Proc. nº 73/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 05 de Maio de 2016
Descritores:
-Falência
-Massa falida
-Instauração de acções pela massa falida.
-Autorização do MP
SUMÁRIO:
I. O papel da magistratura do Ministério Público no ordenamento jurídico da RAEM é de total independência e autonomia em relação à magistratura judicial.
II. No processo falimentar não existe qualquer delegação, nem expressa nem tácita, ao MP pela lei, nem pelo juiz do processo, no tocante à sua intervenção autorizativa permitida, entre outros, no art. 1125º do CPC.
III. O art. 1135º do CPC não contempla a reclamação das decisões do MP que não autorizam, nos termos dos arts. 1123º, nº1 e 1125º, do CPC, a instauração pela massa falida de acções contra a RAEM. Por isso, da decisão do MP que nega tal autorização não pode caber reclamação para o juiz, mas para o superior hierárquico do MP.
Proc. nº 73/2016
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
No âmbito do processo de falência instaurado contra “A, SA”, B LIMITED, doravante apenas C, requereu ao administrador de falência que, em representação da massa falida, demandasse a RAEM por perdas e danos causados por alegado incumprimento do contrato de prestação de serviços celebrado com a falida, de quem a requerente era credora e principal accionista.
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Para o efeito notificados os credores, veio a RAEM pronunciar-se contra a pretensão de C, tendo-se, porém, pronunciado favoravelmente os credores “D, Limitada”, o “E, SARL”, “F – Telefone (Macau), Limitada” e “G, PA”.
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O Ministério Público negou autorização através do despacho de fls. 3700 (aqui, fls. 20).
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Dessa decisão de não autorização por parte do MP, o Administrador da Falência reclamou para o juiz do processo.
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C pronunciou-se contra a posição do MP, tendo este magistrado oportunamente defendido que da sua posição cabia apenas reclamação hierárquica para o seu imediato superior e não para o juiz do processo.
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Foi então produzido despacho do juiz do processo, que:
- Em primeiro lugar, reconheceu que da decisão do MP cabia reclamação para o juiz titular do processo;
- Em segundo lugar, e conhecendo da referida reclamação, julgou-a procedente e decidiu autorizar a propositura da acção de responsabilidade civil contratual contra a RAEM.
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Contra este despacho veio o digno Magistrado do MP interpor recurso jurisdicional, em cujas alegações apresentou as seguintes conclusões:
«1 - As Magistraturas Judicial e do Ministério Publico, são magistraturas independentes uma da outra:
2 - Sendo que o Ministério Público é um “órgão judiciário que desempenha com independência as sua funções atribuídas por lei, ...e que é autónomo em relação aos demais órgãos do poder, exercendo as suas atribuições e competências com independência e livre de qualquer interferência” (art.º 56 n.1 Lei 9/1999)
3 - No âmbito do Processo Falimentar, naturalmente, o Ministério Publico actua em obediência estrita da defesa de lei, dos interesses dos credores e da massa falida.
4 - Munido de poderes próprios conferidos por lei;
5- E de forma independente, com autonomia e livre de qualquer interferência
6 - E não com poderes delegados pelo Juiz ou pelo Tribunal, delegação essa que não existe.
7 - Os poderes conferidos por Lei ao Ministério Publico são distintos dos poderes conferidos ao Juiz;
8 - Inexistindo qualquer mecanismo de controlo judicial da actividade do Ministério Publico;
9 - Somente na fase de liquidação do activo é admissível a apresentação de reclamações ao Juiz do Processo, nos termos do art.º 1135 CPC;
10- Todavia confinadas à prática de actos irregulares, reclamações essas a apresentar por credores e falido;
11- Não existe na lei processual norma que permita ao Administrador da Falência reclamar de instruções fornecidas pelo Ministério Publico;
12- O qual, contudo, poderá fazê-lo através da denominada “reclamação hierárquica”;
13- Ao recusar autorização ao Administrador da Falência para intentar acção ordinária contra a RAEM, o Ministério Publico actuou dentro dos limites dos seus poderes funcionais, de defesa dos interesses dos credores, da massa falida e da legalidade;
14- Ao admitir e decidir a reclamação apresentada, a M.ma Juiz arvorou-se de poderes que não possui e que lhe não foram conferidos
15- O despacho agora recorrido, violou o disposto nos art.º 56 n.1 Lei 9/1999 e 1135 CPC.
Nesta conformidade, revogando o douto despacho recorrido e substituindo-o por outro que declare o Tribunal incompetente para conhecer da reclamação apresentada pelo Exmo. Sr. Administrador da Falência, será feita a habitual Justiça.».
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Do mesmo despacho recorreu também a RAEM, sintetizando da seguinte maneira as suas alegações:
«1. Versa o presente recurso sobre o douto despacho do Tribunal a quo, de fls. 3732 a 3736 dos autos, no qual foi julgada procedente a reclamação apresentada pelo Administrador da Falência, de fls. 3714 a 3723 dos autos, decidindo o Tribunal a quo, assim, autorizar a propositura de uma acção de responsabilidade contratual contra a RAEM, ora recorrente.
2. Na opinião da RAEM, das decisões do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, no sentido de não autorizar a propositura de acção judicial em nome da massa falida, não cabe reclamação para o Juiz do processo.
3. O Tribunal a quo invocou a doutrina de Pedro de Sousa Macedo, in Manual de Direito das Falências, de 1964, o qual considerava que as funções do Ministério Público são exercidas por delegação do tribunal, pelo que as funções do Ministério Público têm a natureza de jurisdição voluntária e que, em consequência, dos actos e decisões de Ministério Público cabe reclamação para o Juiz.
4. No douto despacho recorrido não se encontra referenciada nem invocada qualquer disposição legal que permite ao Juiz apreciar a reclamação apresentada pelo Administrador da Falência contra a decisão do Ministério Público, limitando-se a subscrever a opinião por íntegra do citado autor.
5. A opinião do citado autor, no que concerne à natureza das funções que o Ministério Público desempenhava em processo falimentar, hoje já não se justifica nem se aplica ao presente caso, porquanto no ordenamento jurídico de Macau ao Ministério Público são conferidas independência e autonomia, garantidas pela Lei Básica da RAEM, características essas que não foram atribuídas ao Ministério Público de Portugal no tempo em que foi elaborada a obra supra citada.
6. Nesta Constituição Política da República Portuguesa, de 17 de Setembro de 1945, tempo em que foi elaborada a citada obra do aludido autor, ao Ministério Público não foram conferidas independência nem autonomia como na Lei Básica da RAEM. Nessa mesma Constituição, a única referência ao Ministério Público foi apenas no seu artigo 118.º, que determinava somente que “O Estado será representado junto dos tribunais pelo Ministério Público”, artigo esse foi até inserido no Título V da mesma Constituição, ou seja, “Dos tribunais”, pelo que por motivo se entendia em 1964 em Portugal que o Ministério Público, no processo falimentar, desempenhava funções por delegação do tribunal e que dos actos e decisões de Ministério Público cabe reclamação para o Juiz.
7. A própria Lei Básica da RAEM, no seu artigo 90.º, n.º 1, garante efectivamente ao Ministério Público independência no exercício das funções jurisdicionais atribuídas por lei e determina expressamente que o Ministério Público é livre de qualquer interferência, tese esse que foi adiantada pelo Professor Xiao Weiyun (蕭蔚雲教授), “Portanto, a Região Administrativa Especial de Macau não adoptou completamente a anterior estrutura judiciária de Macau (...). Macau dispõe, portanto, de um novo sistema com características próprias; isto é, dispõe de uma organização judiciária nova com tribunais de um total de três instâncias, um tribunal administrativo, e a Procuradoria da RAEM” e “daqui se verifica que o princípio regulador da actividade do Ministério Público também consiste em exercer independentemente o poder jurisdicional de acordo com a lei e livre de interferência (...)”. O artigo 55.º da Lei n.º 9/1999 “Lei de Bases da Organização Judiciária” também garante a independência e autonomia do Ministério Público.
8. Pelo que actualmente não pode estar no processo falimentar qualquer delegação de poderes do Juiz, na medida em que, depois de 1999, deveria ser a própria lei que consagra essa “delegação de poderes do Juiz” e que não se verifica nenhuma lei que confere tal delegação.
9. Ademais, o Tribunal a quo não referiu no douto despacho recorrido a qualquer disposição legal que lhe permitir apreciar a reclamação apresentada pelo Administrador da Falência contra a decisão do Ministério Público.
10. Mesmo que se admitisse que o Juiz aplicou ao caso implícita e analogicamente o artigo 1135.º do Código de Processo Civil (o que não se concede, porque o mesmo preceito se insere na secção de “Liquidação de activo”, fase a que o presente processo ainda não chegou), não se podia esquecer é que apenas dos actos irregulares cabe reclamação para o Juiz.
11. No Código de Processo Civil não se encontra prevista qualquer definição de “actos irregulares”. A título de mera referência doutrinária, anotam Carvalho Fernandes e Labareda que “a expressão “actos irregulares” está aqui usada em sentido genérico para significar todos os actos que, por qualquer motivo, infrinjam a lei, independentemente da natureza jurídica do vício de que enfermem”.
