (Cunha Gonçalves (Tratado, Vol. X, pág. 479).
É por isso mesmo que esta acção tem uma dupla vertente: na primeira, o reconhecimento ao demandante da sua qualidade de herdeiro e, na segunda, a condenação dos possuidores dos bens à sua restituição à herança.
Ou seja, o objectivo da acção não é, nem mais, nem menos senão aquilo a que Pires de Lima e Antunes Varela designaram de duplo fim1 (Código Civil Anotado, VI, pág. 131; tb. Manuel Leal Henriques (Manual de Formação de Direito Sucessório e Processo de Inventário, CFJJ, 2007, pág. 96).
Portanto, nas acções de petição de herança, a causa de pedir consiste na sucessão “mortis causa” e na subsequente apropriação por outrem de bens pertencentes à massa hereditária (Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e loc. cit,; Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, pág. 40, nota 596; Ac. RP, de 22/10/2013, Proc. nº 272/12).
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3 - Uma coisa se não pode negar, porém. A restituição de todos ou parte dos bens da herança é pedida, segundo o nº1 do art. 1913º, do CC, de quem deles é possuidor (“…contra quem os possua….”).
Ora, no que se refere aos herdeiros (“…os possua como herdeiro…”), o domínio e posse adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material (art. 1888º, nº1, do CC), sendo certo que será uma posse “possessor herede”, ou seja, uma posse por alguém que se considera herdeiro (Fernando Brandão Ferreira Pinto, Sucessões Por Morte, Jurisbook, 2013, pág. 112).
Posse, portanto, com as características do art. 1175º, sem negar que o art. 1913º também admite na parte final do nº1 outro tipo de posse com as características do art. 1177º (simples detenção).
E qual a razão para este sublinhado?
É que, precisamente, a petição da herança tem na segunda vertente acima assinalada o propósito de chamar à herança o acervo dos bens que hão-de constituir a massa hereditária para ser oportunamente partilhada. Dito de outro modo, só faz sentido a petição da herança enquanto judicialização de uma pretensão finalística orientada a um resultado decisor necessário e útil tendente a uma posterior partilha.
O que no fundo se pretende é que os possuidores abram mão da posse sobre os bens para que possam ser partilhados por todos os herdeiros, incluindo - com maior ou menor surpresa para os demandados - o autor da acção, que também se arroga sucessor do autor da herança.
É verdade que a doutrina e jurisprudência afirmam que se a herança tiver sido já objecto de partilha, já a acção de petição de herança está votada ao fracasso, uma vez que aí o autor só poderá lançar mão de acção de reivindicação (Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, 2011, AAFDL, pág.430; Fernando Brandão Ferreira Pinto, ob. cit., pág. 111; Na jurisprudência, ver Acs. do STJ, de 14/11/1994, Proc. nº 086270 e 29/10/2009, Proc. nº 577/04).
Compreende-se que assim seja, tendo em conta que, uma vez efectuada a partilha e, desse modo, preenchida a quota de cada herdeiro (cada um de todos os herdeiros), a esfera de cada um deles passa a estar dotada materialmente de um direito que até aí era jurídico e concernente a uma quota ideal, cujo momento de aquisição é retroagido ao momento da abertura da sucessão (art.s 1241º e 1242º, al. b), do CC). Ou seja, com a partilha cessa a indivisão dos bens da herança (universitatis juris) e é tornado certo, e determinado, aquilo que era certo, mas indeterminado antes dela.
Todavia, quando a doutrina e a jurisprudência assim se exprimem, sempre vão acrescentando que a acção de reivindicação subsequente à partilha encontra a sua justificação na circunstância de o autor já ser herdeiro e já ter sido contemplado com uma partilha. Em tal caso, ele já é proprietário das coisas que lhe couberam na divisão sucessória. Daí que para as poder obter de terceiros (sejam ou não herdeiros que as possuam) já só o conseguirá através da acção de reivindicação (Ac. STJ, de 14/11/1994, Proc. nº 086270).
