Processo nº 913/2015
(Recurso cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data: 28/Abril/2016
Assuntos:
- Extinção de enfiteuse por não pagamento do foro; contagem objectiva do prazo de não pagamento
SUMÁRIO :
Pela letra, pelo espírito e pela natureza do direito e sua causa extintiva é de considerar que a previsão do prazo extintivo da enfiteuse, de não pagamento do foro, assume uma natureza objectiva, respeita à situação continuada no tempo de não pagamento do foro por 20 anos, pelo que não deixa de relevar, independentemente de quem tenha deixado de pagar o foro.
O Relator,
Processo n.º 913/2015
(Recurso Civil)
Data : 28/Abril/2016
Recorrente : - Companhia de Desenvolvimento A Limitada
Recorridos : - B
- Herdeiros Incertos de B
- Interessados incertos
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
COMPANHIA DE DESENVOLVIMENTO A LIMITADA, em chinês "A發展有限公司", A. e ora Recorrente nos autos em epígrafe e neles mais bem identificada, em que são RR., B, Herdeiros Incertos de B e interessados incertos, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, a fls. 135 e ss. dos autos, datada de 27/05/2015, na parte em que julgou improcedente a acção e em consequência decidiu absolver os RR. do pedido de extinção de enfiteuse incidente sobre o prédio urbano com o n.° 13 da Rua Camilo Pessanha, Macau, inscrito na matriz sob o artigo 1XXX1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob n.° 1643, a fls. 107V, do livro 89, dela vem recorrer, alegando, em síntese conclusiva:
I. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, a fls. 135 e ss. dos autos, na parte em que julgou improcedente a acção e em consequência decidiu absolver B e os Herdeiros Incertos de B dos pedidos".
II. Foram dados como provados os factos referidos no ponto B.1. supra das alegações, designadamente, que pelo menos, desde 11 de Maio de 1993 que não é pago nem cobrado foro relativamente ao prédio em causa nos autos.
III. Porém, o Tribunal a quo, na sentença recorrida, considerou improcedente o pedido formulado pela ora Recorrente, de declarar extinta a enfiteuse por falta de pagamento do foro durante vinte anos, por entender que, não obstante estar provado a falta de pagamento do foro por mais de vinte anos, da perspectiva da Recorrente, apenas houve falta de pagamento do foro durante dois anos, uma vez que esta só adquiriu o domínio útil do prédio em causa há dois anos.
IV. Para tal, sustentou ainda aquele douto Tribunal, que não pode ter aplicabilidade, in casu, a norma do artigo 1180.° do CCM, por esta ser uma norma de carácter especial, destinada a permitir a junção de duas posses, uma derivada de outra, não prevendo a mesma a adição do período de tempo por que o anterior enfiteuta deixou de pagar o foro ao período de tempo por que o novo enfiteuta fez o mesmo.
V. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo, ao ter decidido como decidiu, salvo o devido respeito que merecem todas as decisões judiciais, cometeu diversos e graves erros de julgamento, designadamente interpretando mal conceitos e institutos jurídicos, retirando dos mesmos conclusões de direito que não têm qualquer suporte nos factos dados como provados pelo mesmo Tribunal, na lei aplicável, nem, tampouco na jurisprudência que se vem debruçando sobre questões semelhantes.
VI. Em primeiro lugar, cumpre afirmar que a Recorrente jamais fundamentou o seu pedido de extinção da enfiteuse no artigo 1180.° do CCM na medida em que existem normas específicas para a questão em apreço.
VII. Com efeito, determina o artigo 25° do Decreto-Lei 39/99/M, de 3 de Agosto, que é nula a constituição de qualquer nova enfiteuse sobre bens do domínio privado dos particulares, aplicando-se às situações já existentes à data da entrada em vigor do CCM, até à sua extinção, o Código Civil de 1966.
VIII. Pelo que enquadrando-se o caso sub judice numa situação de enfiteuse a bens do domínio privado dos particulares, constituída antes da entrada em vigor do CCM, aplicar-se-á ao mesmo o regime da enfiteuse previsto no CC de 1966.