12. Para qualificar a decisão do Ministério Público de não autorizar a propositura de acção como “irregular”, é necessário indicar qual foi a disposição legal violada pela mesma decisão do Ministério Público.
13. No douto despacho recorrido não se encontra qualquer referência ao vício de que, na opinião do Tribunal a quo, padece a decisão de não autorização do Ministério Público, limitando-se o douto despacho recorrido concluir que “A opinião positiva e fundamentada do Administrador, secundada por credores Reclamantes que representam a esmagadora maioria dos créditos reclamados, terá de se considerar fundamento bastante para que tal direito de acção lhes seja concedido” (Destaque nosso).
14. Afigura-se-nos que o Tribunal a quo entendeu que, se existir “opinião positiva e fundamentada do Administrador, secundada por credores Reclamantes que representam a esmagadora maioria dos créditos reclamados”, a decisão do Ministério Público só poderá ser a de autorização. Ou seja, o douto despacho recorrido qualificou a autorização do Ministério Público como uma decisão vinculada à opinião de credores que representam a maioria de créditos reclamados.
15. A concordância ou opinião dos credores que representem a maior parte dos créditos reclamados não constitui um dos requisitos do disposto do n.º 1 do artigo 1125.º do Código de Processo Civil, ao abrigo do qual o Administrador da Falência requereu a autorização do Ministério Público. Os interesses subjacentes a este preceito que devem ser considerados pelo Ministério Público aquando da tomada da decisão não são apenas os dos credores, mas sim também os da própria massa falida.
16. A opinião e os interesses dos credores são relevantes, mas não são de tal modo relevantes que possam obrigar o Ministério Público a tornar urna decisão que na sua óptica pode não interessar à massa falida. Se estivessem em causa apenas ou principalmente os interesses dos credores, teria o artigo 1123.º do Código de Processo Civil exigido, para efeitos de cobrança dos créditos, a concordância de todos os credores, ou a de credores que representa a maioria dos créditos reclamados.
17. Se bastar existir a opinião positiva e fundamentada do Administrador, secundada por credores Reclamantes, para considerar que o Ministério Público terá o dever de autorizar a propositura de acção, estaremos a esvaziar os poderes do Ministério Público que lhe são legalmente conferidos, transformando o Ministério Público num mero “núncio” dos credores e limitando a autorização do Ministério Público a mero círculo de interesses dos credores reclamantes.
18. Nem no Código de Processo Civil nem noutra legislação extravagante encontramos qualquer disposição legal que obriga ou pelo menos aconselha o Ministério Público a considerar unicamente as opiniões manifestadas ou presumíveis dos credores.
19. A decisão do Ministério Público não infringiu qualquer disposição legal, pelo que a mesma não podia nem devia ser qualificada como um acto irregular. Logo, a decisão do Ministério Público de não autorizar a propositura de acção não merecia qualquer censura por parte do Tribunal a quo, -consequentemente, não cabendo daquela decisão reclamação ao Juiz do processo.
20. Entende a RAEM que a decisão do Ministério Público de não autorizar a propositura de uma nova acção contra a RAEM merece acolhimento.
21. A questão de um eventual incumprimento pela RAEM de cláusulas do Contrato poder ser causa de danos ou prejuízos (sérios ou não) para a Falida foi já aflorada no procedimento de Intimação para um Comportamento proposto em Junho de 2013 pela Falida contra, entre outros, a RAEM, que correu termos no Tribunal Administrativo sob o número 85/13-IC, que culminou com a decisão final segundo a qual foi julgado improcedente o procedimento.
22. A mesma questão do incumprimento pela RAEM das cláusulas relativas à actualização dos preços unitários foi suscitada pela Falida em Julho de 2013 na Acção sobre Contratos Administrativos n.º 219/13-CA que a mesma propôs junto do Tribunal Administrativo contra, entre outros, a RAEM.
23. É manifesto que qualquer acção judicial eventualmente a propor pela massa falida com base na pretensão da C estará ab initio condenada ao insucesso, seja por carecer integralmente de fundamento, seja porque a mesma questão se encontra já sub júdice na Acção sobre Contratos Administrativos n.º 219/13-CA.
24. Ademais, tendo em consideração que em 2013 a Falida instaurou dois processos contra RAEM, isso quer dizer que, se a Falida tivesse efectivamente fundamentos viáveis e manifestos para intentar acção contra a RAEM, não hesitava de o fazer. Daí que, o facto de não ter intentado logo a tal acção evidencia já que, provavelmente, não existiam fundamentos para a mesma, ou alegados fundamentos não eram viáveis.
25. Nessa medida, a decisão do Ministério Público de não autorizar a propositura de tal nova acção merece acolhimento, porquanto a incerteza do resultado de tal nova acção a intentar é provavelmente maior do que a de outras quaisquer acções.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. se suprirá, requer-se que seja revogado o douto despacho recorrido de fls. 3732 a 3736 dos autos que julga procedente a reclamação apresentada pelo Administrador da Falência, mantendo a douta decisão do Digníssimo Magistrado do Ministério Público de fls. 3700 dos autos».
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A ambos os recursos respondeu o Ex.mo Administrador da Falência, tendo concluído as suas alegações da seguinte maneira:
«1. Os principais reclamantes de créditos são a RAEM, a B Limited, o D e o E.
2. Destes, a B Limited e o D aderiram incondicionalmente à pretensão e o E aderiu igualmente, apesar de manifestar preocupação face a eventuais atrasos no pagamento dos seus créditos.
3. O que a RAEM, visada pelo procedimento judicial proposto, quer, neste contexto, não deve ser levado em consideração, se não por razões de Direito, pelo menos por razões de ética e moralidade.
4. A esmagadora maioria dos credores reclamantes aderiu à ideia da propositura de uma acção e só a RAEM se lhe opôs.
5. A RAEM, demandada pela Falida no processo n.º 219/13-A, que corre termos no Tribunal Administrativo, por factos que constituem, igualmente, incumprimento contratual, é ali representada pelo Ministério Público.
6. Não se vê como possa o Ministério Público, em simultâneo, exercer as funções de síndico e de representante de um credor reclamante, não nos autos de falência mas num processo conexo onde se discute, precisamente, um crédito que a RAEM pretende fazer valer na falência.
7. O Ministério Público, no seu papel de síndico da falência, não concordou com o pedido de autorização para instaurar uma acção destinada a efectivar a responsabilidade civil da RAEM, que havia sido formulado pelo Administrador.
8. Para tanto, elencou as seguintes razões: (i) os elevados custos processuais que este tipo de acção acarreta, que teriam de ser pagos pela massa falida; (ii) as despesas a efectuar com mandatário judicial, também a cargo da massa falida; (iii) a incerteza do resultado; (iv) a demora, provavelmente de vários anos, na obtenção de uma decisão transitada em julgado.
9. Todas as acções judiciais têm custos processuais, mais ou menos elevados consoante o valor da causa.
10. Todas as acções judiciais implicam custos com mandatários judiciais, sempre que o mandato seja obrigatório, como é o caso.
11. Todas as acções judiciais têm, à partida, resultado incerto, só sendo de estranhar se assim não fosse.
12. Todas as acções judiciais levam tempo, podendo levar mais ou menos consoante a sua complexidade.
13.A ser como o Ilustre representante do Ministério Público sustenta, os Tribunais deveriam ser encerrados, já que a propositura de acções judiciais só acarreta inconvenientes.
14.O n.º 1 do artigo 56º da Lei de Bases da Organização Judiciária (LBOJ) estatui que: “são atribuições do Ministério Público a representação da Região Administrativa Especial de Macau em juízo, o exercício da acção penal, a defesa da legalidade e dos interesses que a lei determine; (...)”. Compete, especialmente, ao Ministério Público intervir nos processos falimentares (cfr. alínea 11) do n.º 2 do artigo 56º da LBOJ).
15.Essa intervenção é concretizada na lei processual civil no que ao processo de falência concerne, mais concretamente nos seus artigos 1043º a 1184º.
16. O papel do Ministério Público, no âmbito do processo de falência, atendendo às funções que lhe foram atribuídas pelo legislador da RAEM, foi gizado em torno da figura do defensor da legalidade, do interesse público e dos credores, mas também revela uma proximidade com a antiga figura do “síndico” (nos termos em que a mesma foi desenhada e consagrada no Código das Falências português de 1935).
17. Cabe ao Ministério Público, por exemplo, autorizar a prática de determinadas acções a praticar pelo administrador da falência.
18. Ou seja, cabe igualmente ao Ministério Público substituir-se ao Juiz no aspecto mais acentuadamente administrativo da falência, conferindo-lhe celeridade e diminuindo as formalidades do procedimento.
19.Tal é o caso da situação prevista no n.º 1 do artigo 1125º do Código de Processo Civil onde o Ministério Público tem, aqui, o papel de sindicar, de escrutinar a acção do administrador da falência, por forma a verificar se o ensejo de propor as acções ou execuções necessárias à cobrança dos créditos do falido, se afigura conforme aos interesses que importa acautelar, maxime o interesse dos credores.
