Processo nº 1022/2015
Data do Acórdão: 21JAN2016
Assuntos:
Acidente de trabalho
Exclusão do direito à reparação
SUMÁRIO
Tendo sido demonstrada verificada a situação excepcional a que se refere o artº 8º, in fine, do Decreto-Lei nº 40/95/M, à luz do qual “a predisposição patológica da vítima de um acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido causa única da lesão ou doença ou tiver sido dolosamente ocultada”, não há lugar ao direito à reparação.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 1022/2015
I
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
No âmbito dos autos da acção de processo especial do trabalho (acidente de trabalho), intentada por A, representada pelo Ministério Público, contra a Companhia de Seguros da B, registada sob o nº LB1-11-0086-LAE, e correu os seus termos no Juízo Laboral do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença julgando totalmente procedente a acção:
I. Relatório:
A, com os demais sinais identificadores nos autos, representado pelo Ministério Público, intentou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra a "Companhia de Seguros da B", pedindo que a Ré lhe pague:
- MOP 120,111.11, a título de indemnização por 235 dias de ITA;
- MOP 496,800.00, a título de indemnização pela IPP sofrida, fixada em 20% em sede de tentativa de conciliação;
- MOP 37.619,40 relativas a despesas médicas e medicamentosas;
- juros de mora à taxa legal até integral pagamento;
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A Ré contestou a acção, conforme melhor se colhe do respectivo articulado cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, por brevidade de exposição.
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Foi elaborado despacho saneador em que se afirmou a validade e regularidade da instância e onde se seleccionaram os factos assentes e se organizou a base instrutória.
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A audiência de julgamento decorreu com observância do formalismo legal, tendo o Tribunal respondido à matéria controvertida por despacho que não foi objecto de qualquer reclamação pelas partes
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Mantendo-se os pressupostos que presidiram à prolação do despacho saneador, nada obsta ao conhecimento do mérito da causa.
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II. Fundamentação de facto:
1). Em 21 de Maio de 2010, pela 1hora e 50 m, a Autora sofreu uma síncope, tendo desmaiado no interior de uma sala de jogo do Casino Ponte 16, em Macau. (A)
2). A A. nasceu em 22/02/197l. (B)
3). A título de salário mensal a Autora auferia o valor de MOP$23.000,00. (C)
4). O facto descrito em A) ocorreu no tempo e local de trabalho. (1º)
5). Nas circunstâncias referidas em 1.°, a Autora prestava a sua actividade profissional de Assistant Pit Manager sob a autoridade, direcção e fiscalização da sua entidade patronal, "Sociedade de C". (2°)
6). Após o referido em 1.° a A. foi transferida, imediatamente, para o Hospital Kiang Wu, em Macau, onde foi observada e tratada, tendo ali ficado internada entre o dia 21/05/2010 e o dia 26/06/2010. (3°)
7). Recebendo, ainda, tratamento ambulatório periódico na consulta externa daquele estabelecimento hospitalar, até 12/01/201l. (4°)
8). À A. foi-lhe diagnosticado um "acidente vascular cerebral" e hipertensão e sofreu as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 62, que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo a A. sofrido, designadamente, uma hemorragia cerebral, que lhe provocou, como sequela definitiva, uma deformidade funcional do membro inferior esquerdo. (5°)
9). Na sequência do referido de 1.º a 4.º a A. despendeu, em despesas médicas, MOP $72.820,00. (6°)
10). Das despesas médicas supra referidas a A. apenas recebeu da Ré MOP$$35,200.60 (cf. doc. fls. 103 a 106). (7º)
11). Na sequência do descrito em 1.° a Autora sofreu 235 de incapacidade temporária absoluta. (8°)
12). E 20% de incapacidade parcial permanente. (9°)
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Questões a resolver:
- Determinar se houve um acidente de trabalho;
- Determinar quais os montantes indemnizatórios que são devidos à Autora.
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III. Fundamentação de direito:
Tendo em conta a matéria de facto que se encontra provada analisemos o direito que lhe é aplicável por forma a dar resposta às questões que foram enunciadas.
