Processo nº 326/2016 Data: 12.05.2016
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Acidente de viação.
Incapacidade permanente parcial.
“Dano biológico”.
Danos não patrimoniais.
Indemnização.
Equidade.
SUMÁRIO
1. O “dano corporal”, lesivo da saúde, (“dano biológico”), está na origem de outros danos, (“danos – consequência”), designadamente, aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho.
2. Este dano por “perda de capacidade” ou “incapacidade”, e que tem assim a natureza de “dano patrimonial”, é distinto e autónomo do “dano não patrimonial” que se reconduz à dor, desgosto e sofrimento de uma pessoa que se sente fisicamente diminuída para toda a vida.
3. Quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, não deve caber ao Tribunal ad quem a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, devendo centrar a sua censura na verificação dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo de equidade tendo em conta o “caso concreto”.
O relator,
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Processo nº 326/2016
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. de 26.02.2016 decidiu-se:
–– (quanto à “acção crime”)
- condenar a arguida A, como autora de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p. e p. pelo art. 142°, n.° 3 e 138°, al. c) do C.P.M. e art. 93° da Lei n.° 3/2007, na pena de 1 ano e 9 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos; e,
–– (quanto à “acção civil”)
- condenar a demandada civil “B, LIMITED”, (B有限公司), a pagar ao demandante C, a quantia total de MOP$689.210,46 e juros; (cfr., fls. 237 a 245-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada com o decidido veio a referida demandada seguradora recorrer.
Motivou para, a final, produzir as conclusões seguintes:
“1 – A recorrente insurge-se com o montante atribuído ao requerente a título de compensação pela sua incapacidade parcial permanente e a título de danos morais por este sofridos;
2 – No que toca à compensação atríbuida pela incapacidade parcial permanente do ofendido a recorrente insurge-se pois a indemnização que lhe foi atribuída foi contabilizada aritméticamente sem ter sido feita prova de que aquela, aliás mínima, incapacidade de 2% lhe tinha, por alguma forma, trazido prejuízos ou feito diferença no desempenho do seu trabalho ou no salário auferido por este;
3 – Ora, não lhe fazendo diferença, não se justifica que o requerente seja compensado a este título, uma vez que, se for pelo facto de sentir tristeza, dores ou incómodos se encontra já compensado através da indemnização que lhe for concedida a título de danos morais;
4 – E, mesmo que mesmo que se considerasse, com o que se discorda, que se deveria atríbuir uma indemnização com base nos critérios utilizados para os acidentes de trabalho então o cálculo efectuado não estaria correcto;
5 – Pois, de acordo com o estabelecido no artigo 47° n° 1 alínea c) ponto 4° do Decreto-Lei n° 40/95/M de 14 de Agosto a compensação a atribuir será uma indemnização de um capital correspondente à percentagem da desvalorização aplicada sobre 108 vezes a retribuição-base mensal uma vez que o trabalhador tinha, na altura do acidente, 39 anos de idade;
6 – Ou seja, de acordo com a contabilização acima descrita a indemnização a atribuir deveria ter sido no valor de MOP$28.054,18 (MOP$12.988,05x 108x 0,02);
7 – No que diz respeito ao montante atríbuido a título de danos morais a recorrente considera que o acordão recorrido peca, por total e completa ausência de fundamentação, do motivo porque foi concedido ao ofendido o montante de MOP$500.000,00;
8 – O montante arbitrado a este título deveria tê-lo sido com base em critérios de justiça e equidade, em face das circunstâncias dadas por assentes no texto da decisão recorrida, aos valores constantes da jurisprudência da R.A.E.M. e à luz dos critérios previstos nos artigos 487° e 489° do Código Civil, o que não aconteceu nos presentes autos, violando por isso o douto Acordão o disposto nas identificadas normas legais;
9 – O valor atribuido aos danos não patrimoniais deverá ser reduzido para uma quantia que se situe à volta das MOP$200.000,00, atendendo aos danos efectivamente sofridos pelo lesado;
10 – O valor encontrado pelo douto colectivo é demasiado elevado comparativamente aos valores correntemente atribuidos em situações semelhantes – sendo, até, igual aos valores atríbuidos pela perca da vida humana – pelo que não deverá ser mantido”; (cfr., fls. 256 a 276).
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Respondeu o demandante pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 279 a 281-v).
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Adequadamente processados os autos e nada parecendo obstar, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 238-v a 241, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem a demandada seguradora recorrer do segmento decisório ínsito no Acórdão prolatado pelo T.J.B. com o qual foi a mesma a condenada a pagar ao demandante C, a quantia total de MOP$689.210,46 e juros.
E, como resulta das suas conclusões – que se deixaram transcritas e que, como sabido é, delimitam as questões a conhecer por este T.S.I. – pretende a alteração do segmento decisório recorrido em 2 aspectos:
- quanto à “indemnização pela incapacidade parcial permanente”; (cfr., concl. 1ª a 6ª), e,
- quanto à “indemnização pelos danos não patrimoniais” do demandante; (cfr., concl. 7ª a 10ª).