20.A lei não dispõe expressamente sobre a via de que o Administrador poderá socorrer-se para “sindicar” a decisão do Ministério Público, não obstante ser inegável que um qualquer mecanismo terá de existir que o permita.
21.A lei prevê que “contra os actos irregulares praticados no decurso da liquidação podem os credores e o falido dirigir, por escrito, reclamações ao juiz, que decide depois de ouvidos o Ministério Público e as pessoas directamente interessadas na manutenção do acto, com a produção da prova necessária” (artigo 1135º do Código de Processo Civil).
22.O regime falimentar em vigor em Macau é, efectivamente, decalcado daquele que resultava do Código das Falências português de 1935 e do Código de Processo Civil, também português, de 1939, com algumas alterações introduzidas pelo Código de Processo Civil de 1961.
23.Nenhuma alteração legislativa veio alterar este estado de coisas. Uma coisa é a existência de carreiras autónomas e de hierarquias independentes e outra o papel desempenhado, por cada uma delas, no processo falimentar.
24. O actual estatuto do Ministério Público não o isenta de ver os seus actos apreciados pelos tribunais, pelas mais variadas formas.
25. O mesmo se passa noutros âmbitos, como seja o processo penal: não obstante ser o Ministério Público o titular da acção penal, a sua acção pode ser condicionada pelo Juiz de instrução criminal, que não por via de recurso.
26. Sustenta o Ministério Público que, da decisão do Ilustre Delegado do Procurador cabe reclamação hierárquica.
27. E da decisão proferida por essa via? A lei é omissa e o acto insindicável por via judicial, mesmo quando praticado por uma entidade que se encontra a actuar em flagrante conflito de interesses.
28. Estabelece o artigo 36.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China o direito fundamental de acesso ao Direito e aos tribunais.
29. O princípio básico é o do acesso aos tribunais, para que os residentes de Macau possam fazer valer os seus direitos.
30. A RAEM deveria ser a última entidade a pretender vedar este direito a quem quer que seja, cabendo-lhe por missão assegurar conteúdo útil a este direito para todos os residentes, sejam pessoas físicas, sejam pessoas colectivas.
Termos em que devem os recursos interpostos pelo Ministério Público e pela RAEM ser julgados improcedentes, confirmando-se a douta decisão recorrida, assim se fazendo Justiça.».
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Respondeu ao recurso, igualmente, C, pugnando pelo improvimento do recurso, em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 - No processo de Falência a correr termos contra “A, SA”, um dos credores da massa falida “B, LIMITED” requereu ao Ex.mo Administrador da Falência que demandasse a RAEM por perdas e danos causados por um imputado incumprimento do contrato de prestação de serviços celebrado com a Falida, de quem a requerente era credora e principal accionista.
2 – H, Administrador da Falência nos autos supra identificados, requereu ao tribunal o seguinte:
“1. O signatário recebeu da credora B LIMITED a carta que junta em anexo, onde lhe é solicitado que, em representação da massa falida, demande a RAEM por perdas e danos causados pelo incumprimento do contrato de prestação de serviços.
2. A B LIMITED é uma das principais credoras da massa falida, enquanto sua accionista maioritária e por força de suprimentos efectuados.
3. A instauração de uma acção destinada a efectivar a responsabilidade civil da RAEM requer prévio estudo e implicará, necessariamente, custos para a massa falida, pois que necessário será contar com a colaboração de advogado que assuma a sua representação em juízo.
4. O signatário é do entender que a pretensão da B LIMITED tem viabilidade, numa formulação que se não sobrepõe ao processo que corre termos no Tribunal Administrativo com o n.º 219/13-CA.
5. Porém, atendendo ao facto de este procedimento judicial implicar custos que terão de sair dos bens da Falida, entende o signatário ser recomendável proceder previamente à audição dos credores para apurar se existe, da parte deles, vontade e interesse em ver seguir uma acção judicial desta natureza.
Nestes termos, requer a V. Exa. que sejam os credores notificados para se pronunciarem sobre a pretensão formulada pela credora B LIMITED. Uma vez que a carta vem redigida em língua inglesa, solicita os bons ofícios desse Tribunal no sentido de a mesma ser traduzida para a língua chinesa, sendo os credores notificados do documento e sua tradução.
Caso se entenda não dever proceder-se da forma descrita, desde já solicita que seja o presente requerimento apresentado ao Exmo. Senhor Representante do Ministério Público para que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 1125.º do Código de Processo Civil, autorize a propositura de uma acção de responsabilidade por incumprimento do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Falida e a RAEM em 4 de Janeiro de 2011.”
3 – Notificados os credores da massa falida para se pronunciarem sobre esta pretensão, veio a RAEM pronunciar-se contra a pretensão de C, tendo-se pronunciado favoravelmente os credores “D, Limitada”, o “E, SARL”, “F – Telefone (Macau), Limitada” e “G, PA”.
4 - O Ministério Público negou autorização através do despacho de fls. 3700, cujo conteúdo é o seguinte:
“O signatário realizou as diligências tidas por necessárias para o habilitar e dar resposta à pretensão exposta pelo Ex.mo Sr. Administrador de Falência.
Nesta conformidade e ponderados os elevados custos processuais que este tipo ed acção acarreta (que terão que ser pagos pela massa falida), as despesas a efectuar com mandatário judicial (também a sai da massa falida), a incerteza do resultado, a demora (provavelmente de vários anos) na obtenção de uma decisão transitada em julgado, entende o MP não poder concordar com o pedido expresso pelo Ex.mo Sr. Administrador.
Já tivemos ocasião de comunicar verbalmente esta posição ao Ex.mo Sr. Administrador, todavia não lhe comunicamos os fundamentos da mesma, pelo que se promove seja o mesmo deste “despacho” notificado”.
5 - Dessa decisão de não autorização por parte do MP, o Administrador da Falência reclamou para o tribunal.
6 - C pronunciou-se contra a posição do MP, tendo este magistrado oportunamente defendido que da sua posição cabia reclamação hierárquica para o seu imediato superior e não para o juiz do processo.
7 - Foi então produzido despacho do juiz do processo, que:
- Em primeiro lugar, reconheceu que da decisão do MP cabia reclamação para o juiz do processo;
- Em segundo lugar, e conhecendo da referida reclamação, julgou-a procedente e decidiu autorizar a propositura da acção de responsabilidade civil contratual contra a RAEM.
8 – O teor do despacho do juiz do processo é o seguinte:
“Em 26 de Setembro de 2014, o Exmo. Sr. Administrador da Falência deu a conhecer ao Tribunal que tinha recebido uma carta da credora B Limited solicitando-lhe que, em representação da falida, intentasse uma acção judicial contra a Região Administrativa Especial de Macau C doravante apenas RAEM), por perdas e danos alegadamente causados pelo incumprimento do contrato de prestação de serviços que unia a falida ao Território.
Nesse requerimento, o Exmo. Sr. Administrador da Falência, manifestando-se favorável à pretensão da mencionada credora, solicitou ao Tribunal que ouvisse os demais credores sobre esta questão e que, caso houvesse vontade e interesse em ver seguir essa demanda, que o Ministério Público fosse ouvido nos termos do artigo 1125.º do Código de Processo Civil.
Na sequência do convite que lhe foi dirigido, o Exmo. Sr.
Administrador da Falência concretizou, de forma breve, os fundamentos da acção de responsabilidade contratual que considera dever ser intentada pela massa falida contra a RAEM, tal como espelha o seu requerimento de fls. 3635 a 3637 destes autos.
Foram ouvidos todos os credores reclamantes sobre se tinham, ou não, interesse na propositura da mencionada acção judicial, tendo-se pronunciado favoravelmente o D, Limitada (cf fls. 3674), o E SARL (cf. fls. 3675), a F - Telefone (Macau), Limitada (cf. 3676) e a G, SA (cf. 3683).
Por sua vez, a RAEM, igualmente na qualidade de credora reclamante, veio manifestar a sua discordância nesta questão, consignando que, em sua opinião, essa futura acção judicial estará condenada ao insucesso e resultará num gasto injustificado e sem retomo para a massa falida.
O Digníssimo Magistrado do Ministério Público, através do despacho exarado a fls. 3700 dos autos, negou a autorização requerida, invocando, em súmula, os elevados custos processuais que este tipo de acção acarreta, as despesas a efectuar com mandatário judicial, ambas a cargo da massa falida; a incerteza do resultado; e a demora, provavelmente de vários anos, na obtenção de uma decisão transitada em julgado.
Dessa decisão de não autorização foi apresentada reclamação, dirigida ao Tribunal, pelo Exmo. Sr. Administrador da Falência, conforme melhor se colhe do teor do seu requerimento de fls. 3714 a 3723, que aqui se reproduz por brevidade de exposição.
A credora B Limited também manifesta a sua discordância relativamente à posição assumida pelo Ministério Público e veio informar o Tribunal que pretende impugnar contenciosamente essa decisão.
O Digníssimo Magistrado do Ministério Público emitiu, por fim, parecer sobre esta questão processual prévia, pugnando que o meio próprio para reagir contra a sua decisão será a reclamação hierárquica, para o seu imediato superior, e não a reclamação para o juiz do processo.