Nos termos previstos pelo artigo 2.° n.º 1.º do Decreto-Lei n.040/95/M, de 14/08, têm direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho (...) os trabalhadores que prestam serviço em qualquer sector de actividade, considerando o artigo 3.° alínea d) do citado diploma legal como trabalhador - aquele que, mediante retribuição, presta a sua actividade a outra pessoa, independentemente da natureza e da forma do acto pelo qual esses serviços ou actividade laboral são estabelecidos (...).
No caso presente não há qualquer dúvida quanto à existência de um acidente de trabalho atendendo à factualidade que se mostra provada, na medida em que foi vítima de uma síncope, tendo desmaiado no interior de uma sala de jogo do Casino Ponte 16 (cf. facto 1), enquanto estava no tempo e local de trabalho (cf. facto 4) e prestava a sua actividade profissional de "Assistant Pit Manager" sob a autoridade, direcção e fiscalização da sua entidade patronal, "Sociedade de C (cf. facto 5), estando assim preenchido o conceito normativo constante do art. 3.°, al. a) do DL n.º 40/95/M, não resultando provada qualquer factualidade que permita concluir pela sua descaracterização, conforme se mostra previsto no art. 7.° do DL citado, nomeadamente na alínea f), nem sequer qualquer factualidade donde se possa inferir uma predisposição patológica que, por si só, possa ser considerada causa única da lesão (cf. art. 8.° do mesmo diploma), sendo certo que no presente caso a presunção prevista no art. 10.°, n.º 1, al. a) do DL n.º 40/95/M, permite dissipar quaisquer dúvidas que pudessem subsistir.
Está igualmente assente, por não ter sido posto em causa por qualquer das partes e desde logo aceite em sede de tentativa de conciliação, que a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho estava transferida para a Ré nos presentes autos.
Tendo em consideração a matéria que assim se mostra provada e o direito que lhe é aplicável dúvidas não restam quanto à procedência total da presente acção atendendo à I.P.P. e I.T.A. que se mostram provadas (cf factos 11 e 12) e às despesas médicas que não se mostram pagas (cf. conjugação dos factos 9 e 10).
IV. Decisão:
Nestes termos, julgo a acção totalmente procedente, e em consequência,
condeno a Ré a pagar à Autora as seguintes quantias:
- MOP 120,111.11, a título de indemnização por dias 235 de ITA;
- MOP 496,800.00, a título de indemnização pela IPP sofrida de 20%;
- MOP 37.619,40 relativas a despesas médicas e medicamentosas.
Mais se condena a Ré a pagar juros de mora à taxa legal até integral pagamento.
Custas pela Ré.
Registe e notifique.
Não se conformando com a sentença, veio a ré recorrer concluindo e pedindo que:
I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo douto Tribunal Judicial de Base em que julgou a acção procedente e, por entender que o acidente que atingiu a A é um acidente de trabalho, condenou a Ré, ora Recorrente, a pagar à mesma uma indemnização no valor global de MOP$654,530.51 acrescido dos respectivos juros.
II. Resulta claramente que a decisão recorrida, interpretada de per si, com a experiência comum e com os elementos dos autos nela acolhidos, se encontra inquinada do vício de erro na apreciação da prova, tendo violado o disposto no art. 8° do Decreto-Lei nº 40/95/M, de 14 de Agosto, e que após a reapreciação da prova por parte desse Venerando Tribunal da Segunda Instância, deverá ser proferido douto Acórdão que considere que a hemorragia cerebral súbita donde resultou a hemiplegia esquerda não derivou de acidente de trabalho, tendo antes sido provocada por males e patologias de origem endógena, e por tanto sem conexão com o trabalho, com a consequente absolvição da Recorrente relativamente aos pedidos de compensação formulados nos autos.
