Processo nº 606/2015
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 17 de Março de 2016
Descritores:
-Autorização de residência
-Reagrupamento familiar
-Antecedentes criminais
-Direitos civis individuais
-Reabilitação
-Poderes discricionários
SUMÁRIO:
I. A circunstância de o certificado de registo criminal não contemplar já a punição criminal imposta ao recorrente, por força de reabilitação (cfr. fls. 39 do p.a.), em nada constitui obstáculo ao indeferimento da pretensão relativa à autorização de residência, na medida em que esta decisão administrativa se move por critérios que não coincidem necessariamente com aqueles que avultam no universo penal. Isto mesmo, aliás, se deve dizer da circunstância de o certificado não fazer menção à condenação por efeito do decurso de um prazo de suspensão da execução da pena sem nova condenação.
II. Tanto num caso, como no outro, o que conta para o decisor administrativo é o mundo da realidade material (aquele que se extrai dos factos ocorridos no passado temporal), não o da realidade formal (aquele que emerge de documento registral sobre o passado do indivíduo).
III. Os fins da reabilitação, na medida em que servem propósitos particulares, devem ceder perante os fins públicos servidos pela norma ao conferir o poder discricionário ao seu titular, relevando nos casos em que esteja em causa o exercício do direito de punir em processo criminal, pois aí só pode ser considerado pelo tribunal, no momento da decisão, o que consta do certificado (de onde foi cancelada anterior condenação por efeito da reabilitação). Mas já não valerá para efeitos administrativos no âmbito de actividade discricionária em que esteja em causa a apreciação das qualidades do indivíduo.
IV. Quando o legislador da Lei nº 4/2003 incluiu no art. 9º, nº2, al. 1), a expressão “antecedentes criminais” fê-lo num plano amplo de modo a abranger quaisquer condutas tipificadas criminalmente tanto na RAEM como no exterior. É esse passado do indivíduo que o legislador quer que a entidade administrativa competente leve em consideração, de forma a poder tomar uma decisão de acordo com os objectivos e valores plasmados no diploma, nomeadamente os de segurança e ordem pública.
V. Os direitos civis do indivíduo, nomeadamente o de constituir família e de a proteger - arts. 38º da Lei Básica, a Lei nº 6/94/M, de 1 de Agosto (Lei de Bases da Política Familiar), o art. 17º da Lei nº 29/78 (Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos), e Aviso do Chefe do Executivo nº 16/2001 - só podem ser realizados sem compressão, desde que não contendam com as regras que a sociedade tenha imposto perante agressões a valores e direitos de todos, como é o caso das que conferem ao elemento competente do Governo, tendentes a defender a ordem e a segurança públicas em cada momento.
VI. Razoabilidade, justiça, adequação e proporcionalidade são limites internos à actuação discricionária, que apenas permitem uma sindicância do tribunal ao acto administrativo sindicado em casos de erro grosseiro, manifesto e intolerável.
Proc. nº 606/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, casado, titular do HKID n.º KXXXXX0(6), residente em Hong Kong e com domicílio profissional em Macau, interpôs recurso contencioso do despacho exarado na Informação n.º 300122/CESMFR/2015P, pelo Exmº. Senhor Secretário para a Segurança, datado de 17 de Abril de 2015.
Na petição inicial, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
«A) Ao fundamentar-se o Despacho recorrido num único alegado delito cometido pelo Recorrente há quase 17 anos, caso assim se entenda, pois o que aí se refere é a mera existência de “Registo Criminal”, como integrador do conceito de “ameaça e perigo para segurança interna da RAEM”, a Autoridade recorrida viola o disposto no art. 8º, do Código Civil e no art. 5º, n.º 2 do CPA e, em consequência, viola claramente o Princípio da Legalidade porque sempre se devia nortear, incorrendo deste modo no vício de violação de lei, o que o toma nulo nos termos do art. 122º, n.º 2 alínea d), do CPA.
B) O Despacho recorrido incorre no vício de violação de lei pois fere, no seu núcleo essencial, Direitos Liberdades e Garantias do Recorrente e do seu agregado familiar, consagrados na Lei Básica da RA.E.M., bem como o art. 17º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, designadamente o Princípio da Legalidade, com o que, desde já, em função deste vício, se considera o Acto ferido de nulidade - cfr. art. 122º, n.º 2, alínea d) e 123º, do C.P.A..