Quid iuris?
Partindo do pressuposto de que a decisão tomada pelo Ministério Público - de não autorizar a propositura de uma acção judicial contra a RAEM - terá de ser sindicável, asserção em que todos os intervenientes processuais ouvidos estão de acordo, importa definir quem tem competência para a reavaliar.
Ora, para dar resposta a esta questão é fundamental analisar o papel do Ministério Público no processo falimentar e a natureza das decisões que toma no seu âmbito.
O artigo 90.º da Lei Básica garantiu ao Ministério Público da RAEM independência no exercício das funções jurisdicionais que 'lhe são atribuídas por lei e a imunidade a interferências de qualquer natureza, nomeadamente do poder executivo, estando a sua organização, competência e funcionamento regulada na Lei de Bases da Organização Judiciária que estatui no respectivo artigo 56.º, n.º 2 alínea 11), a sua especial competência para -intervir nos processos falimentares.
O processo de falência, no ordenamento jurídico de Macau; apresenta uma correspondência clara com o sistema de falência/liquidação adoptado no direito português pelo Código das Falências de 1935, absorvido pelo Código de Processo Civil português de 1939 e, mais tarde, recebido, com algumas alterações, pelo Código de Processo Civil de 1961.
Nessas codificações, e tal como acontece no Código de Processo Civil de Macau, ao Ministério Público, outrora designado de síndico, foi atribuída a importante função de defesa da legalidade, do interesse público e dos credores, e de se substituir ao Juiz no aspecto mais acentuadamente administrativo da falência, concedendo celeridade e diminuindo as formalidades do procedimento. Deste modo liberta-se também o juiz, que se veria absorvido por uma actividade não jurisdicional e de menos dignidade jurídica.
Essas funções são exercidas, no entanto, por delegação do tribunal, tendo-se atribuído ao Ministério Público uma importante soma de poderes que o tribunal delega, relativamente à conservação, administração e liquidação da massa, funções essas que têm a natureza de jurisdição voluntária.
Com efeito, como afirma peremptoriamente Pedro Sousa Macedo, no que é secundado por António Mota Salgado, o administrador está directamente subordinado ao síndico. Entre as funções deste avulta “orientar e fiscalizar os actos dos administradores e providenciar para que procedam com a devida diligência no desempenho do cargo” (...) mas, claro que acima do síndico está ainda o Tribunal que poderá decidir sobre o que melhor convier à administração da falência.
Subscrevendo a opinião de Pedro de Sousa Macedo, António Mota Salgado concluiu também que não tendo as decisões do Ministério Público natureza jurisdicional, mas como supra se afirmou, natureza de jurisdição voluntária - em que o mesmo actua no uso de um poder discricionário -, dos seus actos e decisões não cabe recurso mas antes reclamação para o juiz, cuja decisão, essa sim, é susceptível de recurso nos termos gerais.
No sentido de que o síndico não tem poderes de decisão contenciosa e que actua através de uma delegação de poderes do juiz, colhe-se igualmente da fundamentação utilizada em jurisprudência comparada, nomeadamente no Acórdão da Relação de Coimbra, Portugal, de 16.10.1990 e nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, Portugal, de 29-07-1977, de 04.12.1995 e de 29.10.2012.
Deste modo, e ressalvando sempre melhor juízo, não podemos deixar de concordar com a posição defendida pelo Exmo. Administrador da Falência no sentido de que, da decisão do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, de não autorizar a propositura de uma acção judicial em nome da massa falida, cabe reclamação para o Juiz do processo.
Em face do que se deixou exposto, decide-se conhecer do mérito da reclamação apresentada pelo Exmo. Sr. Administrador.
Ora, atenta a natureza das funções que o Digníssimo Magistrado do Ministério Público assume neste processo falimentar, teremos de presumir que subjacente à sua posição, exposta no despacho de fls.3700, está a vontade de defender o interesse da massa falida e dos seus credores. A chancela do Ministério Público é sempre uma garantia de conformidade com os interesses de administração da massa.
Tendo o Ministério Público emitido uma opinião fundamentada dirigida ao mencionado fim, a sua modificação pelo juiz só se poderá justificar se os factos apurados relativamente a esta questão devam merecer uma avaliação contrária.
E, sem prejuízo do enorme respeito que nos merece a opinião do Digníssimo Magistrado do Ministério Público, julgamos que é exactamente esse o caso.
O Exmo. Sr. Administrador, expressando a vontade da maioria dos credores, pretende ter o direito de accionar a RAEM, justificando suficientemente as razões subjacentes a essa eventual demanda. Não cabe ao tribunal preocupar-se sobre se esse direito vai ou não ser reconhecido à massa falida.
No vertente caso, o administrador da falência é simultaneamente um advogado e, como técnico do direito, está em condições de avaliar e de discutir com os credores todas as possibilidades legais e todas as vicissitudes a que esse processo judicial (como todos os outros), poderá estar sujeito.
Facto incontornável para o tribunal é que os credores reclamantes com os créditos mais avultados, que são aqueles que mais interesses patrimoniais têm em jogo - como acontece com a C, o D e o E, todos já com parecer positivo do administrador - reclamam esse direito de acção. Para além da RAEM, que é a própria visada com esse procedimento, e cujos créditos estão impugnados e mereceram um parecer negativo do administrador, nenhum outro se manifestou desfavoravelmente à propositura de tal acção.
Ora, se os credores que representam mais de 85% do valor global dos créditos reclamados com parecer positivo do administrador, têm vontade de que a acção seja proposta, não se pode deixar de concluir que essa acção vai de encontro ao interesse dos credores e, reflexamente, ao interesse da massa falida.
Por outro lado, a posição tomada pelo Exmo. Sr. Administrador está devidamente fundamentada no parecer que outrora emitiu, quanto às causas da falência, onde o mesmo consignou que a ela não foram alheios a recusa, por parte da Administração, em concretizar uma revisão dos preços unitários fixados aquando da celebração do contrato; os atrasos e vicissitudes que rodearam o concurso público e a atribuição das licenças, por força da inicial exclusão de um dos concorrentes ao qual veio, ulteriormente, a ser atribuída uma das três licenças destinadas à Apresentante; a decisão tomada pela Administração, em jeito de sanção, de não proceder ao pagamento dos preços unitários entretanto actualizados por despacho do Senhor Chefe do Executivo; a economia contratual que não contempla os mecanismos necessários para que se obtenha o reequilíbrio das prestações, num contrato destinado à prestação de serviços públicos inseridos na política de transportes públicos da RAEM, sector onde o financiamento público é indispensável ao sucesso das operações.”
A opinião positiva e fundamentada do Administrador, secundada por credores Reclamantes que representam a esmagadora maioria dos créditos reclamados, terá de se considerar fundamento bastante para que tal direito de acção lhes seja concedido.
Termos em que se julga a presente reclamação procedente, e se decide autorizar a propositura de uma acção de responsabilidade contratual contra a Região Administrativa Especial de Macau.
Notifique.
Em face da decisão ora tomada, cremos mostrar-se prejudicado o pedido deduzido a fls. 3726 pela credora reclamante C, todavia, para que não subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua pretensão, determino que a mesma venha informar, em 05 dias, se mantém interesse na emissão das aludidas certidões”.
9 – No Tribunal Administrativo pendem os autos de Acção para efectivação de responsabilidade contratual movido “I, Ltd” contra a RAEM, o Chefe do Executivo e contra o Director dos Serviços Para os Assuntos de Tráfego (fls. 103 e sgs.).
***
III – O Direito
1 – No presente recurso jurisdicional está sob censura, dirigida pelo Ministério Público e pela RAEM, o despacho do juiz titular do processo que na 1ª instância autorizou o Administrador da Falência a intentar em nome da falida (“J”) uma acção contra a RAEM a fim de se ressarcir dos prejuízos resultantes de um incumprimento contratual atribuído a esta.
Trata-se de um despacho judicial proferido no âmbito de uma reclamação dirigida pelo Administrador de Falência ao juiz do processo contra a decisão do MP, que expressamente negou autorização ao pedido por aquele formulado.
*
2 - Inconformado, entende o primeiro recorrente (MP) que tal decisão, entre o mais, violou o disposto no art. 56º, nº1, da Lei nº 9/1999 (Lei de Bases da Organização Judiciária) e 1135º do CPC.
Como se pode constatar na decisão em crise, a digna juíza do processo concluiu basicamente o seguinte:
- O papel do MP, no tocante ao processo falimentar - por semelhança com o que sucedia com o regime saído do Código das Falências de 1935 e recebido pelo CPC de 1961 – é o de um exercício de poderes por delegação do tribunal.
- Nesse quadro, ele não tem poderes de decisão contenciosa. De modo que da sua decisão há-de caber reclamação para o juiz titular do processo.
*
3 – A posição do MP nas suas alegações, cujas conclusões já acima transcrevemos, é diferente.