III. O presente recurso versa assim sobre matéria de facto e sobre matéria de direito.
IV. Realizada audiência de discussão e julgamento entendeu o douto Tribunal a quo dar por provado que em 21 de Maio de 2010, pelas 1 hora e 50 m, a Autora sofreu uma síncope, tendo desmaiado no interior de uma sala de jogo do Casino Ponte 16, em Macau e que tal facto ocorreu no tempo e local de trabalho (1°); que nas circunstâncias referidas em 1° a Autora prestava a sua actividade profissional de Assistant Pit Manager sob a autoridade, direcção e fiscalização da sua entidade patronal, "Sociedade de C" (2°); que após o referido em 1° a A. foi transferida, imediatamente para o Hospital Kiang Wu, em Macau, onde foi observada e tratada, tendo ali ficado internada entre o dia 21/05/5010 e o dia 26/06/2010 (3°); que recebeu, ainda tratamento ambulatório periódico na consulta externa daquele estabelecimento hospitalar até 12/01/2011 (4°); que à Autora foi-lhe diagnosticado um "acidente vascular cerebral" e hipertensão e sofreu as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 62, que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo a Autora sofrido, designadamente, uma hemorragia cerebral, que lhe provocou, como sequela definitiva, uma deformidade funcional do membro inferior esquerdo (5°); que na sequência do referido em 1° a 4° a A. despendeu, em despesas médicas, MOP$72.820,00 (6°); que das despesas médicas supra referidas a A. apenas recebeu, da Ré, MOP$35.200,60 (cf. Doc. fls.103 a 106) (7°); que na sequência do descrito em 1° a Autora sofreu 235 de incapacidade temporária absoluta (8°); que na sequência do descrito em 1° a Autora sofreu 20% de incapacidade parcial permanente (9°); quanto ao quesito 10° da douta Base lnstrutória, remeteu o Tribunal a quo para o que resulta da resposta ao quesito 5.
V. No vertente processo, foi determinada a documentação das declarações prestadas na audiência de julgamento, existindo por isso suporte de gravação, o que permitirá ao douto Tribunal de Segunda Instância melhor avaliar, e decidir, sobre o ora invocado erro na apreciação da prova, aqui expressamente se requerendo a reapreciação da matéria de facto, nos termos admitidos no art. 629° do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 1 ° do Código de Processo do Trabalho.
VI. A Recorrente, ao invocar no presente recurso o erro na apreciação da prova, que, na sua óptica, inquina a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, não pretende apresentar apenas uma simples discordância relativamente à interpretação dos factos feita por aquele douto Tribunal, tendo bem presente o dispositivo do art. 558º do Código de Processo Civil, e a natureza insindicável da livre convicção relativamente à apreciação da prova efectuada pelo Tribunal recorrido, e ainda estando bem ciente da jurisprudência afirmada nos Tribunais Superiores da RAEM, entendendo a Recorrente que tal se verifica na situação dos autos, e que o vício apontado à decisão recorrida resulta dos próprios elementos constantes dos autos, por si só ou com recurso às regras da experiência comum.
VII. Ou seja, o Perito Médico foi peremptório ao afirmar, quando inquirido sobre quais as circunstâncias que propiciaram ou favoreceram o aparecimento do AVC, que foi da rigidez vascular, assim como da hipertensão.
VIII. Do depoimento prestado em audiência de julgamento pelo Dr. E também resulta que a hemorragia cerebral e consequente hemiplegia esquerda não tem qualquer conexão com o trabalho da Autora, resultando que pela análise da documentação junta aos autos, a Trabalhadora sofria de hipertensão, assim como de uma deformação congénita, sendo o acidente o resultado natural dessa hipertensão, doença que a acompanhava há já vários anos, referindo ainda que estes acidentes sucedem independentemente de qualquer nervosismo no trabalho, tendo o acidente sido motivado por uma serie de doenças que tinha, sem qualquer relação directa entre o acidente e o trabalho desenvolvido pela vitima.
IX. O Dr. E foi peremptório ao afirmar que dadas as doenças de que a vitima padecia, o acidente poderia ter ocorrido em qualquer lugar, fosse a andar, a conversar, a comer, no transito ou até mesmo no autocarro.
X. Afirmando categoricamente que independentemente da actividade desenvolvida pela Trabalhadora, a predisposição patológica da mesma foi a causa das lesões.