IX. O artigo 1513.° do CC de 1966 define um conjunto de causas objectivas de extinção de enfiteuse ou seja, uma vez verificadas, originam a extinção daquele direito real, sendo uma delas, a que interessa para o caso concreto, a falta de pagamento do foro durante vinte anos, nos termos da alínea d) do referido artigo.
X. Não resulta da letra da lei que a falta de pagamento foro tem de ocorrer sobre o mesmo titular do domínio útil ao longo de 20 anos, como entendeu o Tribunal a quo, para indeferir a pretensão da Recorrente.
XI. Também não resulta do espírito da norma, interpretada tendo em conta, sobretudo, a unidade do sistema jurídico, em particular do instituto da enfiteuse.
XII. Na verdade, tal entendimento favorece a manutenção injustificada e quase ad eternun da situação de emprazamento, em flagrante oposição com o regime da enfiteuse constante do Código Civil de 1966.
XIII. Com feito, nota-se da análise do regime da enfiteuse que, apesar de admitido na vigência do Código Civil de 1966, mesmo à luz dessa lei, não era uma situação desejável, consagrando a mesma várias situações conducentes à sua extinção, para além daquelas previstas no referido artigo 1513° do CC de 1996, como por exemplo, a faculdade conferida ao enfiteuta de remir o foro quando o emprazamento dura há mais de 40 anos (artigos 1511.°, n.º 1, 1501°, alínea f), o direito de preferência que se concede quer ao senhorio na venda ou dação em pagamento do domínio útil, quer ao enfiteuta na venda ou dação em pagamento do domínio directo (1499.°, alínea c) e 1501.°, alínea d), ou ainda, no direito conferido ao senhorio de suceder no domínio útil na falta de herdeiro testamentário ou legítimo do enfiteuta (1499.°, alínea d) todos do CC de 1966).
XIV. Por outro lado, crê-se que, subjacente à norma da alínea d) do artigo 1513° do CC de 1966, está a ideia de que, consistindo o direito do senhorio em, basicamente, cobrar o foro anual, é absolutamente natural que, com o passar do tempo, o mesmo vá-se afastando gradualmente da coisa, acabando por nem sequer se preocupar com a cobrança do foro, sobretudo se o valor deste não sofrer actualizações ao longo dos anos e passar a ser um valor ridículo, como acontece no caso em apreço, que é de MOP$ 8,00 por ano.
XV. Assim, com todo o respeito, não faz qualquer sentido o entendimento vertido na sentença recorrida segundo o qual apenas o titular do domínio útil que o seja durante 20 anos sem pagar o foro, pode pedir a extinção da enfiteuse com base na norma da alínea d) do artigo 1513°.
XVI. De resto, tal tese não só contraria o próprio regime da enfiteuse tal como o mesmo se encontra estabelecido no Código de 1966, como vai contra a ordem jurídica existente, ao fomentar a protelação no tempo de um instituto jurídico que perdeu qualquer função social e que o direito de Macau nitidamente já não quer.
XVII. Acresce que a posição defendida pela sentença recorrida, como não podia deixar de ser, não encontra na jurisprudência deste Venerando Tribunal qualquer sustentação, como resulta, designadamente, do acórdão de 2010-07-08, proferida no Processo n.º 116/2009, citado supra nas alegações.
XVIII. Determina o artigo 298.°, n.º 3 do CC de 1966, que os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei.
XIX. Assim, à semelhança dos demais direitos reais, também os domínios directo e útil se extinguem pelo não uso, encontrando tal determinação legal, no que respeita ao domínio directo, a sua concretização exactamente na alínea d) do art. 1513.°, do CC de 1966.
XX. Ora, consubstanciando-se o direito do senhorio basicamente no direito a cobrar/ receber o foro, se este não o "exercita", o mesmo extinguir-se-á pelo não uso durante o prazo estabelecido na lei.