C) Ao não respeitar as regras de interpretação das Leis, previstas no art. 8º, do Código Civil, e interpretando e aplicando erroneamente o disposto nos arts. 8º e 9º da Lei n.º 4/2003, de 17 de Março - sem atender quer ao conteúdo da Lei Básica, quer ao conteúdo da Lei de Bases da Política Familiar nº 6/94/M, de 1 de Agosto - a Autoridade recorrida incorreu, uma vez mais, no vício de violação de lei, pois violou todas as disposições legais citadas, designadamente, o art. 8º do Código Civil, os arts. 4º e 38º da Lei Básica, os arts. 2º, nºs 1 e 7, nº 1 e n.º 4, da Lei de Bases da Política Familiar constante da Lei nº 6/94/M, de 1 de Agosto, o art. 17º do mesmo Tratado Internacional supra referido e os arts. 3º, 4º, 5º e 7º, do CPA, o que torna nulo e de nenhum efeito o despacho recorrido, nos termos do art. 122º, n.º 2, alínea d) e 123º, ambos do CP A.
D) O Despacho recorrido, negando ao Recorrente autorização de residência na RAEM, viola os arts. 8º e 9º, da Lei n.º 4/2003, pois o Recorrente reúne todos os requisitos ali previstos para que lhe seja concedida essa autorização de residência e, portanto, interpretou e aplicou erroneamente estes normativos, violando deste modo Princípios de carácter constitucional no seu núcleo essencial, designadamente, os Princípios, da Legalidade, da Prossecução do Interesse Público e da Protecção dos Direitos e Interesses dos Residentes, o Princípio da Proporcionalidade e o Princípio da Justiça, com o que, em função destes vícios, padece de nulidade - cfr. art. 122º, n.º 2 alínea d) e 123º do C.P.A..
TERMOS EM QUE
nos melhores de Direito permitido, deve o presente recurso contencioso ser julgado procedente, declarando-se nulo, pelas apontadas ilegalidades, o acto recorrido, com todas as consequências legais, designadamente, concedendo-se a autorização de residência do recorrente na RAEM, pois aí vive a sua cônjuge e aqui o recorrente desenvolve a sua actividade empresarial.»
*
Contestou a entidade recorrida pugnando pela improcedência do recurso, em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
*
As partes não apresentaram alegações facultativas.
*
O digno Magistrado do MP emitiu na oportunidade o seguinte parecer:
«Objecto do presente recurso contencioso é o despacho de 17 de Abril de 2015, da autoria do Exm.º Secretário para a Segurança, através do qual foi denegado o pedido de autorização de residência na Região Administrativa Especial de Macau formulado pelo ora recorrente A.
Fundou-se tal acto no normativo do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1), da Lei 4/2003, por via dos antecedentes criminais que o requerente possui e de cuja decisão condenatória foi junta certidão ao processo instrutor.
O recorrente acha que o acto está eivado dos vários vícios de violação de lei que lhe imputa na sua petição de recurso, no que é contraditado pela autoridade recorrida, cuja contestação se pronuncia pela legalidade do acto e pela sequente improcedência do recurso.
Vejamos.
O recorrente começa por verberar a relevância que a Administração conferiu aos seus antecedentes criminais, indo ao ponto de afirmar que não lhe podem ser assacadas condutas criminosas para os efeitos da Lei 4/2003, pelo que o acto recorrido teria violado, por erro de interpretação, o artigo 9. º, n. º 2, alínea 1), da Lei 4/2003.
Cremos que não tem razão.
Como bem resulta do processo instrutor, o recorrente possui antecedentes criminais em Macau - cf. certidão de fls. 72 e seguintes. Foi julgado, perante um tribunal criminal, por posse de estupefacientes para consumo próprio e condenado a uma pena de multa convertível em prisão.
O facto de estar em causa uma pena de multa não apaga o carácter criminal da conduta, não podendo ser menorizado, como pretende o recorrente. A circunstância de se tratar de condenação ocorrida há um lapso de tempo considerável e de não poder ser porventura considerada para efeitos penais, atento o disposto no artigo 24.º do DL 27/96/M, de 3 de Junho, não impede, a nosso ver, que possa e deva ser valorada nos termos e para os efeitos previstos na Lei 4/2003. São diferentes os valores e os interesses prosseguidos do ponto de vista penal e na perspectiva administrativa aqui em causa, pontuando ali finalidades de ressocialização, justificativas da reabilitação, e sobrelevando aqui preocupações de segurança e ordem públicas que têm que ser ponderadas no procedimento de concessão de autorização de residência.
Donde a conclusão de que a Administração não podia deixar de atender aos antecedentes criminais, dado tratar-se de factor importante na apreciação do pedido. Não se vislumbra, pois, qualquer violação de lei, por errada interpretação daquele inciso.