XI. Do depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha D, técnico-adjunto da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, resultou que das averiguações efectuadas apurou que a trabalhadora lhe confirmou, por mais do que uma vez, que sofria de hipertensão antes do acidente e que inclusivamente a própria família sofria do mesmo problema.
XII. Após reapreciação da prova efectuada em juízo por parte desse Venerando Tribunal da Segunda Instância deverá ser proferido douto Acórdão que julgue procedente o invocado vício de erro de julgamento ao dar resposta negativa ao quesito 10° da Douta Base Instrutória, devendo antes ser dado como provado que a lesão sofrida pela Autora foi provocada por doença que padecia muito antes daquele evento, como seja a hipertensão, ou seja por males ou patologias de origem endógena, sem conexão com o trabalho desempenhado e em consequência julgue que a hemorragia cerebral não resultou de acidente de trabalho, não havendo qualquer relação entre a lesão e a actividade desenvolvida pelo trabalhador, assim se afastando a aplicação do disposto no art. 8° do Decreto-Lei nº 40/95/M, e bem assim da presunção prevista no art. 10° do mesmo diploma legal.
XIII. Ainda que improceda o recurso na parte respeitante à impugnação da decisão que dirimiu a matéria de facto, face à matéria de facto tal como provada pelo douto Tribunal não estamos perante um acidente de trabalho.
XIV. O acidente de trabalho é constituído por uma cadeia de factos em que cada um dos respectivos elos tem de estar entre si sucessivamente interligados por um nexo causal: o evento naturalístico tem de estar relacionado com a relação do trabalho; a lesão, perturbação ou doença terão que resultar daquele evento; e finalmente a morte ou a incapacidade para trabalho deverão resultar da lesão, perturbação funcional ou doença. De tal forma que se esse elo causal se interromper em algum dos momentos do encadeado fáctico atrás descrito, não poderemos sequer falar - pelo menos em relação àquela morte ou àquela incapacidade em acidente de trabalho. (neste sentido conferir Vitor Ribeiro, Acidentes de trabalho, Reflexões e Notas Praticas, pag. 218)
XV. Porém, no que se refere à prova do nexo causal entre as lesões e o acidente a lei estabelece, nos artigos 8° e 10° do Decreto-lei nº 40/95/M presunções a favor do sinistrado e dos seus beneficiários legais.
XVI. Resulta dos presentes autos que no dia 21 de Maio de 2010, A sentiu-se mal, e desmaiou, tendo sido transportada para o Hospital Kiang Wu, tendo vindo a receber tratamento.
XVII. Assim, apenas resultou que a vítima sofreu um desmaio no seu local e tempo de trabalho, não se vislumbrando que tenha ocorrido um evento súbito, violento, inesperado de ordem exterior que tenha desencadeado ou que seja determinante no desencadeamento do referido desmaio nem tam pouco da hemorragia cerebral que veio a ser detectada.
XVIII. Deste modo, somente através do funcionamento da presunção prevista no artigo 8° e 10° do Decreto-lei nº 40/95/M seria possível estabelecer o nexo de causalidade, elo essencial para se falar em acidente de trabalho.
XIX. Ficou provado que a infeliz vítima sofria de Hipertensão Arterial (resposta ao quesito 5°) e que o Acidente Vascular Cerebral que veio a vitimar a trabalhadora surgiu na sequência dessa mesma Hipertensão (De acordo com a prova testemunhal supra mencionada).
XX. Como explicado em sede de julgamento a Hipertensão trata-se de uma doença degenerativa que, não tratada, poderá ter efeitos nefastos, entre eles a ocorrência de hemorragias cerebrais, coincidentemente, aquilo que sucedeu à ora Autora.
XXI. Mesmo dos factos provados resulta que o acidente e a hemorragia não tiveram qualquer relação de conexão com o trabalho desempenhado pela vítima, mas sim com uma doença degenerativa - a hipertensão - que, tal como provado, sofria antes do evento.