Repare-se no que ele afirmou:
« (…)
Em primeiro lugar, não se pode afirmar que todos os principais credores, com excepção da RAEM, manifestaram a sua adesão à pretensão do Exmo. Sr. Administrador, uma vez que, como já referimos, o E SARL, manifestou reservas a sugestão pois que só se manifestou favorável a tal ideia, “contando que a mesma não interfira com o prosseguimento normal dos presentes que vier a ser reconhecido e graduado por sentença.” (fls. 3675).
Por outro lado, a RAEM reclama créditos no montante de cerca de 98 milhões de patacas, pelo que só muito dificilmente se poderá considerar um pequeno credor.
Não foi, pois, uma manifestação de vontade inequívoca, já que um dos principais credores revelou receio que tal acção possa por em causa o andamento normal do presente processo, e outro a tanto se opôs.
Aliás, este justo receio, não só pela incerteza do resultado como também pelo adiamento indeterminado da decisão final a proferir nestes autos, foi um dos motivos que levaram o Ministério Publico a manifestar a sua discordância com o desejo do Exmo. Sr. Administrador.
E este receio tem fundamento. Se duvidas há, bastará consultar o Proc. 219/13-CA que corre termos no Tribunal Administrativo, acção intentada em Julho de 2013 pela J, ora falida, contra a RAEM, sem que se possa vislumbrar a curto ou médio prazo a prolação de uma decisão na primeira instância (isto já para não se falar dos eventuais mas prováveis recursos).
Alias, convirá recordar o que disse o Exmo Sr. Administrador a este respeito:
Sucede que, por um lado, está pendente uma acção no tribunal Administrativo, na sua fase inicial (aguarda-se a prolação de saneador), a qual deverá, certamente e atendendo ao tempo já decorrido, levar alguns anos até estar concluída.
E atente-se que nesse processo a A. pede o pagamento, a RAEM da quantia de quarenta e um milhões de patacas, sendo que a RAEM, em pedido reconvencional, exige o pagamento de uma indemnização por perdas e danos no montante de cinquenta milhões de patacas.
Quando o signatário manifestou oposição à propositura de a acção, não o fez por defender os interesses da RAEM, como chegou a ser insinuado pelo Exmo. Sr. Administrador nos pontos 29 e 30 supra citados, (a este respeito tão só se dirá que não tem qualquer fundamento as preocupações do Exmo. Sr. Administrados, porque a imparcialidade da actuação do Ministério Publico foi desde o inicio assegurada, com o recurso ao mecanismo do art.º 58 da Lei 9/1999 e com a nomeação de advogado, para defender os interesses de um dos credores: precisamente a RAEM) mas tê-lo, pelos motivos já invocados e também por saber da existência deste processo e por saber ainda que fora formulado pedido reconvencional, o qual a merecer provimento, porá inevitavelmente em crise o pagamento dos créditos dos credores que pretendem a propositura de nova acção.
Com a propositura desta nova acção, será expectável novo pedido reconvencional, o qual a ser deferido no todo ou em parte, agravará ainda mais a expectativa dos credores em ver satisfeito o seu crédito.
Em segundo lugar
Por considerar que o ordenamento jurídico de Macau na área falimentar, baseia-se nas normas do Código das Falências de 1935, do Código de Processo Civil português de 1939 e, posteriormente com algumas alterações, pelo Código de Processo Civil de 1961,concluiu a Mma. Juiz que o Ministério Publico, - que tem a importante função de defesa da legalidade, do interesse publico e dos credores - detém um mero papel residual de funções administrativas e de menor dignidade judicial, libertando com a sua actividade, o Juiz para tarefas bem mais dignas.
Ora, esta é, com todo o respeito, uma visão errada e ancilosada do papel do Ministério Publico.
Como já tivemos ocasião de afirmar:
Se esta submissão hierárquica do Ministério Público ao Juiz se aceitava em 1968, quando aquela magistratura era vestibular desta, é de todo inaceitável a defesa desta tese em 2015, cerca de 37 anos após a entrada em vigor da Lei Orgânica do Ministério Público L39/78 de 1 de Junho em que se consagra a magistratura do Ministério Público como autónoma, hierarquizada e como carreira própria (não vestibular da magistratura judicial).
Esta estrutura de separação e de paralelismo das magistraturas vigora igualmente em Macau pelo que o que ficou dito é igualmente aplicável ao ordenamento jurídico da R.A.E.M. ( veja-se o art.º 2 da Lei n. 10/1999)
Em terceiro lugar
A Mma Juiz considera que essas funções (as do Ministério Publico) são exercidas por delegação do tribunal, tendo-se atribuído ao Ministério Público uma importante soma de poderes que o tribunal delega, relativamente à conservação, administração e liquidação da massa, funções essas que têm a natureza de jurisdição voluntária.
Também aqui temos de demonstrar a nossa profunda discordância com o douto despacho recorrido.
Entendemos que o Ministério Publico exerce o seu “múnus”, no processo falimentar dotado de poderes próprios e não delegados. Se não vejamos:
Reza o art.º 37 do Código de Procedimento Administrativo, sob a epigrafe
(Delegação de poderes)
1. Os órgãos administrativos normalmente competentes para decidir em determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados por lei, permitir, através de um acto de delegação de poderes, que outro órgão ou agente pratique acatos administrativos sobre a mesma matéria.
2. Mediante um acto de delegação de poderes, os órgãos administrativos competentes para decidir em determinada matéria podem sempre permitir, independentemente de lei de habilitação, que o seu imediato inferior hierárquico, adjunto ou substituto pratiquem actos de administração ordinária nessa matéria.
Artigo 39º
(Requisitos do acto de delegação)
1. No acto de delegação ou subdelegação, deve o órgão delegante ou subdelegante especificar os poderes que são delegados ou subdelegados ou quais os actos que o delegado ou subdelegado pode praticar.
2. Os actos de delegação e subdelegação de poderes estão sujeitos a publicação no Boletim Oficial de Macau, e, tratando-se de órgãos municipais, devem ser também afixados nos lugares do estilo.
Artigo 41º
(Poderes do delegante ou do subdelegante)
1. O órgão delegante ou subdelegante pode emitir directivas ou instruções vinculativas para o delegado ou subdelegado sobre o modo como devem ser exercidos os poderes delegados ou subdelegados.
2. O órgão delegante ou subdelegante tem o poder de avocar, bem como o poder de revogar os actos praticados pelo delegado ou subdelegado, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 131º.
Quer isto dizer que para que possa haver “delegação de poderes” de um órgão para outro, é necessário desde logo:
- que o órgão delegante tenha poderes próprios e delegáveis;
- que exista lei que permita tal delegação;
- que seja realizado um acto de delegação de poderes;
- que o delegado seja um inferior hierárquico, adjunto ou substituto do delegante;
- que no acto de delegação sejam especificados os actos delegados;
- que a delegação de poderes seja publicada em Boletim Oficial.
Ora nenhum destes requisitos existe, pelo não se pode falar em delegação de poderes do Juiz/Tribunal para o Ministério Publico. Não se pode, porque não há, e porque o paralelismo das magistraturas o impede.
E não se diga que estamos perante ma delegação de poderes tacita, já que:
“Verifica-se ela quando a própria lei considera delegadas num próprio órgão competências que atribui a outro, mantendo neste (quando preexista entre ambos uma relação de supremacia/sujeição) os poderes de revogar os actos praticados pelo “delegado” nessa matéria e de fazer cessar a “delegação”, chamando a si o exercício da competência - daí o denominar-se de “tácita”. Vd Código de Procedimento Administrativo, Esteves de Oliveira
Em quarto lugar contrariamente ao que é afirmado no douto despacho recorrido, o Ministério Publico actua no processo de falência munido de uma vasta gama de poderes próprios, conferidos por lei.
A título exemplificativo vejam-se as seguintes disposições legais, onde se constata de forma inequívoca, os poderes originários, conferidos por lei:
Artigo 1103º
(Negócios jurídicos posteriores à declaração da falência)
2 - O administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, pode ratificar os negócios jurídicos realizados pelo falido posteriormente à sentença de declaração da falência, se nisso houver interesse para a massa falida.
Artigo 1108º
(Legitimidade para a resolução ou impugnação)
1. As acções de resolução ou de impugnação pauliana são dependência do processo de falência e podem ser propostas pelo administrador da falência, com autorização do Ministério Público, ou por qualquer credor.
Artigo 1109º
(Compro e venda ainda não cumprida)
2. Se o vendedor não exercer a faculdade prevista no número anterior, mantém-se suspenso o cumprimento do contrato até que o administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, declare querer cumpri-lo, mantendo todas as obrigações do comprador, ou resolvê-lo, liberando a massa falida dessas obrigações; o vendedor pode, contudo, fixar um prazo razoável ao administrador da falência para este exercer a sua opção, findo o qual o contrato se considera resolvido.
3. O contrato de compra e venda não se extingue se o vendedor for o falido e a propriedade da coisa se tiver já transmitido à data da declaração da falência; no caso contrário, cabe ao administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, optar pelo cumprimento do contrato ou pela resolução dele, ficando salvo ao comprador o direito a reclamar da massa falida a indemnização pelos danos sofridos.
