Processo nº 239/2016 Data: 28.04.2016
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “tráfico de estupefacientes”.
“Consumo de estupefacientes”.
“Detenção de utensilagem”.
Contradição insanável.
Erro notório.
In dubio pro reo.
Concurso.
Pena.
SUMÁRIO
1. Só ocorre contradição insanável de fundamentação quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”.
2. Não havendo violação das regras sobre da prova tarifada ou legal, regra de experiência, ou legis artis, evidente é que não existe “erro notório na apreciação da prova”.
3. O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição.
O relator,
José Maria Dias Azedo
Processo nº 239/2016
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (A), (1°) arguido com os sinais dos autos, respondeu em audiência colectiva no T.J.B., vindo a ser condenado pela prática em autoria, na forma consumada e em concurso real de, 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 8° da Lei n.° 17/2009, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão, 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão, e 1 crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 7 anos e 9 meses de prisão; (cfr., fls. 476 a 486 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado o arguido recorreu, apresentando as conclusões seguintes:
“1- Não há nos autos prova segura para além de qualquer dúvida razoável, de que os objectos aprendidos ao recorrente se destinassem ao tráfico de droga;
2- O líquido incolor contido na garrafa, pela análise do ADN das palhinhas, destinava-se ao consumo próprio;
3- Os objectos apreendidos correspondem e destinavam-se ao consumo próprio;
4- A quantidade de Metanfetamina apreendida não exclui a possibilidade objectiva e séria de se destinar ao consumo próprio.
5- Com o devido respeito pela opinião contrária, não há nos autos prova segura para além de qualquer dúvida razoável de que as drogas apreendidas ao recorrente se destinassem ao comércio pelo que existe na sentença recorrida o vício da contradição insanável da fundamentação do artigo 400.°, n.2, b) do CPP o que a proceder deve determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 418.° n.1 do CPP.
6- Até porque, a sentença é omissa quanto à quantidade diária que o arguido ingeria, razão pela qual não poderá ser penalizado, uma vez que é da experiência comum que o consumo de estupefacientes é sempre acima das doses recomendadas nos formulários oficiais de medicamentos.
7- Neste particular, ou a sentença deve ser anulada, ordenando-se a baixa do processo para se averiguar a quantidade diária de Metanfetamina consumida pelo arguido, ou deverá excluir-se a ideia de que esta droga se destinava ao tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, desde logo com a conjugação dos factos não provados, as regras da experiência comum e o princípio processo penal de aquisição da prova de in dubio pro reo.
8- A interpretação dos factos provados, juntamente e por causa dos não provados, não pode conduzir, na nossa modesta opinião, à conclusão que o arguido traficava droga.
9- Quanto muito, deveria convolar-se o crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo n.°1 do art. 11.° da Lei n.°17/2009, cuja dosimetria penal vai de 1 a 5 anos.
10- Sem prescindir, foi o arguido acusado, julgado e condenado pela prática do crime de consumo, p. e p. pelo art. 14.°, e também do crime de Detenção indevida de utensílio ou equipamento, p. e p. pelo art. 15.°, ambos da Lei n.°17/2009.
11- O consumo da droga em causa consome o crime p. e p. pelo citado art. 15.°, por só poder efectivar-se através dos instrumentos aprendidos.
12- Os utensílios ou equipamentos apreendidos destinavam-se a envolver a droga ou para serem utilizados como meio do seu consumo, pelo que há um concurso aparente ente os dois tipos legais de crime sempre que o arguido seja condenado pelo crime do consumo.
13- Por todo o exposto, o arguido deve ser absolvido dos crimes de Tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art. 8.°, e de substâncias psicotrópicas e de Detenção indevida de utensílio ou equipamento, p. e p. pelo art. 15.°, ambos da Lei n.°17/2009.
14- Caso assim não se entenda, deverá convolar-se o crime de tráfico pelo de tráfico de pequena gravidade em concurso com o crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.
15- Quanto à escolha da medida da pena aplicada no douto acórdão recorrido, consideramos que a pena foi exagerada.
16- Ficou provado que o arguido tem o 2° ano do ensino secundário elementar, antes de ser preso, era assistente privado na sala VIP de um casino, auferia diariamente 800 a 1,000 patacas, tem a cargos dois filhos.
17- O arguido confessou a prática do consumo.
18- É primário, pois nada consta do seu certificado do registo criminal, por efeito do decurso do tempo (reabilitação de Direito).
19- Crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas (art. 8.°): Numa moldura penal abstracta de pena de prisão de 3 a 15 anos, o Tribunal decretou 7 anos e seis meses de prisão, isto é, metade, quando seria adequado e justo a aplicação de 3 anos e seis meses.
20- Consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas (art. 14.°): Numa moldura penal abstracta de pena de 1 a 3 meses ou com pena de multa de 10 a 60 dias, o Tribunal decretou 2 meses de prisão, isto é 2/3 da pena máxima, quando seria adequado e justo a aplicação de 40 dias de multa, à taxa diária pelo valor mínimo legal;
21- Detenção indevida de utensílio ou equipamento (art. 15.°): Numa moldura penal abstracta de pena de pena de prisão de 1 a 3 meses ou com pena de multa de 10 a 60 dias, o Tribunal decretou 2 meses de prisão, isto é 2/3 da pena máxima, quando seria adequado e justo a aplicação de 20 dias de multa, à taxa diária pelo valor mínimo legal.
22- O cúmulo jurídico efectuado pelo Tribunal “a quo” também merece reparo.
23- Sendo as penas parcelares aplicadas ao arguido alteradas para os valores supra indicados, consequentemente deve ser alterado o cúmulo em conformidade.
24- Porém, fruto deste recurso, e pelas razões já expostas, o arguido, a não ser absolvido do crime de tráfico, deverá este ser convolado para o crime de tráfico de menor gravidade (art. 11.°) atendendo às demais circunstâncias do tempo, modo e lugar dos factos assentes, numa moldura penal abstracta de pena de pena de prisão de 1 a 5 anos, seria justo e adequado condenar o arguido numa pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução.
25- Considera-se que o douto acórdão recorrido enferma de vícios e erros na interpretação e subsunção dos factos ao Direito e que devem ser superiormente sanados a favor do estatuto do arguido, considerando-se violados, entre outros os artigos 8.°, 11.°, 14.° e 15.° da Lei n.°17/2009, de 10 de Agosto; artigos. 41.°, 45.°, 64.°, 65.° e 71.° do CP e artigo 400.°, 1 e 2, al. b) do CPP.
26- Segundo o entendimento do recorrente, as normas referidas no ponto anterior deviam ter sido interpretadas e aplicadas de acordo com os pontos 1 a 24 destas conclusões.
(…)”; (cfr., fls. 493 a 506).
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Respondeu o Ministério Público pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 529 a 531-v).
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Admitindo o recurso, vieram os autos a este T.S.I..
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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“A, mais bem identificado nos autos, recorre do acórdão condenatório de 29 de Janeiro de 2016, que lhe impôs uma pena de prisão de 7 anos e 9 meses, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares de 7 anos e 6 meses de prisão por tráfico ilícito de droga, 2 meses de prisão por consumo ilícito de droga e 2 meses de prisão por detenção indevida de utensílio ou equipamento para consumir droga.
Na motivação e respectivas conclusões coloca à consideração do tribunal de recurso questões relativas à prova da actividade de tráfico, à fundamentação, que diz padecer de contradição insanável, à punição autónoma pelo crime de detenção indevida de utensilagem e à medida da pena, alvitrando que foram violadas as normas dos artigos 8.°, 11.°, 14.° e 15.°, da Lei n.° 17/2009, 41.°, 45.°, 64.°, 65.° e 71.°, do Código Penal, e 400.°, n.°s 1 e 2, do Código do Processo Penal.
Estamos em crer que não lhe assiste razão.
Na sua resposta, cujas acertadas considerações subscrevemos, já a Exm.a colega da primeira instância evidenciou a improcedência dos argumentos usados na motivação do recurso, ao que não haverá muito mais a acrescentar.