XXI. Donde que, estando provado na sentença recorrida que, pelo menos, desde 11 de Maio de 1993, os sucessivos titulares do domínio útil deixaram de pagar o foro respeitante ao domínio directo do prédio, sem que ninguém, inclusivamente a Recorrida B, tivesse reclamado o seu pagamento, conclui-se que o titular do domínio directo não usou esse seu direito de propriedade durante mais de 20 anos, o que determina a sua extinção, nos termos conjugados com o artigo 298.°, n.º 3 do CC de 1966.
XXII. Assim, extinguindo-se o domínio directo, e comportando o domínio útil as características de um direito maior de propriedade, nutrido de elasticidade total, fica então o enfiteuta com o direito de propriedade plena sobre o prédio.
XXIII. Acresce que à mesma solução se chegaria pondo a questão nos mesmos termos que o Tribunal a quo a fez, que é a de saber se da lei resulta que o tempo do anterior enfiteuta deixou de pagar o foro, aproveita ou pode ser adicionado ao novo enfiteuta.
XXIV. Com efeito, dispõe o artigo 1515.° do CC de 1966, que à extinção da enfiteuse pela falta de pagamento do foro durante 20 anos, são aplicáveis as regras da prescrição, nos termos do disposto nos artigos 300.° e ss. do CC de 1966.
XXV. Resulta do artigo 307.°, n.º 1 do CC de 1966 que, tratando-se de renda perpétua ou vitalícia ou de outras prestações periódicas, a prescrição do direito unitário do credor corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga.
XXVI. Assim, tendo ficado assente nos autos que há falta de pagamento do foro desde pelo menos 11 de Maio de 1993, deve considerar-se que o prazo para se invocar a causa de extinção prevista na alínea d) do artigo 1513.° do CC de 1966, começou a correr pelo menos desde aquela data.
XXVII. Por seu turno, estipula o artigo 308.° do mesmo diploma, no n.º 1, que depois de iniciada, a prescrição contínua correr, ainda que o direito passe para novo titular, acrescentando o n.º 2 que se a dívida for assumida por terceiro, a prescrição contínua a correr em benefício dele.
XXVIII. Ou seja, por aplicação das normas que expressamente a lei manda aplicar à falta de pagamento do foro durante 20 anos - e não a norma sobre acessão da posse que, contrariamente ao afirmado pelo Tribunal nunca se alegou - sempre se deverá considerar que, ao tempo em que o anterior titular do domínio útil esteve sem pagar o foro, se deverá somar o tempo em que o actual titular esteve sem pagar o mesmo.
XXIX. Quer isso dizer que, contrariamente à conclusão a que chegou o Tribunal a quo, decorre expressamente da lei que com a transmissão do domínio útil, ao tempo em que o senhorio esteve sem exigir o cumprimento da obrigação ao anterior titular, somar-se-á o período em que também o não exigiu ao actual.
XXX. Pelo que, estando assente nos autos que o foro não é pago - nem cobrado desde pelo menos 11 de Maio de 1993, por força da leitura conjugada dos artigos 1513.°, alínea d), 1515.°, 307.° e 308.°, todos do CC de 1966, dever-se-à considerar verificado o requisito legal da falta de pagamento do foro durante 20 anos, para assim se declarar extinta a enfiteuse.
XXXI. Por último, embora se creia ser irrelevante face a todo o exposto e face às normas expressas e claras aplicáveis ao caso sem necessidade de recorrer à norma do artigo 1180°, n.º 1, não se crê, com todo o respeito, ser a norma em causa excepcional.
XXXII. Na verdade, a ideia do preceito em causa é a mesma presente em vários institutos, a de que os direitos se transmitem tal como existem à data da transmissão, por um lado e, por outro, que a falta de exercício de um direito, durante um certo tempo, leva a sua extinção, ainda que haja alteração do sujeito contra quem o mesmo possa ser exercido.