Artigo 1111º
(Vendo o prestações e operações semelhantes)
1. No caso de venda ao falido de certos bens por um preço de mercado ou de bolsa, em determinada data ou dentro de certo prazo, e em que a data ocorra ou o prazo dinde depois de declarada a falência, bem como nos casos de venda a prestações ao falido, com reserva de propriedade, e de locação de certa coisa, com a cláusula de que se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitos todos os alugueres pactuados, pode o administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, optar pelo cumprimento ou pela resolução do contrato.
Artigo 1112º
(Vendo de coisas já expedidos à doto do declaração do falência)
2. O administrador da falência pode, com a autorização do Ministério Público, opor-se ao exercício da faculdade prevista no nº 1, pagando o preço integral contra a entrega das coisas expedidas.
Artigo 1115º
(Mandato e comissão)
1. O mandato conferido também no interesse do mandatário e a comissão não se extinguem necessariamente com a declaração da falência do mandante ou do comitente, podendo o administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, optar pela manutenção ou pela revogação do contrato; a revogação não depende do acordo do mandatário ou do comissário nem confere direito a indemnização.
Artigo 1116º
(Arrendamento)
2. A declaração da falência não extingue o arrendamento, quando o falido seja o arrendatário, mas o administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, pode denunciá-lo quando os interesses da massa falida assim o exijam; neste coso, o senhorio pode reclamar o pagamento das rendas em dívida até à denúncia e da indemnização devida pelo incumprimento do contrato, como créditos comuns.
3. Não tendo o prédio arrendado sido ainda entregue ao arrendatário à data da declaração da falência deste, tanto o administrador da falência, com a autorização do Ministério Público, como o senhorio, podem optar pela extinção do contrato; a indemnização pelo incumprimento, quando devida pelo falido, constitui para o senhorio crédito comum.
Artigo 1121º
(A quem compete o administração)
1. A administração dos bens da massa falida compete ao administrador da falência, sob a orientação do Ministério Público, nos termos dos artigos seguintes.
2. São aplicáveis ao administrador da falência as disposições respeitantes a impedimentos e suspeições dos funcionários da secretaria; oposta a suspeição, o administrador da falência contínua em exercício até se decidir a arguição, salvo se o Ministério Público propuser ao juiz a sua imediata substituição.
Artigo 1123º
(Poderes do administrador da falência)
1. O administrador da falência pode praticar, em relação à massa falida, todos os actos de administração ordinária, ficando dependente de expressa autorização do Ministério Público o exercício de quaisquer poderes especiais.
Artigo 1125º
(Cobrança dos créditos)
1. Os créditos do falido devem ser cobrados peio administrador da falência à medida do seu vencimento, devendo para esse efeito propor as acções ou execuções necessárias, com autorização do Ministério Público.
Artigo 1127º
(Resgate ou venda de certos bens)
O Ministério Público pode determinar que os bens do falido dados em penhor ou sujeitos ao direito de retenção sejam resgatado sou vendidos.
Artigos 1128º
(Autorização para o falido praticar certos actos)
1. O Ministério Público, sob proposta do administrador da falência, pode autorizar o falido a auxiliar a administração da massa falida, fixando-lhe o prazo e a remuneração.
2. A autorização do Ministério Público é revogável a todo o tempo.
Artigo 1130º
(Quem faz a liquidação)
A liquidação do activo é efectuada pelo administrador da falência, sob a orientação do Ministério Público, em harmonia com o disposto nos artigos seguintes; o processo da liquidação constitui um apenso do processo de falência.
Artigo 1132º
(Modalidade da venda dos bens)
1. A venda dos bens da massa falida é feito segundo as modalidades estabelecidos paro o processo comum de execução.
2. Ao Ministério Público compete, ouvido o administrador da falência, determinar a modalidade da venda, bem como presidir à abertura das propostas em corto fechado.
Artigo 1135º
(Reclamações contra irregularidades da liquidação)
Contra os acatos irregulares praticados no decurso da liquidação podem os credores e o falido dirigir, por escrito, reclamações ao juiz, que decide depois de ouvidos o Ministério Público e as pessoas directamente interessadas na manutenção do acto, com a produção da prova necessária.
Artigo 1136º
(Depósito do produto da liquidação)
1. À medida que se for efectuando a liquidação, o seu produto é depositado numa conta próprio, em instituição de crédito com sede em Macau, à ordem do Ministério Público, que pode levantar as quantias indispensáveis para ocorrer às despesas de liquidação e administração, sendo os respectivos cheques assinados pelo Ministério Público e pelo administrador da falência.
2. Sempre que sejam previstos períodos relativamente longos de imobilização dos fundos depositados, devem ser feitas aplicações deles em modalidades sem grande risco e que recolham o parecer favorável do Ministério Público.
Esta é toda uma panóplia de poderes/deveres conferidos ao Ministério Púbico, sendo claro que os mesmos resultam da Lei e não de uma qualquer delegação de poderes feita por uma “entidade superior”sendo que em momento algum o Juiz do processo pode interferir no relacionamento entre o Ministério Publico e Administrador da falência
Em quinto lugar, interessa discutir se é possível a apresentação de uma reclamação e se a reclamação apresentada está dirigida a quem detém competência para a apreciar
Vejamos
A Mma Juiz no seu no seu douto despacho, tem como base o disposto no art.º 1135 CPCM para justificar a sua decisão.
Diz aquele preceito, que:
“Contra os actos irregulares praticados no decurso da liquidação podem os credores e o falido dirigir, por escrito, reclamações ao juiz que decide depois de ouvidos o Ministério Público e as pessoas directamente interessadas na manutenção do acto, com a produção de prova necessária.”
Salvo melhor opinião, este e o único caso em que a lei prevê a intervenção do Juiz da Falência, em resultado de uma reclamação
Mas tal ocorre na fase de liquidação do activo, sendo que a lei faculta a determinadas entidades, tais como o credor ou mesmo o falido, a faculdade de reclamar para o Juiz do processo de quaisquer irregularidades ocorridas nesta fase.
Ora este preceito legal, - que se encontra inserido na secção “Liquidação do activo” não tem, salvo melhor opinião, aplicabilidade ao presente caso.
A), o processo não se encontra ainda na fase de liquidação.
B), o reclamante não é nem credor, nem tão pouco o falido. É certo que representa e defende os interesses destes no processo. Mas ambas as figuras não se confundem.
C) este preceito é uma arma que, justamente, o legislador colocou à disposição do credor e do falido para poderem reclamar de qualquer actividade irregular tida pelo Administrador e do Ministério Publico, mas só na fase de liquidação.
Neste sentido veja-se Mota Salgado in ob. cit. Fls. 118, 119.
D) não foi cometida qualquer irregularidade por parte do ora recorrente. Tão somente foi manifestada uma opinião, por parte do signatário, no exercício das suas funções, contrária à vontade do Exmo. Sr. Administrador.
Será uma opinião discutível, sem dúvida. Mas que seguramente não constitui qualquer irregularidade, tanto mais que foi expressa de acordo com o modo como o Ministério Publico melhor entende defender os interesses dos credores no seu todo, bem com a massa falida.
Entende-se, pois, ser inaplicável ao caso a norma citada.
Em sexto lugar
Não queremos com isto afirmar, que as posições assumidas pelo Ministério Publico no processo não são sufragáveis. Entendemos que assiste ao Sr. Administrador o direito de delas reclamar: mas hierarquicamente.
Porque sendo o Ministério Público uma magistratura hierarquizada, das posições assumidas por magistrado, caberá “reclamação” hierárquica para o seu imediato superior e não para a Mma Juiz do processo.
Esta parece ser a forma adequada de reacção de qualquer decisão do signatário, no âmbito do presente processo.
Em sétimo lugar
Ao admitir a reclamação e ao autorizar o Exmo. Sr. Administrador a intentara uma acção ordinária contra a RAEM, passando por cima da posição assumida pelo Ministério Publico, arrogou-se a Mma Juiz de poderes que não tem por não conferidos
Em oitavo lugar
Ao considerar que o Ministério Publico, neste tipo de processo, actua por delegação de poderes do Tribunal e ao Juiz presta contas de forma genérica, olvidou de forma flagrante que se trata de um “órgão judiciário que desempenha com independência as sua funções atribuídas por lei, .. e que e autónomo em relação aos demais órgãos do poder, exercendo as suas atribuições e competências com independência e livre de qualquer interferência” ( art.º 56 n.1 Lei 9/1999).
*
Finalmente não podemos deixar de fazer referência a algumas tomadas de posição assumidas ao longo do seu douto despacho com as quais temos de demonstrar a nossa discordância.
Assim, quando se afirma que:
Não cabe ao tribunal preocupar-se sobre se esse direito vai ou não ser reconhecido à massa falida.
Esta o Tribunal a fazer precisamente o oposto.