Não cremos que ocorra contradição na fundamentação, muito menos insanável, e tão pouco se afigura que sejam procedentes as razões em que o recorrente estriba a insuficiência probatória do tráfico. A circunstância de não ter ficado provado que os arguidos começaram a dedicar-se à actividade de tráfico de droga a partir da última semana de Dezembro de 2014, e que normalmente o recorrente se responsabilizava por adquirir a droga a desconhecidos e levá-la à residência onde habitava com o outro arguido para a partilhar… apenas permite concluir isso mesmo, ou seja, que não ficou provado que se tenham iniciado na actividade no final de Dezembro de 2014 e que actuassem concertadamente, em conjunção de esforços. Nada mais. A não prova destes factos não possui a virtualidade de neutralizar os demais factos apurados e o seu significado à luz das regras da experiência. Nomeadamente, não pode olvidar-se a quantidade de drogas que o recorrente possuía e lhe foram apreendidas no quarto por si próprio identificado como o seu espaço de descanso e de consumo de drogas, a forma como ele saiu de casa e nela voltou a entrar pelos seus próprios meios – fosse com chave, com cartão ou com outro engenho – a circunstância de ter chegado a negociar com o arguido B uma actuação concertada de venda de drogas, bem como o esclarecimento por este prestado sobre as últimas quantidades de droga adquiridas por um e por outro, com destaque para a circunstância de o vendedor ter sido levado à residência pelo ora recorrente, etc. Nem ocorre a apontada insuficiência probatória conducente ao juízo da prática de tráfico, nem se verifica qualquer contradição na fundamentação.
Também não se crê que o acórdão possa sair afectado pela circunstância de não se haver determinado concretamente qual a quantidade, ou quais as quantidades, de droga que o recorrente consumia por dia, ao ponto de se sustentar a sua anulação nesta parte. O que importa é que o tribunal tenha conseguido ajuizar que, da droga apreendida ao recorrente, a maior parte se destinava a ser comercializada por este. Um tal juízo, que não vem impugnado, conjugado com a qualidade e quantidade dos produtos apreendidos, permite extrair a conclusão a que o tribunal chegou, ou seja, que a comercialização a que o recorrente destinava a maior parte do produto integra o crime da previsão do artigo 8.°, n.° 1, da Lei 17/2009, não havendo fundamento plausível para equacionar a sugerida hipótese de convolação para o crime de tráfico de menor gravidade.
Igualmente se afigura não merecer reparo a condenação autónoma pelo crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento. Se num concreto acto de consumo o agente esgota o utensílio ou equipamento, funcionando este como meio indispensável ao acto de consumo, não há justificação para a punição autónoma, atenta a unidade de acção, a relação de causalidade entre consumo e utilização da utensilagem, bem como a similitude dos bens jurídicos protegidos pelas normas de incriminação. Se tal não sucede, e o agente, além de deter uma quantidade de produtos estupefacientes destinados a consumo pessoal, detém igualmente um stock de ferramentas e utensílios destinados a proporcionar o consumo posterior, como sucedeu no caso em análise, não se vê como contrapor à violação de dois tipos de ilícito diversos a relação de consumpção pretendida pelo requerente.
Por último, crê-se que nada haverá também a censurar em matéria de escolha e medida das penas e seu cúmulo. Sabido que a determinação da pena é comandada por finalidades de prevenção, balizadas pela culpa, naquelas avultando, nas palavras de Figueiredo Dias, o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, enquanto forma de tutela da confiança e das expectativas da comunidade, que, em Macau, são particularmente exigentes em matéria de tráfico e consumo de drogas, não se crê que as penas possam considerar-se exorbitantes ao ponto de justificarem alteração. Os parâmetros em que se move a determinação da pena, adentro da chamada teoria da margem de liberdade, não são matemáticos, devendo aceitar-se a solução encontrada pelo tribunal do julgamento, a menos que o resultado se apresente ostensivamente intolerável, por desajustado aos fins da pena e à culpa que a delimita, o que não é o caso. Quanto ao cúmulo, é irrefutável que a pena única encontrada se situa dentro da limitação legal.
Em suma, não há reparos a apontar à decisão recorrida, que não violou quaisquer das normas referidas pelo recorrente, pelo que o nosso parecer vai no sentido do não provimento do recurso”; (cfr., fls. 591 a 592).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. O Colectivo do T.J.B. deu como provada a seguinte matéria de facto:
“A partir da data não apurada, os arguidos A (A) e B (B) começaram a dedicar-se às actividades de tráfico de tráfego de estupefacientes em Macau.
Em 30 de Dezembro de 2014, por volta das 18h00, os agentes da PJ interceptaram o arguido A (A) à porta do Edf. XX, Rua de X.
Em seguida, os agentes da PJ levaram o arguido para a fraçção sita no Xº-andar-X, Edf. XX, Rua de X para proceder à investigação, na altura, uma mulher que se chama C encontrava-se no quarto de dormir do arguido B (B) na referida fracção.
C encontrava-se na situação de permanência ilegal em Macau .