XXXIII. Assim, não se vislumbra a excepcionalidade da norma uma vez que o regime que consagra é o regime regra, válido para vários institutos, pelo que também não se vislumbra que, se fosse necessário, essa regra não pudesse valer, por analogia, também para a falta de pagamento do foro, permitindo a adição do tempo que o novo enfiteuta deixou de pagar o foro ao período de tempo que o anterior enfiteuta não pagou.
XXXIV. Porquanto se não há pagamento do foro, porque ninguém o cobra nem quer saber do seu recebimento, em certo sentido se pode dizer, que o enfiteuta tem não só a verdadeira posse que deriva do domínio útil, mas também a "posse" do domínio directo.
XXXV. Daí que, transmitindo-se o domínio útil, transmite-se também essa "posse" do domínio directo, que deriva do não pagamento do foro, pelo que, nos termos do artigo 1180.°, n° 1 do CCM, poderia juntar essa sua "posse" à "posse" anterior.
XXXVI. Donde que, mesmo no caminho seguido pelo Tribunal a quo, ao contrário do que afirma, vislumbra-se fundamento, caso fosse necessário, que se aplique a norma do artigo 1180°, n.º 1 do CCM, à falta de pagamento do foro, o que, no caso sub judice, também conduziria à extinção da enfiteuse.
XXXVII. Destarte, ao decidir como decidiu, absolvendo os RR. Recorridos do pedido formulado, não decretando a extinção da enfiteuse pela falta de pagamento do foro durante 20 anos, a sentença violou o disposto na alínea d) do artigo 1513.°, 298.º, n.º 3, 1515.°, 307.° e 308.°, todos do CC de 1966 e 1180°, n.º 1, do CCM.
Termos em que, face a tudo o exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogada a decisão contida na sentença ora recorrida e, consequentemente:
a) ser julgada procedente a extinção da enfiteuse do prédio urbano com o n.° XX da Rua XX, Macau, inscrito na matriz sob o artigo 1XXX1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob n.° 1XX3, a fls. 1XXV, do livro XX, por aquisição por parte da ora Recorrente do respectivo domínio directo, e consequentemente;
b) declarar a Recorrente proprietária do imóvel referido em regime de propriedade perfeita e ainda;
c) declarar extintas as inscrições vigentes com o n.º 3XX9 de fls. XX do Livro XX e n.º 1XX6 do Livro XX da Conservatória do Registo Predial relativas ao domínio directo do prédio urbano em crise.
2. Não foram oferecidas contra alegações.
3. Foram colhidos os vistos legais
II – FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
- Por escritura pública de compra e venda com facilidades bancárias, exarada no Cartório do Notário Privado Dr. Hugo Couto em 8 de Maio de 2013, a Autora adquiriu o domínio útil do prédio urbano com o n.º XX da Rua XX, Macau, inscrito na matriz sob o artigo 1XXX1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob n.º 1XX3, a fls. 1XXv do livro XX.
- O domínio útil da Autora encontra-se inscrita na mesma Conservatória sob a inscrição n.º 2XXXX5G.
- O domínio directo do mesmo prédio encontra-se inscrito a favor de B, desde 27 de Fevereiro de 1914, conforme inscrição n.º 3XX9 no Livro XX, folhas XX.
- Com um foro anual de MOP$8,00.
- Ao longo dos anos e desde a constituição do foro a favor de B, Fevereiro de 1914, o domínio útil do prédio em causa foi sendo sucessivamente transmitido, por actos inter-vivos ou por sucessão hereditária.
- Entre 30 de Agosto de 1928 e a aquisição pela Autora, o domínio útil passou por 7 titulares conforme resulta das inscrições as seguintes:
• 9XX9, a fls. XX4, do Livro XX;
• 2XXX8, a fls. XX9 do Livro XX;
• 2XXX9, a fls. XX2 do Livro XX;
• 5XXX6 do Livro XX;
• 1XXX8, a fls. XX0 do Livro XX;
• 7XXX8 do Livro XX; e
• 1XXXX7 do Livro XX.