Seguidamente, o recorrente faz uma incursão por diplomas legais que conferem e protegem direitos, liberdades e garantias, intentando demonstrar que o acto recorrido, ao denegar-lhe a possibilidade de fixação de residência na Região Administrativa Especial de Macau, incorreu em violação de alguns dos normativos desses diplomas e de princípios neles corporizados.
É o caso da Lei Básica, cujos artigos 4.º e 38.º o recorrente chama à colação para enfatizar a protecção legal que é assegurada, na Região Administrativa Especial de Macau, aos direitos e liberdades dos residentes e não residentes, onde pontuam a liberdade de contrair casamento e o direito de constituir família. É também o caso da Lei de Bases da Política Familiar, da qual invoca a unidade e estabilidade em que assenta a instituição familiar, prevista no artigo 2.º, n. º 1, bem como a salvaguarda dos valores inerentes à assistência mútua e comunhão de leito, mesa e habitação, em decorrência do artigo 7.º, n.ºs 1 e 4. É, finalmente, o caso do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a que alude para destacar a proibição de intervenções arbitrárias ou ilegais na família, prevista no seu artigo 17. º, n.º 1.
Também aqui não lhe assiste razão.
A argumentação do recorrente, nesta parte, parece dirigida a um acto ablativo, que teria originado uma intervenção arbitrária na sua família, com funestas consequências a nível da unidade e estabilidade familiar, redundando nomeadamente na separação entre o recorrente e a mulher.
Mas nada disto sucedeu, não estando em causa qualquer acto ablativo.
Como a autoridade recorrida evidencia, estamos perante um acto administrativo de conteúdo puramente negativo. A denegação da autorização de residência deixa o recorrente na situação em que se encontrava, não interferindo de forma activa na família nem atingindo quaisquer dos direitos ou garantias que o recorrente considera ofendidos.
De resto, e conforme também salienta a entidade recorrida, como residente de Hong Kong, não está o recorrente privado ou limitado de reunir e conviver com a família que reside em Macau.
Não se divisa, assim, também nesta parte, que o acto afronte quaisquer das normas referidas ou viole os princípios a que tais normas dão corpo.
O recorrente assaca ainda ao acto o vício de violação de lei, por ofensa dos princípios da justiça e da proporcionalidade na apreciação do caso, deixando entrever que não teria sido dado o relevo devido à sua situação familiar, em detrimento de uma exagerada valoração do interesse público na ponderação do seu registo criminal.
Mas também neste ponto lhe falece a razão.
O princípio da justiça postula que a Administração, na sua actuação, harmonize o interesse público que visa prosseguir com os direitos e interesses legítimos dos particulares afectados pelo acto. Por seu turno, o princípio da proporcionalidade, que é um corolário do princípio da justiça, obriga a que as decisões administrativas que colidam com aqueles direitos e interesses dos particulares apenas possam afectar as posições destes na justa medida da necessidade reclamada pelos objectivos a prosseguir.
Pois bem, estando em causa, como estava, a autorização de fixação de residência na Região Administrativa Especial de Macau, só duas hipóteses se colocavam: conceder a autorização ou denegá-la.
O acto recorrido tomou em linha de conta a finalidade do pedido de residência (reunião familiar) e os antecedentes criminais do requerente, conforme resulta dos pareceres e informações que antecederam o despacho recorrido e que por este foram apropriados, tendo, perante os valores em presença, atribuído prevalência ao interesse público, o que se compreende e é aceitável pelo potencial de ameaça latente que os antecedentes criminais do recorrente, fundados em detenção de droga, podem representar para a segurança e ordem pública da Região Administrativa Especial de Macau.
E esta primazia conferida ao interesse público é tanto mais aceitável quanto é certo que o acto é proferido no exercício de um poder discricionário, posto que enformado pela ponderação de certos aspectos a que a lei manda atender.
Neste contexto, aqueles princípios saem inteiramente incólumes, nenhuma afronta lhes tendo sido feita pelo acto recorrido, que, como já se deixou antever, não padece de erro, muito menos ostensivo ou grosseiro, que caucione uma interferência do tribunal relativamente ao sentido do exercício daquele poder discricionário.
Soçobra, assim, também o invocado vício de violação de lei por ofensa dos princípios da justiça e da proporcionalidade.
Termos em que, na improcedência dos suscitados vícios, o nosso parecer vai no sentido do não provimento do recurso.».
*
Cumpre decidir.
***
II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
***
III – Os factos
1 – O recorrente requereu a concessão de autorização de fixação de residência em Macau a fim de se poder juntar ao cônjuge B.