–– Vejamos, começando pela “incapacidade parcial permanente”.
Pois bem, como indemnização por tal incapacidade do demandante fixou o T.J.B. o quantum de MOP$81.045,43.
Diz – em síntese – a recorrente, que não se devia fixar nenhuma indemnização ou, subsidiáriamente, que a mesma devia ser de MOP$28.054,18.
Não nos parece que tenha razão.
Como se decidiu no douto Acórdão do Vdo T.U.I. de 25.04.2007, Proc. n.° 20/2007, “A perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial ou total é indemnizável, ainda que o lesado mantenha o mesmo salário que auferia antes da lesão”, consignando-se aí igualmente que “No cômputo da indemnização por perda da capacidade de ganho por incapacidade permanente parcial, o tribunal deve atender ao disposto no n.º 5 do art. 560.º do Código Civil, bem como recorrer à equidade, nos termos do n.º 6 do art. 560.º do mesmo Código”.
Mostrando-se de acompanhar o assim entendido, “quid iuris”?
Afigura-se-nos porém adequado umas breves considerações sobre a questão.
O dano é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de certo facto, nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar.
Pode revestir “a destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea” (dano real) ou ser “reflexo do dano real sobre a situação patrimonial do lesado” (dano patrimonial); (vd., A. Varela, in “Das Obrigações em Geral”, Vol. I, pág. 598).
Dentro do “dano patrimonial”, cabem e são indemnizáveis, o dano “emergente” – o prejuízo causado nos bens ou nos direitos existentes na titularidade do lesado – e os “lucros cessantes” – os benefícios que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito e a que ainda não tinha direito na data da lesão.
Nos termos do n.° 2 do art. 558° do C.C.M., na fixação da indemnização, pode o tribunal atender ainda aos “danos futuros”, desde que previsíveis.
Dispõe também o art. 556° do mesmo C.C.M. – onde se consagra o “princípio da restauração natural” – que a indemnização deve reconstituir a situação anterior à lesão, isto é, a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Não sendo possível essa “reconstituição natural” – como não o é em casos como o dos autos, em que não pode devolver-se ao lesado a capacidade e integridade física que tinha antes do acidente – a indemnização deve ser fixada em dinheiro, (art. 560°, n.° 1), e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem os danos, (art. 560°, n.° 5).
Aqui chegados, voltemos à reclamada indemnização por “incapacidade permanente parcial do ora recorrente”.
Ora, o “dano corporal”, lesivo da saúde, (“dano biológico”), está na origem de outros danos, (“danos – consequência”), designadamente, aqueles que se traduzem na perda total ou parcial da capacidade de trabalho.
Como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.° 99/12, “O dano biológico consubstancia uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, sendo que, estando em causa a incapacidade para o trabalho, o mesmo existe haja ou não perda efectiva de proventos laborais”, afirmando aí mesmo que: “(…) havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afetação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efetiva utilidade do seu corpo ao nível de atividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo.
E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização”; (in “www.dgsi.pt”).
Porém, desde já se adianta que este dano por “perda de capacidade” ou “incapacidade”, e que tem assim a natureza de “dano patrimonial”, é distinto e autónomo do “dano não patrimonial” que se reconduz à dor, desgosto e sofrimento de uma pessoa que se sente fisicamente diminuída para toda a vida; (sobre esta “distinção” e “autonomia”, vd., v.g., o Ac. do S.T.J. de 03.03.2016, Proc. n.° 4931/11 e de 07.04.2016, Proc. n.° 237/13).
Dito isto, (e sendo assim de se confirmar a decisão em questão), importa agora ter presente que se tem entendido que quando o cálculo da indemnização haja assentado decisivamente em juízos de equidade, não deve caber ao Tribunal ad quem a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, devendo centrar a sua censura na verificação dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo de equidade tendo em conta o “caso concreto”; (cfr., v.g., os Acs. do S.T.J. de 05.11.2009, Proc. n.° 381, de 10.10.2013, Proc. n.° 643 e de 20.11.2014, Proc. n.° 5572, in “www.dgsi.pt”).
E, in casu, ponderando na factualidade provada, e nomeadamente, na percentagem da incapacidade em questão – 0.02 – e certo sendo que tem o ofendido cerca de 40 anos, tendo assim que suportar ainda esta “incapacidade” por um longo período de tempo, afigura-se-nos que excessivo não é o quantum fixado, nesta conformidade se confirmando a correspondente indemnização no montante de MOP$81.045,43.
Posto isto, na parte em questão, improcede o recurso.
–– Continuemos, passando agora para a “indemnização por danos não patrimoniais”.