Já, porém, não parece que se deva aceitar a mesma tese quando já tenha tido lugar a partilha entre os herdeiros (réus), ficando de fora outra pessoa que os herdeiros não conheciam ou não reconheciam como co-herdeiro (o autor de petição de herança), o qual precisamente quer ver declarada judicialmente a sua qualidade de herdeiro. Evidentemente, se os herdeiros conhecidos fizeram entre si a partilha dos bens da herança, deles não pode ser pedida a restituição a coberto de uma acção de reivindicação, porque esta é só faz sentido quando intentada pelo proprietário (art. 1235º, nº1).
Tal não sucede, contudo, nos casos em que o indivíduo não conseguiu ainda convencer os outros da sua qualidade de herdeiro, restando-lhe a tentativa de demonstrar essa qualidade através da acção de petição de herança. A essa pessoa não resta outra via judicial que não essa.
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4 - A sentença impugnada não deferiu o 2º pedido por entender que não está provado nos autos que os demandados “receberam qualquer bem da herança”.
Contudo, está inequivocamente demonstrado nos autos, que os herdeiros de Macau, chamemos-lhes assim (ora recorridos), com a habilitação de fls. 18-20 dos autos (fls. 40-43 do apenso “Traduções”) conseguiram proceder ao registo em seu nome da fracção imobiliária em causa.
Assim, a fundamentação da sentença não tem qualquer apoio, nem factual, nem legal.
Com efeito, por um lado, ninguém põe em dúvida que o imóvel em apreço pertencia ao falecido. Por outro lado, também é seguro terem os demandados efectuado a habilitação e com ela procedido ao registo desse imóvel por todos eles.
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5 - Então, será que pode dizer que os recorridos não receberam qualquer bem da herança?
Sabemos que o registo predial não é constitutivo, isto é, não determina a aquisição ou constituição do direito real na esfera do interessado (v.g., Pedro Nunes Rodrigues, Direito Notarial e Direito Registral, 2005, pág.338). Simplesmente, faz presumir (presunção iuris tantum):
a) Que o direito existe; e
b) Que pertence ao titular inscrito (art. 7º, do CRP).
Assim, temos que a favor dos recorridos existe uma presunção de serem comproprietários da fracção.
“Esta presunção derivada do registo, apesar de elidível por prova em contrário (iuris tantum), actua no sentido de que, até essa prova, existe um direito que emerge do facto inscrito, que o mesmo pertence ao respectivo titular, e que esse direito incide sobre um objecto determinado: o prédio tal como se acha identificado na respectiva descrição” (Vicente João Monteiro, Noções Elementares do Registo Predial de Macau, Direcção dos Serviços de Justiça, 1997, Macau, p. 31).
E se se presume a (com)propriedade, então o poder que eles em princípio manifestam sobre a fracção em causa é exercido através de actos de posse (art. 1175º, do CC).
E posto que assim seja, parece que outra solução não restaria à sentença impugnada senão restituir à herança o referido imóvel. O que acontece é que o bem foi registado em nome dos réus da acção, como bem indiviso, o que significa que entre eles não foi feita ainda uma partilha. E por não ter ainda existido a partilha, então a acção de petição de herança não poderia deixar de ser procedente.
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6 – E no que se refere ao pedido inicial de cancelamento do registo, poderia ser deferido?
De acordo com o art. 14º do CRP, o registo só poderia ser cancelado com fundamento em extinção dos direitos, ónus e encargos nele definido ou com base em execução de decisão judicial transitada em julgado.
Ora, não se pode dizer que algum direito ao bem tenha sido extinto. E porque também não está em causa nenhum ónus ou encargo que se possa dizer ter sido extinto, não é possível invocar o preceito para este efeito de cancelamento.
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7 - Resta, então, o último fundamento previsto no art. 14º: a decisão judicial transitada em julgado.
Ora, precisamente, a decisão que ora se toma, na medida em que ordena a restituição do bem em causa à herança, conduz inevitavelmente a que aquele registo deixe de subsistir, na medida em que partiu de um pressuposto (existência de certos e determinados titulares do direito à herança) que o tribunal deixa de reconhecer como verdadeiro. Ou seja, a execução desta decisão judicial, logo que transitada em julgado, e uma vez comunicada à Conservatória, levará ao cancelamento do registo.