2 – Na oportunidade foi lavrado o seguinte relatório nº 200174/CESMFR/2015P:
«Relatório n.º 200174/CESMFR/2015P
1. O requerente, A, do sexo masculino, casado, XX anos, nascido em Hong Kong aos XX de XX de 19XX, da nacionalidade chinesa, portador do BIR Hong Kong permanente n.º KXXXXX0(6), emitido aos 13 de Outubro de 2005, aos 19 de Novembro de 2014, requereu concessão de autorização de fixação de residência em Macau, a fim de poder se reunir com o cônjuge B, portadora do BIRM permanente n.º 5XXXXX2(6), também do BIR HK n.º KXXXXX1(9).
2. A fiadora é o cônjuge dele.
3. O requerente já entregou os documentos necessários para a autorização de fixação de residência nos termos do n.º 15 do Regulamento Administrativo n.º 5/2003, incluindo:
• a certidão de nascimento em Hong Kong;
• o certificado de casamento em Hong Kong; (data do casamento: 23/03/2010; data da emissão: 28/10/2014)
• documentação comprovativa da capacidade de subsistência;
• o certificado de inexistência de registo criminal em Hong Kong e o certificado de registo criminal em Macau.
4. A declaração do casal do requerente declarando que os dois mantêm a relação matrimonial legal e a vivência em conjunto. (documento 7)
5. Segundo os dados fornecidos pelo Departamento de Informação deste CPSP, o requerente tem os seguintes registos (documento 2)
• Aos 10 de Novembro de 1999, por ser suspeito de ter droga escondida, o interessado foi remetido pela alfândega à PJ para ser processado.
• Aos 2 de Novembro de 2003, a PJ emitiu intercepção; aos 19 de Dezembro de 2003, cancelou-se a intercepção.
• Aos 11 de Junho de 2004, o MP emitiu mandado de detenção.
• Aos 17 de Junho de 2004, segundo o ofício do MP, o Comissariado do posto fronteiriço do aeroporto do Serviço de Migração interceptou o interessado e entregou-o à Divisão de Informação para ser tratado (condenado à multa por ter violado o Código da Estrada, e pagou a multa depois de ser interceptado).
6. Segundo as informações constantes da sentença n.º 4478/1999 do TJB, aos 11 de Novembro de 1999, o requerente foi condenado à multa de $3000, conversível em 45 dias de pena de prisão, por ter cometido um crime de consumo de droga, p. e p. pelo artigo 23.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
7. O requerente entregou a declaração, que diz “como a tradução fonética dos documentos adoptada pelo antigo Governo Britânico difere-se da tradução fonética actual do Governo de Hong Kong, as 2 traduções do nome da mãe pertencem à mesma pessoa. E daí em diante, todos os documentos de Hong Kong adoptam C. Declara-se agora que as traduções fonéticas do nome da mãe D e C referem-se à mesma pessoa. Eu, A, com o nome original E, mudado para F, mudado depois mais uma vez para A; os 3 nomes referem-se à mesma pessoa, eu. Pela presente se declara.” (documento 11)
8. O certificado de assunto registado em Hong Kong do requerente, segundo o qual o nome original do requerente é E, mudado para F, aos 30/08/1989. (documento 12)
9. O requerente apresentou uma correspondência, cujo conteúdo é, essencialmente: “... Aos 14 de Julho de 2010, pedi ao vosso Departamento ‘autorização de residência / para me reunir com a mulher’... foi-me indeferido. Eu e a mulher sentimo-nos profundamente afligidos e desapontados. Espero agora que o vosso Departamento me possa dar mais uma oportunidade. Estou disposto a contribuir para a sociedade de Macau e já sou um dos sócios legais de duas empresas... Apesar de ser já sócio de empresa, com o módico juro dos sócios, não se consegue manter a vida quotidiana actual altamente inflacionada. Se não consigo arranjar emprego, é-me difícil tomar conta da mãe e da mulher Enquanto sustentáculo familiar... e preparar-me para a vinda da vida nova…” (documento 13)
10. Através da consulta do registo de saída e entrada nas fronteiras deste Departamento no meio ano mais recente (01107/2014 a 31/12/2014), prova-se que o cônjuge do requerente permaneceu em Macau por um total de 182 dias. (documento 16)
11. O requerente tem arquivo pessoal (P0XXXXX7) neste Departamento. Eis são os dados:
• Relatório n.º MIG.691/2010/FR, aos 08/06/2011, o ex-Secretário para a Segurança proferiu despacho, indeferindo o pedido de autorização de fixação de residência do requerente (para se reunir com o cônjuge).
12. À decisão superior.