Os agentes da PJ encontraram acima da cabeceira do quarto de dormir do arguido A (A) na referida fracção: uma garrafa plástica transparente com expressão de “FIJI” contendo líquido transparente, dois conjuntos de palhinhas inseridos na tampa da garrafa (um conjunto de palhinhas embrulhado por um papel de alumínio), um pacote de cristal de cor branca, dois sacos plásticos transparentes, um rol de papel de alumínio e uma falha de papel de alumínio; encontraram dentro do armário de objetos decorativos no referido quarto: dois pacotes de cristal de cor branca.
Durante a investigação dos agentes da PJ, o arguido B (B) voltou para a referida fracção e os agentes da PJ efectuaram imediatamente investigação a ele.
Os agentes da PJ encontraram na mala do arguido B (B) que: um saco de pano de cor azul escura com expressão de “EMPORIO ARMANI”, contendo quatro pacotes de cristal, um pacote de pós de cor amarela clara e cinco sacos plásticos transparentes.
Em seguida, os agentes da PJ encontraram, no quarto de dormir do arguido B (B): uma caixa plástica transparente, contendo um saco de pano de cor preta e branca, neste saco continnha um tubo de vidro embrulhado por tubo plástico de cor preta e por elástico, oito pacotes de pós de cor branca e um pacote de cristal de cor branca; encontraram dentro do armário no referido quarto: uma caixa de papel de cor vermelha contendo oitenta e três saquinhos transparentes (num mesmo saco), uma balança electrónica com expressão de “CE”, uma caixa em metal de forma redonda, nesta caixa continha três frascos de cor dourada com expressão de “R.I.P.” contendo líquido, uma nota no valor de MOP$10,00 manchada de vestígios de pós de cor branca, uma nota no valor de MOP$20,00 dobrada contendo pós de cor branca; encontram no cacifo no referido quarto que: uma caixa de cigarros com expressão de “MARLBORO” contendo um pacote de pós de cor branca, um pacote de pós de cor amarela clara e um pacote de cristal de cor branca.
Submetido o exame laboratorial, verificou-se que o referido líquido transparente na garrafa plástica acima da cabeceira do quarto de dormir do arguido A (A) continha “metanfetamina” e “anfetamina”, substâncias abrangidas pela Tabela II-B da Lei n.º 17/2009, com peso líquido de 230ml; a garrafa plástica, a tampa da garrafa plástica, as palhinhas e papéis de alumínio foram manchados de vestígios de “metanfetamina” e de “anfetamina”; um pacote de cristal de cor branca continha “metanfetamina”, com peso líquido de 0,468 gramas (de acordo com análise quantitativa, a percentagem de “metanfetamina” é de 78,1%, com peso de 0,366 gramas); os dois sacos plásticos foram manchados de vestígios de “metanfetamina” e “efedrina”, substância abrangida pelo Tabela V da mesma Lei; um papel de alumínio foi manchado de vestígios de “metanfetamina”; verificou-se que os dois pacotes de cristal de cor branca, encontrados dentro de armário de objectos decorativos no quarto de dormir do arguido A (A), continham “metanfetamina”, com peso de 9,941 gramas (de acordo com análise quantitativa, a percentagem de “metanfetamina” é de 75,1%, com peso de 7,47 gramas); verificou-se que os referidos pacotes de cristal encontrados na mala do arguido B (B) continham “metanfetamina”, com peso líquido de 2,266 gramas (de acordo com análise quantitativa, a percentagem de “matanfetamina” é de 80,0%, com peso de 1,81 gramas); um pacote de pós de cor amarela clara continha “metanfetamina” e “ketamina”, substância abrangida pela Tabela II-C da mesma Lei, com peso líquido de 0,703 gramas (de acordo com análise quantitativa, a percentagem de “metanfetamina” é de 2,34%, com peso de 0,0164 gramas, a percentagem de “ketamina” é de 53,1%, com peso de 0,373 gramas); verificou-se que o tubo de vidro embrulhado por tubo de plástico de cor preta e por elástico encontrado num saco de pano de cor preta e branca no quarto de dormir do arguido B (B) foi manchado de vestígios de “metanfetamina”, “ketamina” e “efedrina”; oito pacotes de pós de cor branca continham substância de “ketamina”, com peso líquido de 26,951 gramas; um pacote de cristal de cor branca continha “metanfetamina”, com peso líquido de 0,335 gramas (de acordo com análise quantitativa, a percentagem de “metanfetamina” é de 