XXII. Não tendo resultado que o acidente sofrido pela Autora no local de trabalho e a hemorragia cerebral súbita tenha sido desenvolvimento da actividade profissional da Autora.
XXIII. A hemorragia cerebral surgiu unicamente na sequência da hipertensão de que sofria, e isso resultou claro dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, porquanto não se fez qualquer conexão entre a hipertensão, causador da hemorragia, e o trabalho.
XXIV. A Autora não demonstrou a ocorrência, no local e no tempo de trabalho, de qualquer evento súbito, de natureza exógena, que tivesse sido determinante para o desencadeamento da hemorragia, não obstante a existência da hipertensão.
XXV. Tão pouco consegui demonstrar que o trabalho prestado, naquele dia e nos dias anteriores, ou que as condições em que era prestado esse trabalho, tivessem causado a hipertensão, ou que a hemorragia tivesse sido determinada pelo trabalho e pelas condições em que esse trabalho era prestado ao longo da vigência do seu contrato de trabalho.
XXVI. E assim, mesmo que se entenda que a hemorragia cerebral ocorreu no local e no tempo de trabalho e que por esta razão se deva presumir (presunção iuris tantum) que a mesma foi determinada por acidente de trabalho, terá necessariamente de concluir que a prova obtida através da referida presunção foi destruída pela prova produzida em sede de audiência de julgamento, mostrando-se, assim, ilidida tal presunção.
XXVII. O douto Acórdão do Tribunal da Segunda Instância de Macau, proferido nos autos de recurso nº 373/2011 em 29 de Setembro de 2011, suporta a argumentação ora aduzida pela Recorrente, assim como os Acórdão da Segunda Instância de 29 de Setembro de 2011, produzido no âmbito do processo nº 475/2011, assim como o Acórdão de 23 de Julho de 2009, produzido no âmbito do Processo nº 348/2009.
XXVIII. A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 8° e 10° do Decreto-lei nº 40/95/M, devendo por isso ser substituída por outra que considere que a hemorragia cerebral súbita sofrido pela Trabalhadora não resultou de acidente de trabalho, mas da hipertensão que padecia, com a consequente absolvição da Recorrente relativamente aos pedidos de compensação formulados nos autos.
Pelas razões expostas
V. Exas., alterando a sentença recorrida em conformidade com o alegado, farão inteira e sã
JUSTIÇA.
Notificada a Autora ora recorrida, nos autos representado pelo Ministério Público, respondeu pugnando pela improcedência do recurso (vide as fls. 242 a 247 dos p. autos).
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Antes de mais, é de salientar a doutrina do saudoso PROFESSOR JOSÉ ALBERTO DOS REIS de que “quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” (in CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL ANOTADO, Volume V – Artigos 658.º a 720.º (Reimpressão), Coimbra Editora, 1984, pág. 143).
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, ex vi do artº 115º/1 do CPT, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
Assim, de acordo com as conclusões tecidas na minuta do recurso interposto pela Ré Companhia de Seguros da B, a recorrente avançou com dois fundamentos, um principal que consiste na impugnação da matéria de facto com vista à alteração da decisão de direito, e o outro subsidiário, que se prende com questão de direito.
Portanto são estas duas questões que constituem o objecto da nossa apreciação:
1. Da impugnação da matéria de facto; e
2. Da violação do disposto nos artºs 8º e 10º do Decreto-Lei nº 40/95/M.
Então vejamos.
1. Da impugnação da matéria de facto
Então comecemos pela reapreciação de matéria de facto.