A elaboradora,
(ass.: vd. o original) G 1XXXX0
Aos 29 de Janeiro de 2015»
3 – Após a audiência de interessados, foi elaborado o Relatório complementar nº 300122/CESMFR/2015P, de 12/03/2015, com o seguinte conteúdo:
«Assunto: pedido de autorização de fixação de residência
Relatório complementar n.º 300122/CESMFR/2015P
Data: 12/03/2015
1. Com referência ao pedido de fixação de residência em Macau apresentado pelo requerente Sr. A aos 19/11/2014, para poder reunir-se com o cônjuge B, portadora do BIRM permanente, redigimos o relatório n.º 200174/CESMFR/2015P aos 29/01/2015.
.../...
2. Este Serviço tenciona “indeferir” o pedido; pelo que aos 05/02/2015, segundo a morada declarada pelo requerente, nos termos dos artigos 93,º e 94.º do Código do Procedimento Administrativo (audiência escrita), o nosso Serviço deu a conhecer ao requerente formalmente os motivos concretos conducentes à nossa proposta de indeferimento; podendo ele, no prazo de 10 dias após a recepção do aviso, pronunciar-se por escrito sobre o conteúdo da proposta, vd. em mais detalhes o Aviso de Audiência n.º 200174/CESMFR/2015P. (vd. em mais detalhes o documento 17)
3. Após o procedimento da audiência escrita, a advogada patrona do requerente apresentou as alegações escritas:
- As alegações escritas da advogada patrona do requerente declaram essencialmente: “... o requerente considera que falta fundamento para indeferir o seu pedido de concessão de autorização de fixação de residência com o motivo da reunião familiar. Na realidade, estão satisfeitas todas as condições para a concessão da autorização de fixação de residência no caso do requerente. Portanto, não se concorda absolutamente com a intenção de indeferimento, de que a existência do registo criminal constitui impedimento ao exercício do direito à reunião familiar pelo requerente. O 'antecedente criminal' não é igual ao 'registo criminal', sendo o significado dos dois conceitos frequentemente confundidos. ... O requerente tem tal registo criminal: condenação à multa pelo consumo de droga perigosa. Portanto, prova-se que o requerente não tem antecedente criminal; trata-se de uma pena muito leve. Ainda por cima, aconteceu já há 16 anos. O requerente só tinha 20 anos na altura, e tem 37 anos agora. Portanto, esta pena não pode ser incluída em 'antecedente criminal'. ... Quando o requerente tomou a droga perigosa, ele era muito jovem, apesar do grande poder discricionário que as autoridades administrativas têm, não podem incluir esta pena em 'antecedente criminal'; seria ilegal, desapropriado, e injusto. ... O requerente satisfaz os requisitos legais, pode-lhe conceder a autorização de fixação de residência com o motivo de reunião familiar. Depois de o requerente ter cometido o pequeno erro, não tem outros registos criminais. O requerente já é casado, e é pai. Portanto, precisa-se a reunião familiar. Ao mesmo tempo, o requerente tem emprego, e é o pilar sustentador económico da família, esperando poder exercer responsabilidades familiares com o cônjuge... O I requerente é uma pessoa séria e contribuidora para a sociedade. Portanto, I não se pode de qualquer maneira duvidar da personalidade dele... Embora seja residente permanente de HK, ele está em Macau na maior parte do tempo. Ele é um dos sócios de uma companhia de automóveis em Macau e tem contribuído para a economia de Macau nestes 10 anos. ... Em resumo, exige-se autorizar imediatamente o pedido de concessão de autorização de fixação de residência do requerente.” (vd. em mais detalhes o Documento 18).
4. Faz-se uma análise sintética do presente caso:
• Em 1999, o requerente foi condenado à multa de $3000 pelo TJB de Macau, por ter cometido um crime de consumo de droga.
• Em 2010, o requerente pediu concessão de autorização de fixação de residência, com o motivo da reunião com o cônjuge, o ex-Secretário para a Segurança indeferiu o pedido da concessão de autorização de fixação de residência do requerente pela existência verdadeira do “antecedente criminal” do requerente.
• o crime cometido pelo requerente não pode ser classificado como crime leve, e constitui ameaça latente à segurança e ordem pública de Macau, pelo que deve ser indeferido o presente pedido de fixação de residência.
5. À decisão superior.
A elaboradora, O Chefe do Comissariado de Estrangeiro,
(ass.: vd. o original) (ass.: vd. o original)
G H
1XXXX0 Comissário».