76,9%, com peso de 0,258 gramas); os oitenta e três saquinhos plásticos e uma balança electrónica com expressão de “CE” encontrados na caixa de papel de cor vermelha no quarto de dormir do arguido B (B) foram manchados de vestígios de “metanfetamina” e de “ketamina”; o líquido nos três frascos de cor dourada encontrados na caixa em metal de forma redonda continha “ketamina” e “MDMA”, substância essa abrangida pelo Tabela II-A da mesma Lei, com peso líquido de 46ml; uma nota no valor de MOP$10,00 foi manchado de vestígios de “ketamina”; os pós de cor branca embrulhados pela nota no valor de MOP$20,00 continham “ketamina”, com peso líquido de 0,050 gramas; um pacote de pós de cor branca encontrado na caixa de cigarro com expressão de “MARLBORO” no quarto de dormir do arguido B (B) continha “ketamina”, com peso líquido de 18,458 gramas; um pacote de pós de cor amarela clara continha “ketamina” e “metanfetamina”, com peso líquido de 0,965 gramas (de acordo com análise quantitativa, a percentagem de “ketamina” é de 52,1%, com peso de 0,503 gramas); um pacote de cristal de cor branca continha “metanfetamina”, com peso líquido de 0,229 gramas (de acordo com análise quantitativa, a percentagem de “metanfetamina” é de 76,1%, com peso de 0,174 gramas).
Submetido a exame laboratorial, verificou-se que a palhinha inserida na garrafa plástica encontrada acima da cabeceira do quarto de dormir do arguido A (A) foi manchada de vestígios de DNA do arguido A (A).
As drogas foram adquiridas pelos arguidos A (A) e B (B) do indivíduo de identidade desconhecida e detidas respectivamente, a grande parte destina-se a vender a outrem e a pequena parte destina-se ao consumo próprio.
A garrafa plástica, as palhinhas e os papéis de alumínio encontrados no quarto de dormir do arguido A (A) são instrumentos do arguido A (A) para consumo de drogas; os tubo de vidro encontrados no quarto de dormir do arguido B (B) são instrumentos do arguido B (B) para consumo de drogas.
Além disso, os agentes da PJ apreenderam um livro de contas de cor vermelha e preta na posse de C (vide o auto de apreensão, fls. 60 dos autos).
O referido livro de contas foi escrito pelo arguido B (B), com registo de quantidade de drogas e de vendas, “SUGAR” representa “ice” (“metanfetamina”) e “SALT” representa “ketamina”.
Os agentes da PJ também apreenderam um telemóvel e dois cartões de SIM do arguido A (A).
O referido telemóvel era instrumento de comunicação utilizado pelo arguido A (A) para a prática de actividade de tráfico de drogas.
Os agentes da PJ apreenderam ainda dois telemóveis e três cartões de SIM, e o dinheiro no valor de MOP$1.500,00 e HKD$1.000,00 do arguido B (B) .
Os telemóveis eram instrumentos de comunicação do arguido B (B) e o dinheiro era adquirido na actividade de tráfico de drogas.
Os arguidos A (A) e B (B) sabiam perfeitamente a natureza e as características da droga.
Os arguidos A (A) e B (B) praticaram livre, consciente, voluntariamente e com dolo os factos supracitados.
Os arguidos A (A) e B (B) bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
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O 1º arguido alegou que há mais de vinte anos, foi condenado pela prática de crime de drogas, na pena de 4 anos de prisão. Conforme o CRC e os dados dos autos, o registo criminal do 1º arguido foi cancelado e actualmente não tem registo criminal.
Segundo o CRC, o 2º arguido tem registo criminal;
No Processo n.º CR1-14-0116-PCC, em 21 de Novembro de 2014, o TJB condenou o 2º arguido pela prática de um crime de drogas, na pena de dois meses de prisão, suspensa por um ano, com regime de prova. A sentença do caso transitou em julgada em 11 de Dezembro de 2014.
O arguido praticou o crime novamente durante o período de suspensão da execução da pena.
O 1º arguido alegou que tinha 2º ano do ensino secundário geral como habilitações literárias, trabalhava como adjunto na sala de casino antes de ser preso preventivamente, com salário diário de MOP$800,00 a MOP$1.000,00, tem dois filhos a seu cargo.
O 2º arguido alegou que tinha ensino secundário complementar como habilitações literárias, acabou de ficar desempregado logo antes de ser preso preventivamente, tem os pais a seu cargo”; (cfr., fls. 478-v a 481).