Na sentença recorrida, foi pelo Tribunal a quo dada provada a seguinte matéria de facto:
1). Em 21 de Maio de 2010, pela 1hora e 50 m, a Autora sofreu uma síncope, tendo desmaiado no interior de uma sala de jogo do Casino Ponte 16, em Macau. (A)
2). A A. nasceu em 22/02/1971. (B)
3). A título de salário mensal a Autora auferia o valor de MOP$23.000,00. (C)
4). O facto descrito em A) ocorreu no tempo e local de trabalho. (1º)
5). Nas circunstâncias referidas em 1.°, a Autora prestava a sua actividade profissional de Assistant Pit Manager sob a autoridade, direcção e fiscalização da sua entidade patronal, "Sociedade de C". (2°)
6). Após o referido em 1.° a A. foi transferida, imediatamente, para o Hospital Kiang Wu, em Macau, onde foi observada e tratada, tendo ali ficado internada entre o dia 21/05/2010 e o dia 26/06/2010. (3°)
7). Recebendo, ainda, tratamento ambulatório periódico na consulta externa daquele estabelecimento hospitalar, até 12/01/2011. (4°)
8). À A. foi-lhe diagnosticado um "acidente vascular cerebral" e hipertensão e sofreu as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 62, que aqui se dá por integralmente reproduzido, tendo a A. sofrido, designadamente, uma hemorragia cerebral, que lhe provocou, como sequela definitiva, uma deformidade funcional do membro inferior esquerdo. (5°)
9). Na sequência do referido de 1.º a 4.º a A. despendeu, em despesas médicas, MOP $72.820,00. (6°)
10). Das despesas médicas supra referidas a A. apenas recebeu da Ré MOP$$35,200.60 (cf. doc. fls. 103 a 106). (7º)
11). Na sequência do descrito em 1.° a Autora sofreu 235 de incapacidade temporária absoluta. (8°)
12). E 20% de incapacidade parcial permanente. (9°)
A recorrente entende que houve erro na apreciação da prova no que diz respeito aos factos quesitados no ponto 10 da base instrutória, e pretende com a alteração da resposta negativa dada a esse quesito ver alterada a decisão de direito no sentido de excluir o direito à reparação reivindicado pela Autora, nos termos prescritos no artº 8º, in fine, do Decreto-Lei nº 40/95/M.
Ora, se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação de provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.
Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
No caso dos autos, houve gravação dos depoimentos.
O meio probatório que, na óptica da recorrente, impunha decisão diversa é o depoimento da testemunha E.
E foram indicadas as passagens da gravação do depoimento.
Satisfeitas assim as exigências processuais para a viabilização da reapreciação da matéria de facto com vista à eventual modificação por este Tribunal de Segunda Instância da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, passemos então a apreciar se existem as alegadas incorrecções na apreciação da prova pelo tribunal a quo.
A recorrente entende que o quesito 10º da base instrutória foi erradamente julgado como não provado.
Foi levado ao quesito 10º da base instrutória o seguinte:
O referido em A) dos factos assentes resultou de doença que a Autora sofria anteriormente?
Após a audiência de julgamento, esse quesito mereceu esta resposta:
Provado o que resulta respondido em 5º.
Ou seja, simplesmente não provado.
Para a recorrente, a testemunha E chegou a declarar perante o Tribunal a quo que a Autora sofria de hipertensão, assim como de uma deformação congénita de vasos sanguíneos, sendo o acidente um resultado natural dessas doenças que acompanhavam a Autora há já vários anos, referindo ainda que este tipo de acidentes sucede independentemente de qualquer nervosismo no trabalho, sem qualquer relação directa entre o acidente e o trabalho desenvolvido pela vítima.
Auscultadas e analisadas todas as passagens da gravação identificadas pela recorrente, verificamos que a testemunha, médico da cirurgia geral, alegou ter feito o exame directo à Autora e consultado os documentos nos autos sobre a história clínica da Autora, afirmou, perante o Tribunal, depois de juramento, de forma peremptória e repetida que o incidente sucedido com a Autora era evidentemente uma situação normal e espontânea que podia acontecer com uma pessoa que sofria de hipertensão e rigidez vascular, independentemente do trabalho por ela desenvolvido.
Ao passo que a testemunha F, que é o médico-legal do CHCSJ e nomeado pelo Ministério Público nos presentes autos para a realização do exame directo à Autora, declarou que uma das causas que contribuíram para a ocorrência do acidente de trabalho devia ser a circunstância, no momento dos factos, de a Autora estar emocionalmente muito nervosa por ter constatado uma diferença de HKD$50.000,00 entre as fichas e o dinheiro em numerário, tendo acrescentado que o ambiente do trabalho devia ser provocativo da hemorragia cerebral da Autora que sofria da hipertensão e rigidez vascular.