4 – A Chefe Substituta do Serviço de Migração, em 20/03/2015, lavrou a seguinte proposta de decisão:
«1. O requerente, do sexo masculino, casado, 41 anos, nascido em Hong Kong, portador do BIR Hong Kong permanente, requer agora concessão de autorização de fixação de residência em Macau, a fim de poder se reunir com o cônjuge portador do BIRM permanente.
2. Segundo a decisão n.º 478/1999 do TJB de Macau, o requerente foi condenado à multa de $3900, conversível em 45 dias de pena de prisão, por ter cometido um crime de consumo de droga, p. e p. pelo artigo 23.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 5/91/M.
3. De acordo com o supra número 2, tendo em conta a existência do “antecedente criminal” do requerente, é de indeferir o seu requerimento de autorização de fixação de residência.
4. Após o processo de audiência escrita (Documento 17), a advogada patrona do requerente apresentou alegações escritas (vd. em mais detalhes o ponto 3 deste Relatório).
5. Tendo em conta a insuficiência dos documentos apresentados e das razões alegadas durante a fase de audiência pelo requerente, como também a ameaça latente que o crime praticado pelo requerimento implica para a segurança e a ordem pública do Território, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, alínea 1) (antecedentes criminais) da Lei n.º 4/2003, sugere-se indeferir o presente requerimento de autorização de fixação de residência.
6. À apreciação e consideração do Sr. Comandante.
Aos 20/03/2015
A chefe substituta do Serviço de Migração
I (ass.: vd. o origianl)
Subintendente»
5 – O Comandante da PSP, em 25/03/2015, opinou:
«Concordo.
À apreciação do Sr. Secretário para a Segurança».
6 – O Secretário para a Segurança, em 17/04/2015, proferiu então o seguinte despacho:
«Indefiro nos termos e com os fundamentos do parecer constante desta informação” (fls. 6, do p.a; fls. 12 do apenso “traduções”).
7 – O recorrente é sócio na “Companhia de Reparação de Automóveis J, Lda”, exercendo a respectiva actividade.
8 – O recorrente, nascido em Hong Kong, casou em 23/03/2010 com B, portadora de BIRM permanente.
9 – Em 11/11/1999, foi o recorrente condenado no Proc. nº 4478/1999 do TJB de Macau na multa de Mop$ 3000,00, convertível em 45 dias de prisão, pela prática de um crime de consumo de droga, p. e p. pelo art. 23º, al. a), do DL nº 5/91/M.
10 – Desde aquela data o certificado de registo criminal do recorrente não revela a prática de nenhum outro ilícito criminal.
***
IV – O Direito
1 – Por ter sido condenado há cerca de 16 anos por uma alegada “bagatela penal”, em pena de multa que cumpriu, e por nunca mais ter sido judicialmente punido, acha o recorrente que o acto administrativo viola o disposto no art. 8º do Código Civil.
Não parece que tenha, porém, razão.
Com efeito, não vemos em que medida o art. 8º do CC tenha sido postergado no âmbito da interpretação do art. 9º, nº2, al. 1), da Lei nº 4/2003, de 17/03.
Em sua opinião, não pode confundir-se “antecedentes criminais” com “registo criminal”. E seria por isso mesmo que a melhor hermenêutica tendente ao apuramento do pensamento do legislador não pode deixar de ter-se em conta o disposto no art. 8º do CC.
Ora bem. Aquela disposição dispõe que o Chefe do Executivo pode conceder a autorização de residência considerando os “antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4º da presente lei” (destaque nosso).
Quanto a nós, o regime de entrada, permanência e autorização de residência constante da Lei nº 4/2003, é muito claro e das suas normas não decorre fatalmente, à luz do citado art. 8º do CC, a impossibilidade de uma interpretação diversa da efectuada pelo acto sindicado.
Se o legislador incluiu a expressão “antecedentes criminais” fê-lo num plano amplo de modo a abranger quaisquer condutas tipificadas criminalmente tanto na RAEM, como no exterior (Ac. do TUI, de 14/12/2012, Proc. nº 76/2012). É esse passado do indivíduo que o legislador quer que a entidade administrativa competente leve em consideração, de forma a poder tomar uma decisão de acordo com os valores e objectivos plasmados no diploma em apreço, nomeadamente os de segurança e ordem pública.
Para os efeitos da nossa lei, o perigo e ameaça em causa deverão ater-se ao tipo de ilícito cometido, capaz de revelar uma personalidade mal formada ou que induza a uma ideia de ameaça em qualquer espaço geográfico do mundo, em especial na RAEM.
É por isso que o facto de o recorrente ser casado com uma residente local não conduz, face à lei, a uma decisão necessariamente favorável à sua pretensão, nem obsta ao indeferimento desta. O que vale por dizer que em caso nenhum a reunião familiar pode ultrapassar os limites dos requisitos essenciais, situados a montante, à concessão da autorização de residência.