Do direito
3. Condenado que foi nos termos que no atrás efectuado relatório se deixou explicitado – pela prática em autoria, na forma consumada e em concurso real de 1 crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 8° da Lei n.° 17/2009, na pena de 7 anos e 6 meses de prisão, 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão, e 1 crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”, p. e p. pelo art. 15° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão – vem o (1°) arguido A recorrer.
Tanto quanto se colhe das conclusões da sua motivação de recurso, (que como se sabe, delimitam as questões a conhecer, com excepção das de conhecimento oficioso que, no caso não há), coloca questões relativamente à “decisão da matéria de facto” e de “direito”.
Com efeito, afirma que:
- “(…) não há nos autos prova segura para além de qualquer dúvida razoável de que as drogas apreendidas ao recorrente se destinassem ao comércio pelo que existe na sentença recorrida o vício da contradição insanável da fundamentação do artigo 400.°, n.2, b) do CPP o que a proceder deve determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 418.° n.1 do CPP”,
- “(…) a sentença é omissa quanto à quantidade diária que o arguido ingeria, razão pela qual não poderá ser penalizado, uma vez que é da experiência comum que o consumo de estupefacientes é sempre acima das doses recomendadas nos formulários oficiais de medicamentos”, e que, por assim ser,
- “(…) ou a sentença deve ser anulada, ordenando-se a baixa do processo para se averiguar a quantidade diária de Metanfetamina consumida pelo arguido, ou deverá excluir-se a ideia de que esta droga se destinava ao tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, desde logo com a conjugação dos factos não provados, as regras da experiência comum e o princípio processo penal de aquisição da prova de in dubio pro reo”,
- “O consumo da droga em causa consome o crime p. e p. pelo citado art. 15.°, por só poder efectivar-se através dos instrumentos aprendidos”,
- considerando ainda que excessivas são as penas fixadas.
Aqui chegados, e identificadas que nos parecem ter ficado as questões colocadas, vejamos.
–– Diz o arguido que incorreu o Colectivo a quo no vício de “contradição insanável da fundamentação”.
Pois bem, (repetidamente) temos afirmado que tal vício (apenas) ocorre quando “se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão”; (cfr., v.g. o recente Ac. deste T.S.I. de 02.07.2015, Proc. n.° 513/2015 e de 10.03.2016, Proc. n.° 95/2016).
Em síntese, quando analisada a decisão recorrida se verifique que a mesma contém “posições antagónicas”, que mutuamente se excluem e que não podem ser ultrapassadas.
E, motivos não havendo para se alterar o entendimento assumido em relação ao sentido e alcance do aludido vício, cremos que se impõe concluir que o mesmo não existe, (aliás, como bem se observa no transcrito Parecer do Ministério Público que, nesta parte, se mostra de subscrever e dar como reproduzido).
Na verdade, a se ter em conta o que o recorrente afirma, seria caso para se equacionar – eventualmente – uma situação de “erro notório na apreciação da prova” ou de “violação ao princípio in dubio pro reo”.
Porém, sem prejuízo do muito respeito por opinião em sentido diverso, também não se nos apresenta de concluir neste sentido.
Com efeito, não se vislumbra – e, nem o recorrente explicita – “como”, “onde” ou “em que termos” incorreu o Tribunal a quo nos ditos vícios.
Dizer que “não há nos autos prova segura para além de qualquer dúvida razoável”, é, (certamente), o mesmo que dizer que o Tribunal “não devia apreciar e valorar a prova como fez” – dando ou não, e mais ou menos, relevo a determinado meio de prova – e, não havendo qualquer violação das regras sobre o valor da prova tarifada ou legal, regra de experiência, ou legis artis, (como no caso sucede), evidente é que não procede.
De facto, e considerando outrossim que na parte em questão foi o material probatório apreciado em conformidade com o “princípio da livre apreciação da prova” consagrado no art. 114° do C.P.P.M., bem se vê que não se pode acolher a pretensão do recorrente.
O mesmo se dirá em relação à alegada violação ao “princípio in dubio pro reo”, pois que, da leitura que fazemos ao Acórdão recorrido não se divisa que em momento algum tenha o Colectivo a quo ficado com qualquer dúvida ou hesitação, e, mesmo assim, tenha decidido (a matéria de facto) em desfavor do arguido ora recorrente.