- Pelo menos, desde 11 de Maio de 1993, os sucessivos titulares do domínio útil deixaram de pagar o foro respeitante ao domínio directo do prédio.
- Pelo menos, desde 11 de Maio de 1993 B deixou de cobrar o mesmo.
- À data do registo do domínio directo a seu favor, 1914, a mesma já era casada.
- Pelo menos, desde 11 de Maio de 1993, ninguém reclamou o pagamento foro.
III – FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se será de manter a sentença recorrida que entendeu que o não pagamento do foro, enquanto causa extintiva da enfiteuse, só releva se essa falta de pagamento for imputável ao titular actual do domínio útil e se apenas por ele não for efectuado o pagamento do foro, no caso, a A., ora recorrente.
Daí que se tenha julgado improcedente a acção por se ter provado que a A. não pagou o foro, apenas por dois anos, não obstante se ter provado que essa falta de pagamento já vinha ocorrendo desde 1993.
O facto extintivo desse direito real, o não pagamento do foro, tem o seu assento no artigo 1513.º, d) do CC pré-vigente – considerando que, não obstante a enfiteuse ter deixado de ser regulada no novo CC, à imagem do que se fez em Portugal, com a revolução de 1974, o instituto não deixou de continuar a ser contemplado, visto até ser esse o regime de grande parte da propriedade privada existente em Macau. Assim, o artigo 25º do Decreto-Lei 39/99/M, de 3 de Agosto, ao mesmo tempo que prevê a nulidade da constituição de qualquer nova enfiteuse sobre bens do domínio privado dos particulares, não deixa de determinar que se aplica às situações já existentes, à data da entrada em vigor do CCM, até à sua extinção (da enfiteuse), o Código Civil de 1966.
2. O caso enquadra-se numa situação de enfiteuse de bens do domínio privado dos particulares, constituída antes da entrada em vigor do CCM, pelo que não há quaisquer obstáculos à constituição da propriedade privada, face ao art. 7.º da Lei Básica, estando já, anteriormente, o domínio directo e o domínio útil constituído em nome de particiulares.
Assim sendo, importa apreciar da justeza da sentença.
3. Não podemos acompanhar a argumentação expendida naquela sentença.
Fundamentalmente a questão passa por uma operação de interpretação.
Da letra da lei, decorre apenas como causa extintiva da enfiteuse a “falta de pagamento do foro”. Ainda que não decisiva, da redacção da norma não se colhe o sentido pretendido, de que esse não pagamento só releva se o for por um só titular do domínio útil, ou seja, só a falta de pagamento por um único enfiteuta, pelo período de vinte anos, conduziria àquela extinção.
Antes pelo contrário, a letra da norma parece apontar para uma situação objectiva de não pagamento, independentemente da transmissão do direito ou secessão na titularidade do mesmo. Assim acontece, na extinção de outros direitos reais, nomeadamente, pelo não uso, como acontece com a extinção das servidões; o não uso de uma servidão leva à sua extinção ao fim de 15 anos (art. 1455º, n.º 1, a) do CC; 20 anos, no direito anterior, 1569.º, n.º 1, b)); assim, também com o usufruto, art. 1402.º, n.º 1, d).
Situações de não uso de direitos reais, nomeadamente a propriedade -1 ainda que aqui a situação não deixe de ser mais problemática - , que não deixam de estar contempladas no art. 291.º, n.º3, do CC, aí se dizendo que, ainda que não prescrevam, podem extinguir-se pelo não uso, nos casos previstos na lei.