Quando se afirma que,
o administrador da falência é simultaneamente um advogado e, como técnico do direito, está em condições de avaliar e de discutir com os credores todas as possibilidades legais e todas as vicissitudes a que esse processo judicial (como todos os outros), poderá estar sujeito
e que
a posição tomada pelo Exmo. Sr. Administrador está devidamente fundamentada no parecer que outrora emitiu, quanto às causas da falência, onde o mesmo consignou que a ela não foram alheios a recusa, por parte da Administração em concretizar uma revisão dos preços unitários fixados aquando da celebração do contrato: os atrasos e vicissitudes que rodearam o concurso público e a atribuição das licenças, por força da inicial exclusão de um dos concorrentes ao qual veio, ulteriormente, a ser atribuída uma das três licenças destinadas à Apresentante,' a decisão tomada pela Administração, em jeito de sanção, de não proceder ao pagamento dos preços unitários entretanto actualizados por despacho do Senhor Chefe do Executivo: a economia contratual que não contempla os mecanismos necessários para que se obtenha ao reequilíbrio das prestações, num contrato destinado à prestação de serviços públicos inseridos na política de transportes públicos da RAEM, sector onde o financiamento público é Indispensável ao sucesso das operações.”
Está o tribunal, efectivamente, a emitir um juízo de valor sobre o mérito da pretensão exposta, - desconhecendo em que termos a mesma pode ser proposta - e sobre viabilidade da mesma.
Não podemos acreditar que, caso a pretensão se apresentasse ao Tribunal infundada ou mesmo inviável, que a mesma iria ter a sua anuência.
E, salvo melhor opinião, essa não parece ser essa função do Juiz.
Finalmente, não podemos deixar de referir a situação algo caricata e insólita de, a vingar a posição recorrida, que será a de ver a Mma Juiz assinar os cheques para pagamento das despesas judiciárias e de honorários aos advogados».
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4 – A posição da recorrente RAEM, por seu turno, não se afasta deste entendimento, tal como decorre das conclusões mais atrás transcritas.
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5 – Descontadas unicamente algumas observações assomadas ao recurso em jeito de mero juízo pessoal do recorrente, quanto ao mais subscrevemos inteiramente os fundamentos do recurso do MP e, do mesmo passo, os da RAEM. Razão pela qual os fazemos nossos, com a devida vénia, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 631º, nº5, do CPC.
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5.1 - Efectivamente, resulta das posições dos ora recorrentes essencialmente o seguinte:
a) O papel do Ministério Público no ordenamento jurídico da RAEM é de total independência e autonomia em relação à magistratura judicial;
O TSI acolhe esta posição, porque está de acordo com as disposições do art. 90º da LBOJ e art. 55º, nº1 da LBOJ.
Efectivamente, não existe, no âmbito do processo judicial, hierarquização dos poderes do MP em relação aos do juiz, uma vez que cada um destes magistrados exerce, em plena autonomia, as suas funções. É por isso que a regra é a de que da intervenção do MP no processo não cabe recurso, nem reclamação, para o juiz. Há excepções a esta regra, sim, mas essas terão que estar expressamente previstas. É o que acontece, por exemplo, com as apreensões autorizadas pelo MP, de cujas decisões cabe impugnação para o juiz de instrução (art. 163º, nº6, do CPP).
b) Os magistrados do MP apenas estão subordinados hierarquicamente.
O TSI subscreve esta posição, porque está em consonância com o que vem plasmado no art. 8º da Lei nº 10/1999 (Estatuto dos Magistrados). A título de exemplo, citaríamos o caso da reclamação do despacho de arquivamento do Ministério Público para o superior hierárquico imediato (art. 259º, nº 4, do CPP).
c) No processo falimentar não existe qualquer delegação nem expressa nem tácita ao MP, nem pela lei, nem pelo juiz do processo, no tocante à sua intervenção autorizativa permitida, entre outros, no art. 1123º do CPC.
O TSI concorda, porque isso mesmo emerge desse e de outros preceitos. Basta ver o que rezam os artigos citados pelo MP (arts. 1103º, nº2, 1108º, nº1, 1109º, nº 2, 3, 1111º, nº1, 1112º, nº2, 1115º, nº1, 1116º, nºs 2 e 3, 1123º, nº1, 1125º, nº1, 1128º, nºs 1 e 2, todos do CPC.
As autorizações previstas no CPC a propósito das funções do MP no processo de falência são verdadeiras “decisões” que condicionam a actuação do Administrador da Falência em vários domínios da sua acção.
Ou seja, a acção do Administrador não é livre, antes depende da “orientação do Ministério Público”, que se manifesta pelo poder de “autorizar” ou não certo tipo de actos. Ou seja, o Administrador dispõe de certos direitos e prerrogativas; contudo, o seu exercício carece de um acto permissivo.
A lei trata este direito do MP como sendo um poder de orientação – que em direito administrativo seria tratado como de “superintendência” -, mas que no caso até se nos afigura estar mais próximo do da “tutela”, na medida em que ao MP se reconhece, como se viu, um verdadeiro poder autorizativo.
Seja como for, quanto a nós, este direito extraordinário concedido pelo legislador ao Ministério Público no plano falimentar é compreensível na medida em que se reconhece ser este magistrado o ente melhor colocado para, de uma maneira isenta e imparcial, procurar defender os interesses da massa falida.
Trata-se de um poder que o MP exerce, segundo o Código, inclusive na fase da liquidação, pois esta é efectuada pelo administrador “sob orientação do Ministério Público” (art. 1130º).
A ideia de delegação de poderes nasce do escrito de um autor que sobre o assunto se debruçou. Referimo-nos a Pedro Macedo que a certa altura opinou que as funções do síndico (MP) seriam exercidas sob delegação por “indicação legal” e que a plenitude dos poderes pertence ao tribunal (Manual de Direito das Falências, II, pág. 283).
Este autor dizia que sempre que não haja preceito delegando no síndico os respectivos poderes só o tribunal pode decidir (ob. e loc. cits).
Mas o motivo por que este autor se pronunciava deste jeito era devido ao facto de não considerar jurisdicionais as funções do síndico, tomando-as por essencialmente administrativas. E, por isso mesmo, achava que das suas decisões não cabia recurso, mas antes reclamação para o juiz, cuja decisão, essa sim, seria susceptível de recurso nos termos gerais (ob. e loc. cits).
Ora bem. Mesmo que se considerasse que o papel do Ministério Público nos processo falimentares fosse, sempre e só, de índole administrativa, então as decisões que nesse âmbito tomasse seriam, pela mesma lógica, sempre e só sujeitas a sindicância pela via administrativa (não sindicância jurisdicional), e, portanto, hierárquica para o seu imediato superior, e não para o juiz, que sobre ele não dispõe de nenhum poder próprio da hierarquia administrativa.
É, de resto, muito difícil aceitar a premissa maior do silogismo construído por Pedro Macedo, aliás um tanto contraditório, se nos é permitido dizer assim. Na verdade, se é a lei que confere poderes ou direitos ao MP, não se pode dizer que ele dispõe de poderes delegados. Na verdade, sempre que o legislador confere a alguém, direitos, competências ou poderes, o que se tem que concluir é que tais direitos e poderes são criados por lei (e não “delegados por lei”: a delegação decorre sempre de um acto oriundo de órgão originariamente competente que transfere o exercício dessa competência para um órgão diferente).
E muito menos se poderia dizer que seriam, nesse caso, poderes delegados pelo juiz. Sendo criados por lei, diz-se com toda a segurança, propriedade e sem receio de errar, que passam a ser originários e próprios, em caso nenhum derivados e sob delegação.
Mas a contradição não se fica por este autor. António Mota Salgado, com efeito, entendia que sempre que a delegação é legalmente decretada, não pode o juiz substituir-se ao síndico no âmbito da “competência legal deste” (Falência e Insolvência, pág. 18).
Este autor, descontado o passo em falso que dá na caracterização da natureza dos poderes do MP, acaba por estar mais próximo da melhor solução, ao admitir que o juiz não se pode substituir ao MP nos casos em que a lei confere poderes de autorização ao MP. Ora, se esta doutrina é aceitável na sua dimensão dispositiva primária, não parece que deva aceitar-se no quadro de uma impugnação para o juiz.
Quer dizer, se o juiz não tem poderes para decidir estas autorizações em 1º grau, também lho não pode reconhecer-se em 2º grau no âmbito de uma impugnação, aliás não prevista. Se isso fosse possível, seria o mesmo que estar a admitir-se ao juiz o exercício secundário de poderes que no plano primário lhe não concedeu. E tal seria um absurdo.
Para se perceber que as coisas mudaram, basta pensar no antigo Código de Processo Comercial de Portugal (Decreto de 14 de Dezembro de 1905), onde já a administração e liquidação de bens competiam ao administrador da massa sob a fiscalização dos curadores fiscais (art. 229º) e em que a prática dos actos especiais pelo administrador ficava dependente de “expressa concessão do tribunal”, aliás, como era o mesmo tribunal a autorizar actos de gerência (art. 233º). Era então o tribunal (o juiz) a autorizar tais actos e não os “curadores fiscais”.
Tudo mudou posteriormente, quando o síndico e, especialmente o MP (na RAEM) passaram a exercer funções autorizativas por efeito único da lei.
Ora, se não há delegação (nem pelo juiz, nem pela lei,) e se o MP está, em vez disso, dotado de poderes próprios e originários (quando a lei lhe reconhece poderes de autorização), então mais razão encontramos para aplicar a solução legal que o vê como a entidade que está dotada de poderes de decidir em termos finais e definitivos esta matéria autorizativa.
Aliás, por exemplo, quando no art. 1132º, nº2, do CPC (já foi em Portugal o congénere art. 1247º) se comete ao MP poder para determinar a modalidade da venda, está a lei a atribuir-lhe uma competência originária, própria e definitiva para a escolha. E é, precisamente, aí que o mesmo autor, António Mota Salgado, proclamava que essa escolha era definitiva. Sublinhava ele que se fosse possível reclamar para o juiz dessa escolha, “tal reclamação equivaleria a atribuir ao juiz a última palavra acerca da escolha da modalidade da venda ao arrepio da lei” (ob. cit., pág. 162, nota 39).
Ora, seguindo o raciocínio deste autor, não vemos razão para distinguir a solução que emerge do art. 1132º da que brota dos arts. 1123º, nº1 e 1125º, nº1, do CPC. Ou seja, tanto serve esta doutrina para afirmar a competência legal e primária atribuída ao MP no art. 1132º, como para a entrever no art. 1123º ao mesmo magistrado.
d) A reclamação que deu origem ao despacho ora sindicado tinha que ser dirigida ao superior hierárquico do magistrado do Ministério Público que negou a referida autorização, nunca ao juiz.
O TSI também nesta matéria acompanha os recorrentes.
A invocação do art. 1135º do CPC tem pressupostos completamente diferentes dos que estiveram na base da decisão em causa. O preceito em causa reflecte os poderes do juiz do processo numa fase que é já de liquidação do activo (e aqui ainda estamos longe disso) e a reclamação para o juiz está condicionada à verificação de actos irregulares praticados no decurso dessa fase.
A pretendida acção judicial pode ser entendida como um acto de administração especial ou extraordinária, mas nunca como um “acto irregular”, no sentido de algum atentado contra regras e deveres de observância obrigatória. Como dizem Luis A. Carvalho Fernandes e João Labareda a expressão “actos irregulares” «Está aqui usada em sentido genérico para significar todos os actos que, por qualquer motivo, infringem a lei, independentemente da natureza jurídica do vício de que enfermam» (Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado, 3ª edição, 2ª reimpressão, 2000, pág. 460).
Quer isto dizer que não nos parece, sequer, possível invocar este dispositivo - que tem um campo de acção próprio e requisitos muito específicos – para, numa interpretação extensiva, o alargar a toda a actuação do MP no processo falimentar, com alcance e finalidades completamente distintos.
E, obviamente, não pode ser pelo facto de o MP se opor – i.é., de não autorizar a propositura da acção – que já estaremos perante um acto “irregular”. Dito de outra forma, a irregularidade nunca pode radicar numa não autorização, da mesma maneira que a simples autorização, por si, é um acto fatalmente regular. A regularidade ou não dos actos carecerá de outro tipo de motivos, próprios da fase de liquidação. E mesmo que pudesse ser feita uma utilização extensiva da norma do art. 1135º para a fase anterior, pensamos que nunca o facto de o Administrador apoiar a propositura da acção com o beneplácito dos credores, por maioritários que sejam, torna irregular a posição do MP que a ela não concede autorização, até porque a lei não deposita naqueles intervenientes um poder de condicionamento do MP na sua acção. E não deposita porque, condicionante é a acção crucial do MP na sua função autorizativa, totalmente descomprometida com os interesses dos credores.
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5.2 - E isto também decorre, de algum modo, do grau de autonomia com que o MP intervém no processo de falência.
Sabemos que o MP tem competência para “intervir nos processos falimentares e em todos os que envolvam interesse público” (art. 56º, nº2, al. 11), da LBOJ).
A propósito do regime de intervenção, pode dizer-se que o MP intervém a título principal ou acessório. E é principal quando a lei lhe confere legitimidade própria” (art. 60º, nº2, al.1), da LBOJ). Será o caso?
António Mota Salgado entende que a intervenção do MP na falência é acessória, por ser fundamentalmente administrativa (ob. cit., pág. 17).
Pedro Macedo, contudo, acha que assume a dignidade de parte principal tendo em vista a natureza dos interesses a defender e promover, e tal sucederia na verificação e graduação do passivo, na fiscalização dos meios preventivos e suspensivos, na fuga e ausência do comerciante e na defesa dos interesses da Fazenda como credora (ob. cit., I, pág. 472). Parece-nos, porém, que nenhuma destas intervenções se confunde com aquela que ora aqui estudamos e, por isso, a dúvida permanece a este respeito.
Em nossa opinião, o papel do MP autorizador não tem contornos de parte, mas não deixa de representar uma atitude a que o legislador conferiu uma intervenção decisiva, decisória e “principal”. Se não se quiser dar-lhe, quanto a esse aspecto, a feição de intervenção “principal”, ao menos haverá que reconhecer-lhe um papel decisor e um grau definitivo. Definitivo, sim, porque o legislador não fez depender a autorização do MP de mais nenhum interveniente processual, nem sequer do juiz titular do processo. De modo nenhum, por isso, podemos concordar com o argumento exposto por Pedro Macedo de que a solução da reclamação para o juiz se impõe tendo em conta a “relação de hierarquia que justifica a modificabilidade das decisões tomadas pelo síndico” (ob. cit., II, pág. 412).
Portanto, se o Código não prevê que da decisão do MP ao abrigo dos arts. 1123º e 1125º do CPC cabe reclamação para o juiz, enquanto noutras ocasiões o mesmo legislador, e no mesmo plano falimentar, as prevê, que motivos válidos se haverão de invocar para o intérprete a vislumbrar?!
Neste sentido, como interpretar a diferença de estatuição entre o art. 1123º e 1125º e o art. 1135º? Ora bem. Quanto a nós, faz sentido que seja o juiz a decidir sobre as irregularidades invocadas no âmbito da fase da liquidação, uma vez que aí se justifica um controlo judicial em matérias e actos que se descobrem numa diferente fase (fase de liquidação) e que podem até prejudicar os próprios interesses dos credores ou da massa falida. Já, diferentemente, nos parece não existir a mesma necessidade desse controlo judicial na fase anterior de administração da falência e de cobrança de créditos, cuja actuação por parte do administrador, em nome da falida, é trazer bens para a massa. Pensamos que faz, então, pouca lógica que deva ser o juiz do processo de falência a suportar o peso de decidir nesse processo a necessidade e utilidade dessa acção, até porque saber se o crédito ou o direito alegado na acção a propor existem haverá de estar sujeito a um juízo judicial autónomo próprio da acção a instaurar de acordo com os factos da causa de pedir que vier a ser invocada.
Aliás, se fosse de seguir decisão contrária, esta seria a primeira vez, que nos lembremos, em que as decisões tomadas pelo MP, estariam sujeitas a impugnação pela via da reclamação para o próprio juiz titular do processo.
De qualquer modo, repetimos, no âmbito do processo de falência, e especialmente sobre esta matéria, da decisão do MP tomada em sede dos art. 1123º e 1125º, do CPC, não está expressa e especialmente prevista qualquer reclamação. Não nos parece, pois, que se possa chamar à colação uma impugnação que o mesmo legislador criou para outras situações do processo falimentar.
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5.3 - Cremos, sem embargo, que tais decisões que concedem ou denegam autorizações do MP são escrutináveis, enquanto princípio geral de direito segundo o qual todas as decisões estão sujeitas a impugnação. Porém, sem prejuízo disso, não parece, por outro lado, que atenta a natureza decisiva e decisória da sua intervenção - em plano de autonomia e independência no quadro dos poderes originários (e não delegados, repetimos) -, a reclamação deva ser dirigida ao juiz do processo, não só por nem sequer estar prevista para esta fase, mas também porque a tese contrária implicaria reconhecer pela via da reclamação o exercício de poderes pelo juiz que a lei apenas quis cometer ao MP. Logo, qualquer impugnação apenas seria possível, quando muito, para o superior hierárquico do magistrado do MP autorizador.
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6 – Conclusão
Não se pode, por fim, dizer que a não autorização por parte do MP vai contra os interesses da massa falida, na medida em que, se a acção pretendida instaurar seria causada por «perdas e danos causados por incumprimento do contrato de prestação de serviços» (fls. 3176; aqui, fls. 3), já decorre do teor da p.i. da acção intentada contra a RAEM no Proc. nº 219/13-CA, a correr termos no Tribunal Administrativo, que aquilo que já ali também se intenta obter é a efectivação de responsabilidade contratual por incumprimento imputado à RAEM (cfr. fls. 102-150).
Tendo em conta este nosso entendimento, que necessariamente ressalva o devido respeito por opinião contrária, não subscrevemos a tese exposta no despacho em crise. Razão pela qual os recursos merecem provimento, o que significa que a decisão recorrida deverá ser revogada.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida e se confirma a decisão do MP que nega autorização ao Ex.mo Administrador de Falência para a instauração da referida acção.
Custas pela massa falida.
TSI, 05 de Maio de 2016
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José Cândido de Pinho
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Tong Hio Fong
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Lai Kin Hong
73/2016 49