Como temos entendido:
“O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. o recente Ac. deste T.S.I. 14.01.2016, Proc. n.° 1053/2015 e de 25.02.2016, Proc. n.° 94/2016).
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615).
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do S.T.J. de 29.04.2003, Proc. n.º 3566/03, in “www.dgsi.pt”).
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias; (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarães de 09.05.2005, proc. n.º 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
Dito isto, cabe dizer que também não se mostra de reconhecer razão ao recorrente quanto à alegada “omissão da explicitação quanto à quantidade diária de estupefaciente que o arguido consumia”.
Embora se nos mostre de reconhecer que podia – seria desejável – o Colectivo a quo esclarecer tal “aspecto”, o mesmo, no caso, não se mostra essencial ou imprescindível dado que em face da factualidade dada como provada, onde se explicita a “quantidade de estupefaciente detida pelo arguido” e onde se dá conta que (apenas) uma “pequena parte era destinada ao seu próprio consumo”, alcançando-se assim, perfeitamente, por exclusão de partes, que pelo menos “metade do estupefaciente pelo arguido detido” era pelo mesmo destinado à venda ou cedência a terceiros, o que integra o crime de tráfico do art. 8° da Lei n.° 17/2009.
Não se quer com isso dizer que se não considera que melhor seria que fosse tal aspecto (melhor) concretizado.
Porém, há que reconhecer que o Tribunal a quo também só pode ir até onde a prova produzida permite, não se podendo exigir que apure, em todas e quaisquer situações, todos os pormenores, concretizando-os, matemática e milimetricamente.
Daí, e atento o que se deixou exposto, (também) nesta parte improcede o recurso, sendo igualmente de se afastar a peticionada convolação para a prática de 1 crime de “tráfico de menor gravidade” porque, (face à quantidade de estupefaciente em causa para venda ou cedência a terceiros), inverificados estão os pressupostos do art. 11° da Lei n.° 17/2009.
Continuemos.
–– Importa agora, (antes de se apreciar da adequação das penas fixadas), apurar se tem o recorrente razão quando afirma que “O consumo da droga em causa consome o crime p. e p. pelo citado art. 15.°, por só poder efectivar-se através dos instrumentos aprendidos”.
Pois bem, sobre a questão, e tanto quanto julgamos saber, várias são as soluções possíveis, e que, perante as circunstâncias da situação concreta se tem vindo a adoptar.
De facto, com a nova Lei n.° 17/2009, entendimento existe que considera que os crimes em questão quando cometidos pelo mesmo agente estão numa relação de “concurso aparente”, certo sendo que também se tem defendido que (meros) “instrumentos ou utensílios sem durabilidade” não devem ser considerados para efeitos de integração do previsto no art. 15° que prevê o crime de “detenção indevida de utensílio ou equipamento”.
No caso dos autos, considerando a “natureza dos objectos” em questão, e adoptando a maioria deste Colectivo a quo a segunda das aludidas posições, há que absolver o arguido do crime do art. 15° da Lei n.° 17/2009.
–– Vejamos das “penas”.
Aqui, e como também se nota na Resposta e Parecer do Ministério Público, pouco há a dizer.
Ao crime de “tráfico” cabe a pena de 3 a 15 anos de prisão.
Ponderando na factualidade dada como provada, atentas as fortes necessidade de prevenção deste crime, e visto que a pena fixada – de 7 anos e 6 meses de prisão – não chega a atingir o meio da pena, não se mostra existir qualquer margem de redução.
O mesmo se afigura de consignar em relação à pena de 2 meses de prisão fixada para o crime de “consumo” que, atentos os indicados factores, e situando-se no meio da sua moldura, se considera não merecer censura.
Por fim, em sede de cúmulo jurídico, cotejando as aludidas penas (parcelares), e tendo presentes os critérios do art. 71° do C.P.M., fixa-se a pena única de 7 anos e 7 meses de prisão.
Tudo visto, resta decidir pela parcial procedência do recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam julgar parcialmente procedente o recurso, ficando o arguido recorrente condenado na pena única de 7 anos e 7 meses de prisão.
Pelo seu decaimento pagará a taxa de justiça de 5 UCs.
Macau, aos 28 de Abril de 2016
José Maria Dias Azedo [Nos termos do que tenho feito constar na minha declaração de voto anexa no Ac. de 31.03.2011, Proc. n.° 81/2011].
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 239/2016 Pág. 32
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