4. Na verdade, um direito que não é exercido deve extinguir-se. Esta, a racionalidade do preceito.
Ora, na sentença recorrida pensou-se apenas na pessoa do titular do domínio útil, quando importa esquecer que a essa obrigação de pagamento do foro corresponde um direito ao seu recebimento, qual reverso dessa obrigação que compete ao titular do domínio útil, em benefício do titular do domínio directo, donde não deixar de ser legítimo perspectivar essa falta de pagamento do foro em função de uma não satisfação daquele direito por parte do senhorio, que deixa passar o tempo sem nada fazer. Daí que aquele Autor, já citado, Oliveira Ascensão, não deixa de reconduzir a situação de não pagamento do foro a uma situação de não uso.2
Razões que nos levam a interpretar a norma numa perspectiva objectiva de não pagamento, enquanto não satisfação de um direito do senhorio, independentemente de quem não tenha cumprido o foro.
5. Depois, há uma outra razão, esta mais substancial, e se prende com a natureza do direito que está em causa. A enfiteuse, emprazamento ou aforamento, é um direito real que se traduz no desmembramento do direito de propriedade em dois domínios, denominados directo e útil – art. 1491.º, n.º 1, a) do CC de 1966.
Dos diversos direitos de que o senhorio dispõe, o único que se destaca, em termos de gozo directo ou indirecto resultante das utilidades da coisa, sobre a qual se instituiu um direito perpétuo, é o do recebimento do foro, pois, os outros direitos, a alienação do domínio, a preferência na venda ou dação em cumprimento, a habilitação à sucessão do enfiteuta na falta de herdeiros testamentários ou legítimos ou o recebimento do prédio em caso de deterioração - vd. art. 1499º do CC66 - não satisfazem aquele gozo. Por isso, a falta do foro, não deixa de fazer perder o sentido da manutenção de um direito, já de si, por natureza, anacrónico, e de raiz medieval.
Estas observações, para enfatizar a natureza de um direito que existe em função da coisa e já não das pessoas. O foro traduz-se num ónus real, assume uma natureza de obrigação propter rem,3 sendo estabelecido em função da coisa e já não do concreto titular do domínio útil ou directo.
6. E para quem entenda que o domínio útil atinge uma dimensão de direito de propriedade ainda mais se reforçará o entendimento que vimos fazendo, em vista da universalidade dos poderes exercidos sobre a coisa.4
Assim, não é difícil compreender que, subjacente à norma da alínea d) do artigo 1513° do CC de 1966, está a ideia de que, consistindo o direito do senhorio em, basicamente, cobrar o foro anual, tal como acima foi referido, é absolutamente natural que, com o passar do tempo, o mesmo se vá alheando da coisa, se vá afastando gradualmente da coisa, acabando por nem sequer se preocupar com a cobrança do foro, sobretudo se o valor deste não sofrer actualizações ao longo dos anos e passar a ser um valor ridículo, como acontece no caso em apreço, que é de oito patacas por ano, justificando-se assim a extinção daquele direito, independentemente de quem quer que o tenha deixado de pagar, passando o enfiteuta a assumir a plenitude da propriedade.
7. O que se reforça por aplicação das regras da prescrição, como se determina no artigo 1515º do CC66 - À extinção da enfiteuse pela falta de pagamento do foro são aplicáveis as regras da prescrição -, seguindo o entendimento daqueles que no Código de Seabra defendiam ser este regime aplicável à extinção do domínio directo, como regulado nos termos dos artigos 535º e segs daquele Código.5
A esta causa de extinção da enfiteuse, pelo não pagamento, não sendo um caso de prescrição extintiva, enquanto aí se prevê uma forma autónoma de extinção do direito correlativo ao pagamento, não se deixa de lhe aplicar o regime da prescrição.
E compreende-se que assim seja. Na verdade, o não pagamento não extingue o direito ao foro, antes extingue a enfiteuse, isto é, a propriedade toma a sua plenitude na esfera do até aí enfiteuta, decorrido o prazo previsto na lei. Mas as regras relativas à prescrição são aplicáveis a esta forma de extinção do direito. Donde, parecer ser aplicável o regime previsto no artigo 308º, n.º 1 do CC de 66 que prevê que “Depois de iniciada, a prescrição continua a correr, ainda que o direito passe para novo titular”. Claro, poder-se-á dizer, que o direito que se pretende extinguir sempre esteve nas mãos do mesmo titular, o senhorio, pelo que o preceito não teria aplicação. Isto na perspectiva do direito ao foro. Mas se pensarmos no efeito tipificado como consequência do não pagamento, a constituição da propriedade plena na esfera do enfiteuta, já este argumento poderá ter alguma valia, na aplicação do regime prescricional, mutatis mutandis, tal como se impõe, bastando olhar para o n.º 2 do artigo 308.º do CC de 66, que não deixa de prever que “Se a dívida for assumida por terceiro, a prescrição continua a correr em benefício dele, a não ser que a assunção importe reconhecimento interruptivo da prescrição.”.