Portanto, não cremos que o art. 8º do CC acuda ao recorrente ou que o art. 9º, nº2, al. 1), citado tenha sido mal interpretado.
*
2 – Defende o recorrente também que o acto fere o núcleo essencial de direitos, liberdades e garantias, suas e do seu agregado familiar, consagrados nos arts. 4º e 38º da Lei Básica da RAEM, bem como o art. 17º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e arts. 2º, nºs 1 e 7 Lei nº 6/94/M, de 1 de Agosto (Lei de Bases da Política Familiar) e Aviso do Chefe do Executivo nº 16/2001.
Porém, nenhum dos direitos em apreço, nomeadamente o de casar, de contrair família, de exercer os direitos/deveres de protecção aos filhos menores, etc., etc., foi posto em risco.
O que se passa é que, por vezes, há conflitos de direitos. De um lado, direitos subjectivos e fundamentais do indivíduo; do outro, direitos e valores colectivos e societários.
Sabemos, é claro, que os direitos do indivíduo devem, em princípio, ser realizados sem compressão, desde que eles não contendam com as regras que a sociedade tenha imposto perante agressões a valores e direitos de todos.
Se assim não fosse de entender, isto é, se o direito individual, mesmo que fundamental, pudesse sobrepor-se sempre e em todos os casos ao direito de todos à ordem e segurança públicas, por exemplo, poderíamos cair em situações extremas de ter que se conceder autorização de residência a um criminoso perigoso por homicídios cometidos em África, sempre que ele pretendesse o reagrupamento familiar dessa pessoa com residentes de Macau.
Como bem sabe o recorrente, as coisas não funcionam assim, não obstante estarem em discussão aspectos de grande sensibilidade social e familiar, como é o caso do direito à família. Amor e carinho que na célula familiar todos devem nutrir uns pelos outros são importantes; contudo, não podemos deixar de reconhecer que, constituindo eles aspectos de grande sensibilidade, pertencem, porém, ao foro não jurídico.
Juridicamente, o que há a dizer é que cada instrumento normativo, cada grupo de normas e cada norma em si mesma, tem o seu campo específico de acção, no respeito sempre presente por outros instrumentos, por outros grupos de normas, por outras normas. Ora, o que o recorrente pretenderá é sobrelevar os direitos que invoca (que não dizemos serem ilegítimos), colocando-os num plano superior ou de anterioridade superlativa, em detrimento dos direitos da sociedade no seu conjunto, conferidos ao elemento do Governo competente, tendentes a defender a ordem e a segurança públicas em cada momento.
Não estamos a dizer que o recorrente é um perigo para a ordem ou para a segurança pública, evidentemente, mas sim que a lei confere à entidade competente o direito de decidir pretensões como a aqui discutida tendo em mente aqueles valores sociais de ordem e segurança públicas.
A esta conclusão, por estas ou outras semelhantes palavras, já este TSI chegou noutras ocasiões (v.g., Acs. de 14/12/2006, Proc. nº 317/2006;26/07/2012, Proc. nº 766/2011; 6/12/2012, Proc. nº 269/2012).
Quer isto dizer, então, que aqueles diplomas e disposições não podem ser dados por violados.
*
3 – Invoca, também, a violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça, bem como os da legalidade e da prossecução do interesse público.
É claro que decorreram largos anos sobre a condenação. Sim. Todavia, nem aí pode o tribunal intervir. Porquê?
Porque «… Para a lei não é particularmente relevante o tempo decorrido desde a prática de crimes e as condenações. Na óptica do legislador, as condenações criminais anteriores, bem como os fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes susceptíveis de ser motivo de recusa da entrada dos não residentes na RAEM (art.º 4.º, n.º 2, al. d) da Lei n.º 4/2003), constituem sempre motivo de alarme para a ordem e segurança públicas da Região.
Em princípio, os interesses públicos de tranquilidade prevalecem sobre os interesses individuais de interessados de entrar e residir na Região.
Ou seja, os antecedentes criminais, seja qual for o período já decorrido depois da condenação, são sempre o factor a considerar na apreciação do pedido de autorização de residência.» (Ac. do TUI, de 13/12/2007, Proc. nº 36/2006).
Porque a “ordem” e “segurança públicas” que o acto disse visar garantir não podem ser sindicados na zona de incerteza e de prognose sobre comportamento futuro das pessoas visadas, salvo em caso de manifesto e ostensivo erro grosseiro e tosco e, como também já se disse, intolerável (Ac. TSI, de 19/11/2015, Proc. nº 827/2014).