É certo que a autora da acção não formulou na petição inicial o pedido específico de nulidade da escritura de habilitação com base na qual foi feito o registo predial a favor dos RR (Fê-lo apenas nas alegações do recurso). Todavia, não pode deixar de se considerar que ela impugnou na própria petição inicial a veracidade dos factos constantes da escritura.
Mas, vejamos melhor.
A escritura notarial de habilitação é um documento autêntico (art. 363º, CC), e, enquanto tal, faz prova plena dos factos (declarações e outros) que neles são referidos como praticados pela autoridade ou oficial público documentador, bem como dos que nele são atestados como objecto da sua percepção directa, mas não daqueles que constituem objecto de ciência perante ele produzidos ou constantes de documentos que lhe sejam apresentados, nem sequer dos que sejam objecto de apreciação ou juízos pessoais seus (cfr. art. 365º CC). -
Portanto, “o notário que a exarou não garante a veracidade nem a eficácia das declarações que lhe foram feitas, pelo que em relação a elas é admissível a prova testemunhal, salvo se deverem ser consideradas plenamente provadas por confissão extrajudicial. Ou seja, os actos e declarações que o notário atesta como tendo sido praticados, emitidos ou prestados perante ele terão o valor jurídico que lhes competir, podendo ser impugnadas pelos interessados, nos termos gerais de direito” (Ac. STJ, de 1/03/2012, Proc. nº 180/2000).
E assim sendo, “provada a falsidade dessas declarações, o documento perde, consequentemente, a sua eficácia como fonte de prova dos factos cobertos pela presunção legal, mas não perde, por isso, a sua existência jurídica, nem a sua validade” (ac. cit.).
E “porque na formação dessa escritura não se preteriu qualquer formalidade que a lei exige, encontrando-se os efeitos da falsidade circunscritos à perda da força probatória do documento, os vícios apontados não geram a nulidade ou anulabilidade da escritura notarial de habilitação de herdeiros, pelo que, não sendo nula nem anulável, carece de qualquer fundamento a caducidade do direito invocado pela ré, com base na sua pretensa anulabilidade” (ac. cit.).
Mas, uma coisa é a escritura notarial de habilitação, outra é o registo que lhe sucedeu.
Ora, relativamente a esta distinção, não pode deixar de se reconhecer que o registo predial aqui em apreço é falso, por ter sido lavrado com base em factos que não correspondem à realidade. E isso conduz à nulidade do registo (art. 17º, nº1, al. a), do CRP).
Apesar de a A. da acção não ter expressamente formulado o pedido de nulidade do registo, certo é que não deixou de impugnar os factos comprovados pelo registo (cfr. por exemplo, art. 13º da p.i.), formulando a final o pedido de cancelamento, acatando o disposto no art. 8º do CRP (“1 – Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em tribunal, sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo”). E parece-nos que isto era fundamental e suficiente ao êxito da demanda. Quer dizer, não era preciso expressamente pedir a nulidade do registo, uma vez que o que importava era a prova da falsidade dos factos comprovados pelo registo, a fim de que fosse pedido o cancelamento deste.
Daí que, “Demonstrada a não existência do direito da ré sobre as fracções dos aludidos prédios, é falso o respectivo registo, o que implica a sua nulidade, deixando, consequentemente, de gozar da presunção prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial” (aresto cit.)
É, pois, partindo da afirmação jurisprudencial acabada de fazer, e aplicando a sua orientação “mutatis mutandis” ao caso em apreço, que nos parece que o cancelamento do registo não podia deixar de ser decidido.
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IV – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência, para além da qualidade de herdeira já reconhecida pela sentença recorrida à autora (ora recorrente), que se mantém, revoga-se a parte restante da decisão recorrida e, por via disso:
- Julga-se procedente a restituição dos bens do falecido F (também conhecido por F e F) à herança, nomeadamente o domínio útil do prédio urbano referido na alínea c) dos factos provados;
- Ordena-se o cancelamento do registo do referido domínio útil a favor dos RR.
Custas pelos recorridos em ambas as instâncias.
TSI, 03 de Março de 2016
Jose Candido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong


1 De duplo fim, também falam os Acs. do STJ, de 2/03/2004, Proc. nº 04A126 e de 20/10/2009, Proc. nº 577/04
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684/2015 23