Ora, sobre tal matéria tem este T.S.I. entendido que a indemnização por “danos não patrimoniais” que “tem como objectivo proporcionar um conforto ao ofendido a fim de lhe aliviar os sofrimentos que a lesão lhe provocou ou, se possível, lhos fazer esquecer.
Visa, pois, proporcionar ao lesado momentos de prazer ou de alegria, em termos de neutralizar, na medida do possível, o sofrimento moral de que padeceu”, (cfr., v.g., o Ac. de 15.05.2015, Proc. n° 26/2014 e de 14.04.2016, Proc. n.° 238/2016), sendo também de considerar que em matérias como as em questão, inadequados são “montantes simbólicos ou miserabilistas”, (vd., M. Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, II, Direito das Obrigações, III, pág. 755, onde se afirma que “há que perder a timidez quanto às cifras…”), não sendo igualmente de se proporcionar “enriquecimentos ilegítimos ou injustificados”, (cfr., v.g., o Ac. de 21.05.2015, Proc. n.° 405/2015 e de 14.04.2016, Proc. n.° 238/2016), exigindo-se aos tribunais, com apelo a critérios de equidade, um permanente esforço de aperfeiçoamento atentas as circunstâncias (individuais) do caso.
Na verdade, a reparação dos “danos não patrimoniais” não visa uma “reparação directa” destes, pois que estes – “danos não patrimoniais” – são insusceptíveis de serem contabilizados em dinheiro, sendo pois que com o seu ressarcimento se visa tão só viabilizar um lenitivo ao lesado, (já que é impossível tirar-lhe o mal causado).
Trata-se de “pagar a dor com prazer”, através da satisfação de outras necessidades com o dinheiro atribuído para compensar aqueles danos não patrimoniais, compensando as dores, desgostos e contrariedades com o prazer derivado da satisfação das referidas necessidades.
Visa-se, no fundo, proporcionar à(s) pessoa(s) lesada(s) uma satisfação que, em certa medida possa contrabalançar o dano, devendo constituir verdadeiramente uma “possibilidade compensatória”, devendo o montante de indemnização ser proporcionado à gravidade do dano, ponderando-se na sua fixação todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida; (cfr., v.g., o Ac. de 21.05.2015, Proc. n.° 405/2015 e de 14.04.2016, Proc. n.° 238/2016).
Porém, e como sabido é, o C.C.M., não enumera os “danos não patrimoniais”, confiando ao Tribunal o encargo de os apreciar no quadro das várias situações concretas e atento o estatuído nos seus art°s 489° e 487°; (em recente Ac. da Rel. de Guimarães de 19.02.2015, Proc. n.° 41/13, in “www.dgsi.pt”, consignou-se que “são de ponderar circunstâncias várias, como a natureza e grau das lesões, suas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas eventualmente sofridas e o grau de risco inerente, os internamentos e a sua duração, o quantum doloris, o dano estético, o período de doença, situação anterior e posterior da vítima em termos de afirmação social, apresentação e autoestima, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspectivas para o futuro, entre outras…”).
Nos temos do n.° 3 do art. 489° do dito C.C.M.: “o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 487.º; (…)”.
Por sua vez, prescreve o art. 487° deste mesmo Código que: “quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, pode a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”.
In casu, fixou o Tribunal a quo o quantum de MOP$500.000,00, e pede a recorrente a diminuição para o de MOP$200.000,00.
Ora, (mostrando-se de reafirmar a autonomia do “dano” em questão com a atrás referida “incapacidade”, e mantendo-se o que se afirmou em sede dos “juízos de equidade”), cremos que, também aqui, o recurso não merece provimento.
Com efeito, e como a própria recorrente não deixa de notar, o ofendido, em virtude do acidente e lesões que em consequência do mesmo sofreu “(…) precisou de 12 meses para se recuperar, (…), sofre de doença permanente e devido à fractura do ombro direito e das 5ª e 6ª costelas do lado direito poderá ter sequelas de disfunção da articulação do ombro direito.
O recorrido recebeu a cirurgia da fixação interna da fractura do ombro direito (…)”.
E, ponderando no exposto, e se ao mesmo se aliar as (provadas) dores e inconvenientes que sofreu e pelos quais teve que passar em virtude das lesões, tratamentos e (prolongada) recuperação, assim como o necessário desgosto pela diminuição da sua qualidade de vida por todo este período de 1 ano, (que se vai, de certa forma, prolongar em virtude de incapacidade parcial permanente que sofre), cremos que inflaccionado não está o quantum fixado.
Dest’arte, e outras questões não havendo a apreciar, resta decidir pelo não provimento do recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentes expostos, acordam julgar improcedente o recurso.
Custas do recurso a cargo da recorrente.
Registe e notifique.
Macau, aos 12 de Maio de 2016
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José Maria Dias Azedo
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Chan Kuong Seng
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Tam Hio Wa
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