E isto vem, agora, a propósito, da desrazoabilidade do exercício dos poderes discricionários e da injustiça que a decisão administrativa para o recorrente diz representar.
Como teve este tribunal oportunidade de asseverar, “A total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários que serve de fundamento ao recurso contencioso (art. 21º, al. d), do CPAC) é aquela que tem o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. Decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional.” (Ac. TSI, de 5/12/2013, Proc. nº 340/2013).
E, por outro lado, “Um acto injusto é aquele que o administrado não merece, ou porque vai além do que o aconselha a natureza do caso e impõe sacrifícios infundados atendendo à matéria envolvida, ou porque não considera aspectos pessoais do destinatário que deveriam ter levado a outras ponderação e prudência administrativas. É injusto porque, podendo o seu objecto realizar-se com uma carga menor para o administrado, a este se lhe impõe, apesar disso, um gravame penoso demais” (Ac. TSI, de 5/12/2013, Proc. nº 340/2013).
Falar em desproporcionalidade, desrazoabilidade e injustiça, é falar em discricionariedade, constituindo aqueles limites a esta.
E sabemos que é actuação discricionária aquela em que a Administração actua em situações de autorização de residência, o que significa que só em casos de erro grosseiro, manifesto e intolerável no exercício dos poderes discricionários o tribunal pode intervir (neste sentido, entre outros, Ac. do TUI, de 28/01/2015, Proc. nº 123/2014; de 9/07/2014, Proc. nº 29/2014; do TSI citado de 19/11/2015, Proc. nº 827/2014).
Vale isto por dizer, também, que o tribunal só pode sindicar a actuação da Administração naqueles casos em que tenham sido desrespeitados os aspectos vinculados que sempre seriam de observar, como é, por exemplo, o caso da fundamentação, do acerto nos pressupostos de facto, nas formalidades que importa observar face à lei (limites externos da discricionariedade), ou ainda nos de violação dos princípios gerais de direito administrativo plasmados no art. 3º e sgs. do CPA (limites internos da discricionariedade), tal como este TSI já decidiu (Ac. TSI, de 23/07/2015, Proc. nº 559/2014).
Ora, nós não vislumbramos erro grosseiro e manifesto no exercício concreto dos poderes discricionários neste caso, para mais se tivermos presente o tipo de ilícito que o recorrente em tempos chegou a cometer, e que foi, como sabemos, o de consumo de droga, p. e p. pelo art. 23º, al. a), do Dl nº 5/91/M.e imigrantes ilegais. Neste aspecto, portanto, ao tribunal não cabe fazer censura ao acto administrativo em apreço. Não existe desrazoabilidade da actividade administrativa se nesta se descortinar em concreto a prossecução do interesse público e se for de considerar adequado o comportamento da Administração tendo em vista a realização daquele interesse.
Sendo assim, não achamos violados os princípios da proporcionalidade (art. 5º, do CPA) e da justiça (art. 7º, do CPA).
*
4 – Da mesma maneira, e pelas razões acabadas de referir, igualmente não podemos dizer terem sido violados direitos fundamentais do recorrente e da esposa, assim como não podemos acompanhá-lo quando invoca a violação dos arts. 4º (violação do princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos)
Repetimos: os direitos do recorrente à família, não foram violados. O que houve foi uma compressão deles, em face do seu próprio comportamento que levou a Administração a não lhe conceder autorização de residência. Todavia, o facto de não dispor de autorização para residir em Macau não significa que tenha sido violado o direito de manter a sua família e de dar à esposa a protecção que elas merecem. O recorrente pode reunir com a família, dar-lhe auxílio e amparo, amor e carinho; apenas não pode fazê-lo residindo em Macau ao abrigo de uma autorização administrativa que confira um estatuto próprio. Mas, enquanto cidadão residente na RAEHK, e para esses fins, nada impede que venha a Macau com a frequência que ache conveniente e adequada.
Tal como não vemos que o princípio da legalidade (art. 3º, nº1 do CPA) tenha sido ofendido, pois, na verdade, a Administração agiu em obediência à lei e ao direito dentro dos limites dos poderes que lhe foram atribuídos e em conformidade com os fins securitários e de ordem pública para os quais os poderes lhe foram conferidos.
***
V – Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente, com imposto de justiça em 4 UC.
TSI, 17 de Março de 2016
_________________________ _________________________
José Cândido de Pinho Vitor Manuel Carvalho Coelho
(Fui presente)
_________________________
Tong Hio Fong
_________________________
Lai Kin Hong
606/2015 26