Acresce que, traduzindo-se o foro numa prestação periódica, tal como acontece na prescrição, não será despiciendo fazer funcionar aqui a regra do art. 307º que prevê que a prescrição, leia-se, decurso do prazo extintivo da enfiteuse, correrá desde a exigibilidade da primeira prestação que não for paga – art- 307º do CC de 66.
Aliás, a não se entender desta forma, teríamos que um foro não pago durante cem anos pudesse não mais originar a extinção da enfiteuse, bastando pensar em transmissões sucessivas do domínio útil por parte de cada um dos respectivos titulares, antes de decorrido tal prazo.
8. Com todo o respeito, estamos em crer que se a alusão à acessão de posses do art. 1180.º do CC, tal como referido na sentença, não resolve a questão, ela, contudo, não deixa de se traduzir num argumento adjuvante indicativo da manutenção de uma situação possessória ou real, que se mantém, qua tale, independentemente da mudança do seu titular.
O problema, para nós, é essencialmente de interpretação.
Pela letra, pelo espírito e pela natureza do direito e sua causa extintiva somos a considerar que a previsão do prazo extintivo da enfiteuse, de não pagamento do foro, assume uma natureza objectiva, respeita à situação continuada no tempo de não pagamento do foro por 20 anos - se não fosse causa autónoma de extinção do direito, não deixaria de lhe ser aplicável o novo prazo máximo de prescrição ordinária de 15 anos -, pelo que não deixa de relevar, independentemente de quem tenha deixado de pagar o foro.
Aliás, nem de outra forma se compreenderia, se nem sequer nas prestações de natureza obrigacional começa a correr novo prazo prescricional quando se verifica transmissão do direito ou da dívida.
9. Ademais, é a primeira vez que a questão se coloca nos nossos tribunais, sempre estando implícita a contagem de todo o tempo noutras situações em que diferentes interessados vieram a juízo demandar a extinção da enfiteuse pelo não pagamento do foro, como, v.g. ocorreu no Ac. do TSI, de 8/7/2010, Proc. n.º 116/2009.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso, e, revogando a decisão proferida, decide-se:
a) julgar procedente a extinção da enfiteuse do prédio urbano com o n.° XX da Rua XX, Macau, inscrito na matriz sob o artigo 1XXX1 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob n.° 1XX3, a fls. 1XXV, do livro XX, por aquisição por parte da ora recorrente do respectivo domínio directo, e consequentemente;
b) declarar a recorrente proprietária do imóvel referido em regime de propriedade perfeita e ainda;
c) declarar extintas as inscrições vigentes com o n.º 3XX9 de fls. XX do Livro XX e n.º 1XX6 do Livro XX da Conservatória do Registo Predial relativas ao domínio directo do prédio urbano em crise.
Custas pela A., vista a não contestação e o efeito útil que retira da acção.
Macau, 28 de Abril de 2016,
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
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Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho
1 - cfr. Oliveira Ascensão, Dto Civil, Reais, Coimbra Ed., 5.ª ed., 412
2 - Autor e ob. cit., 644
3 - Independentemente da polémica e rigor técnico que estas figuras possam assumir na doutrina – cfr. Menezes Cordeiro, Dtos Reais, Lex, 366
4 - Autor e ob. cit., 646
5 - P. Lima e A. Varela, CCA, 2ªed. , III, 730
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913/2015 18/18