Ora, por força do princípio de imediação, em princípio é de reconhecer que, o Tribunal a quo está sempre no mais privilegiado posicionamento e em melhores condições para valorar as provas produzidas na audiência de julgamento do que o Tribunal de recurso.
Só que isto não quer dizer que é necessariamente assim.
Como sucede in casu, ante as duas versões de depoimento em confronto, ambas prestadas pelos profissionais especializados na medicina, estamos mais inclinados para acolher o depoimento do médico E, ao contrário da convicção que formou o Tribunal a quo.
Ora, este Médico explicou ao Tribunal que a hemorragia cerebral é um risco inerente à hipertensão não controlada, à rigidez vascular e à deformidade congénita de que sofria a Autora e poderia acontecer, mais cedo ou mais tarde, em qualquer circunstância, mesmo em estado estático do paciente, e afirmou de forma categórica que segundo estudou, não há relação causa-efeito entre a hemorragia cerebral e o trabalho que a Autora desenvolvia na altura.
Ao passo que o Médico F afirmou a existência da relação de causa-efeito entre o ambiente de trabalho da Autora e a hemorragia cerebral, pois para ele a circunstância de a Autora ficar muito emocionalmente nervosa por ter constatado uma diferença no valor de HKD$50.000,00 entre as fichas e o numerário é pelo menos uma das causas concorrentes para ocorrência do acidente.
Bom, para nós, salvo o devido respeito, o que o Sr. Médico F disse exorbitou um bocado aquilo que devia ser afirmado por um perito ou uma testemunha.
Pois a mesma testemunha qualificou o ocorrido como verdadeiro acidente de trabalho por entender que a hemorragia cerebral aconteceu no local e no tempo de trabalho.
Estava a aplicar o direito que, salvo o devido respeito, deve ser poder-dever do Tribunal.
Por outro lado, o mesmo perito afirmou que a circunstância de a Autora ficar emocionalmente nervosa por ter constatado a diferença entre as fichas e o dinheiro em numerário era pelo menos uma das causas concorrentes para a produção do acidente.
Todavia, essa afirmação não reforçou a existência da relação causa-efeito entre a hemorragia cerebral e o ambiente de trabalho, antes pelo contrário enfraqueceu a credibilidade da afirmação da existência da tal relação causa-efeito, uma vez que, conforme se vê na decisão de matéria de facto, não resultou provado o quesito 1º onde se perguntava se “o facto descrito em A) ocorreu no tempo e local de trabalho quando a Autora, ao constatar uma diferença de $50.000,00 HK dólares entre as fichas e o dinheiro em numerário, ficou muito nervosa, agitada e ansiosa?”.
Assim, fica sem alicerce a tese da existência da relação causa-efeito entre a hemorragia cerebral e o ambiente de trabalho, tal como foi afirmada pelo Médico F.
Portanto, pelo que foi dito supra, deve ser julgado provado o facto do quesito 10º, onde se perguntava que “o referido em A) dos factos assentes resultou de doença que a Autora sofria anteriormente.”.
Com a alteração da matéria de facto nos termos que vimos supra, é de considerar verificada a situação excepcional a que se refere o artº 8º do Decreto-Lei nº 40/95/M, à luz do qual “a predisposição patológica da vítima de um acidente não exclui o direito à reparação integral, salvo quando tiver sido causa única da lesão ou doença ou tiver sido dolosamente ocultada”.
Portanto, não há lugar à reparação.
Assim sendo, sem necessidade de entrar na apreciação do fundamento subsidiário de recurso que consiste na alegada violação do disposto nos artºs 8º e 10º do Decreto-Lei nº 40/95/M, por prejudicado, cremos que estamos em condições para julgar procedente o recurso e em consequência julgar improcedente a acção.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, julgando improcedente a acção e absolvendo a Ré do pedido.
Sem custas por isenção subjectiva – artº 2º/1-g) do RCT.
Notifique.
RAEM, 21JAN2016
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng