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Processo nº 269/2016 Data: 05.05.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Alteração da qualificação jurídica.
Matéria de facto nova.
Princípio do contraditório.
Direito de defesa.
Nulidade.



SUMÁRIO

  Incorre-se em nulidade do art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M. se no Acórdão proferido a final da audiência de julgamento se proceder a uma “alteração da qualificação jurídica” constante da acusação, condenando-se o arguido por outro “tipo de crime”, sem que lhe tenha sido (préviamente) dada a oportunidade para sobre tal alteração se defender ou requerer prazo para o fazer.
  

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 269/2016
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. B (B), com os sinais dos autos, vem recorrer do Acórdão de 08.01.2016 do T.J.B. que o condenou como autora de 1 crime de “falsificação de declaração”, p. e p. pelo art. 97°, n.° 2 do Código do Notariado e art. 323°, n.° 1 do C.P.M., fixando-lhe a pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por igual período; (cfr., fls. 239 a 245 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Motivou para, a final, concluir afirmando que o Colectivo do T.J.B. incorreu em violação do seu direito ao contraditório, pugnando, subsidiáriamente, pela verificação dos vícios de “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 297 a 337).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o recurso merece provimento; (cfr., fls. 341 a 343).

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Acusada da prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, previsto e punível pelos artigos 244.°, n.° 1, alínea b), e 245.°, do Código Penal, viria a arguida B, ora recorrente, a ser condenada pela prática de um crime de falsidade de declaração, previsto e punível pelo artigo 323.°, n.° 1, do Código Penal, por remissão do artigo 97.°, n.° 2, do Código do Notariado.
Inconformada com o acórdão condenatório, dele vem recorrer com os fundamentos que esgrime na sua motivação e condensa nas respectivas conclusões. São três as questões que coloca em sede de recurso: violação do princípio do contraditório, erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação, sendo que, quanto às duas primeiras destas questões, tem o acompanhamento do Ministério Público na sua resposta.
Vejamos, começando naturalmente pela questão da violação do princípio do contraditório.
É exacto, conforme vem alegado, que a recorrente acabou por ser punida – bem ou mal não está agora em causa – por um crime diverso daquele que lhe vinha imputado. E, posto que a moldura legal do crime para que se operou a convolação seja inferior à do crime imputado na acusação, afigura-se que a diversidade dos tipos, dos bens protegidos e dos respectivos elementos constitutivos, impunham a observância do contraditório, mediante prévia advertência do arguido para essa hipótese de alteração, por forma a possibilitar-lhe a restruturação ou reorganização da sua defesa. É este o entendimento doutrinário e jurisprudencial que se vem sedimentando em Macau, apesar da inexistência de norma expressa sobre o assunto, conforme se pode constatar, v.g., em “Anotação e Comentário ao Código de Processo Penal de Macau”, de Leal-Henriques, a fls. 709 e seguintes do volume II, e nos acórdãos do Tribunal de Última Instância tirados nos processos 8/2001 e 6/2003.
Ademais, e para além da mudança operada relativamente à qualificação e integração típica dos factos constantes da acusação, a decisão tomou em conta um facto não invocado nem descrito na acusação, qual seja o do levantamento e utilização unilateral de todo o dinheiro que o falecido possuía na sua conta bancária, o que configura uma alteração não substancial dos factos, que igualmente demandava a comunicação à arguida e, caso fosse requerido, o tempo indispensável à preparação/adequação da sua defesa, nos termos do artigo 339.°, n.° 1, do Código do Processo Penal.
Em qualquer dos casos, sai violado o princípio do contraditório, por falta de audição da arguida antes da tomada de decisão sobre matéria que pessoalmente a afecta, com a inerente nulidade, traduzida em omissão de diligência que, por poder influir no exame e discussão da causa, não pode deixar de se reputar essencial para a descoberta da verdade – artigos 50.°, n.° 1, alínea b), 339.°, n.° 1, e 107.°, n.° 1, alínea d), do Código do Processo Penal.
Daí que se imponha a invalidação de quanto se processou após a produção de prova, nomeadamente alegações orais, encerramento da discussão e acórdão recorrido, devendo a audiência ser retomada para ser facultado o preterido exercício do contraditório, seguindo-se os posteriores termos da audiência e do processo – artigo 109. ° do Código do Processo Penal.
Ante o exposto, deve, na procedência da invocada violação do contraditório, e com prejuízo do conhecimento dos demais vícios, conceder-se provimento ao recurso, anulando-se o processado posterior à produção de prova e mandando-se retomar a audiência para os fins supra assinalados”; (cfr., fls. 380 a 381).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 240 a 241, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Insurge-se a arguida ora recorrente contra o Acórdão do T.J.B. que a condenou como autora de 1 crime de “falsificação de declaração”, p. e p. pelo art. 97°, n.° 2 do Código do Notariado e art. 323°, n.° 1 do C.P.M., fixando-lhe a pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por igual período.

E, mostrando-se-nos de acompanhar o sentido do douto Parecer que se deixou transcrito, imperativa é a procedência do recurso por evidente violação do direito ao contraditório da arguida ora recorrente.

Vejamos, (muito não se mostrando de consignar).

Pois bem, nos termos do art. 360° do C.P.P.M.:

“1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 355.º; ou
b) Que condenar por factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 339.º e 340.º
2. As nulidades da sentença são arguidas ou conhecidas em recurso, podendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo 404.º”.

E, nesta conformidade, atento o prescrito na alínea b) do transcrito comando legal, à vista está a solução.

Com efeito, in casu, e como bem se nota no transcrito Parecer evidente é que se procedeu a uma “alteração da qualificação jurídico-penal (constante da acusação)”, condenando-se a arguida como autora de um outro tipo de crime, sem que à mesma se tenha efectuado oportuna – prévia – comunicação para, no exercício do contraditório, se defender ou requerer prazo para o fazer (como estatuído é no art. 339° do mesmo C.P.P.M.).

E, tal “omissão” (de prévia comunicação à arguida com consequente violação do seu direito de defesa e ao contraditório), acarreta, necessáriamente, a nulidade prevista no citado art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M..

De facto, como estatui o art. 3°, n.° 3 do C.P.C.M. – aqui aplicável por força do art. 4° do C.P.P.M. – “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

E, como sobre questão semelhante – em relação à “alteração da qualificação jurídica” já se pronunciou o Vdo T.U.I.:

“I – A questão da alteração da qualificação jurídica da acusação para a sentença, em processo penal, não está regulada expressamente no Código de Processo Penal.
II – À alteração da qualificação jurídica deve aplicar-se, por analogia, o disposto no n.º 1, do art.º 339.º do Código de Processo Penal, devendo o juiz comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
III – Quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada o juiz tem sempre de observar o contraditório.
IV – Nas hipóteses de a alteração implicar a aplicação de penalidade igual ou inferior à que constava da acusação, em regra, será necessário proceder à comunicação da alteração ao arguido, visto que a estratégia de defesa estruturada para determinada configuração jurídica, não valerá para outra, mesmo que para infracção menos grave.
V – Não será de proceder à comunicação quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação, ou seja, de um modo geral, sempre que entre o crime da acusação ou da pronúncia e o da condenação há uma relação de especialidade ou de consunção e a convolação é efectuada para o crime menos gravoso.”; (cfr., os Acs. de 18.07.2001, Proc. n.° 8/2001 e de 09.07.2003, Proc. n.° 11/2003).

No mesmo sentido, e mais recentemente, pronunciando-se sobre idêntica nulidade considerou a Relação de Lisboa que a mesma tinha como “(…) pressuposto que o arguido seja surpreendido, na decisão final, com uma condenação por crime diverso daquele que lhe era imputado na acusação, relativamente ao qual não teve oportunidade de organizar a sua defesa. Ou seja, são visadas aquelas situações em que, após encerramento da audiência de julgamento, o tribunal profere uma decisão surpresa quanto à qualificação jurídica dos factos provados, condenando o arguido por um crime diferente do imputado”; (cfr., o Ac. de 05.04.2016, Proc. n.° 181/13, in “www.dgsi.pt”).

No caso, e como já se referiu, e ainda que em nossa opinião, a alteração em causa tenha tão só incidido na “qualificação jurídica” existente na acusação – já que os alegados “factos novos”, foram pela arguida, na sua defesa, trazidos, não se devendo ou podendo assim considerar que foi surpreendida em relação aos mesmos, sobre a questão da “inclusão de factos novos”, pode-se ver também o Ac. deste T.S.I. de 17.05.2012, Proc. n.° 713/2011 e de 22.11.2012, Proc. n.° 707/2012 – esta “alteração de direito” com evidente prejuízo para o direito de defesa da ora recorrente, implica a conclusão a que se chegou, impondo-se concluir pela verificação da arguida nulidade.

Decisão

4. Pelo exposto, acordam conceder provimento ao recurso, devendo os autos voltar ao Tribunal recorrido para, após adequada tramitação, e nada obstando, proferir-se nova decisão.

Sem tributação.

Macau, aos 05 de Maio de 2016

(Relator)
José Maria Dias Azedo

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng

(Segunda Juiz-Adjunta)
Tam Hio Wa
Proc. 269/2016 Pág. 4

Proc. 269/2016 Pág. 3