Proc. nº 769/2015
Recurso Contencioso
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 12 de Maio de 2016
Descritores:
-Interdição de entrada na RAEM
-Presunção de inocência
-Fortes indícios
SUMÁRIO:
I. Não se aplica, na matéria de interdição de entrada em virtude de existirem fortes indícios da prática do crime, os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
II. Tem-se entendido haver fortes indícios da prática de crime quando, de acordo com os elementos probatórios recolhidos em determinada fase processual, se prevê que o agente terá muito provavelmente que ser condenado numa pena ou medida de segurança.
III. Se os indícios podiam existir na ocasião em que a situação foi detectada, eles podem vir a ser desmontados ou abatidos por revelação factual em contrário mais tarde, seja no próprio procedimento, seja no recurso contencioso, seja até noutro domínio, como o penal. O que queremos dizer é que a medida pode deixar de subsistir se, supervenientemente, se vier a apurar que, ou os indícios não eram fortes, ou desapareceram por prova em sentido diferente
IV. Indícios são factos que encaminham presuntivamente o intérprete para uma determinada realidade. E nesse sentido, os mesmos factos, enquanto subsistirem intocáveis, podem constituir indícios para efeitos administrativos e indícios diferentes para efeitos criminais.
V. Se não se provarem os factos que densificam a existência de fortes indícios de alguém ter cometido ou se preparar para o cometimento de um ilícito, o acto que aplica a medida de interdição padece de erro nos pressupostos de facto.
Proc. nº 769/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, casado, natural de Singapura, titular do Passaporte nº. EXXXXXXXB e residente em Singapura, xxx XX XX XX X, Sxxxxxx, recorrer contenciosamente do Despacho do Exmo. Senhor Secretário para a Segurança, datado de 11/05/2015, que decretou a sua “interdição de entrada na R.A.E.M. pelo período de 3 anos”.
Na petição inicial, formulou as seguintes conclusões:
«a) O presente é tempestivo e o recorrente tem legitimidade para a respectiva interposição;
b) O despacho recorrido é aquele que nega provimento ao recurso hierárquico e “concorda e manda proceder de acordo com a proposta” com o nº 298/2015-pº222.18, de 28/03/2015 exarada no processo em que é interessado o recorrente, decretando a sua “interdição de entrada na R.A.E.M pelo período de 3 anos”;
c) Alegadamente, “existem fortes indícios” de que o recorrente praticou o crime previsto no art.º 14º da Lei nº 17/2009 (“consumo de estupefacientes”);
d) Ora, o recorrente não praticou qualquer crime na R.A.E.M., pelo que o despacho recorrido é anulável por violação de lei e por falta de fundamentação;
e) Violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e, consequentemente, por erro nos pressupostos de direito, porquanto corresponde a uma violação do “princípio da presunção de inocência”;
f) Falta de fundamentação já que, ao concordar expressamente com a referida proposta - a qual, por isso, faz parte integrante do despacho recorrido - do mesmo não consta, por obscuridade, a motivação do acto.
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, anulado o Despacho recorrido, com todas as consequências legais.».
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A entidade recorrida apresentou contestação, pugnando pela improcedência do recurso, em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos para todos os devidos e legais efeitos.
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Ambas as partes apresentaram alegações facultativas, reiterando no essencial as respectivas posições anteriormente assumidas.
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O digno Magistrado do MP emitiu, na oportunidade, o seguinte parecer:
«Objecto do presente recurso contencioso é o despacho de 11 de Maio de 2015, da autoria do Exm.º Secretário para a Segurança, que interditou a entrada do recorrente A na Região Administrativa Especial de Macau pelo período de três anos. Fundou-se tal acto na existência de fortes indícios de que o recorrente incorrera no crime previsto no artigo 14.º da Lei 17/2009 (consumo ilícito ou cultivo, produção, fabrico, extracção, preparação, aquisição ou detenção ilícita, para seu exclusivo consumo pessoal, de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas) e nas disposições normativas conjugadas dos artigos 4.º, n.º 2, alínea 3), da Lei 4/2003 e 12.º, n.ºs 2, alínea 1), 3 e 4, da Lei n.º 6/2004.
O recorrente acha que o acto padece dos vários vícios de violação de lei que lhe imputa na sua petição de recurso (erro nos pressupostos de facto, violação do princípio da presunção de inocência e falta da devida fundamentação), no que é contraditado pela autoridade recorrida, cuja contestação afirma a legalidade do acto e se bate pela improcedência do recurso:
Vejamos, começando pelo vício de forma.
O despacho recorrido foi precedido de parecer e propostas, que apropriou e em que se apoiou. Desses elementos resulta claro que o recorrente foi encontrado numa determinada situação de facto, que está suficientemente concretizada, e que a Administração considerou indiciar fortemente a prática do crime previsto no artigo 14.º da Lei 17/2009. E resulta igualmente claro e expresso o quadro normativo a que a Administração recorreu para adoptar a medida de interdição em que se substancia o acto. Perante esta constatação, não se crê razoável imputar ao acto o arguido vício de forma. É evidente que um destinatário médio, em face do conteúdo do acto, fica a saber as razões de facto e de direito que levaram à aplicação da medida de interdição de entrada. E tanto basta para que o acto se deva ter por suficientemente fundamentado à luz do artigo 115.º do Código do Procedimento Administrativo. Aliás, do teor da sua petição de recurso, resulta claro que o recorrente compreendeu a motivação da decisão, ou seja, a razão que levou a Administração a decidir da forma como decidiu.
Questão diversa, e que se prende já com a substância do acto e com outro dos vícios que lhe vêm assacados, é a de saber se a fundamentação se mostra ou não correcta e pertinente à situação em causa, ou seja, se estavam ou não preenchidos os fortes indícios em que o acto se fundou, o que agora não vem ao caso.
Improcede o vício de falta ou insuficiência de fundamentação.
Também vem imputado ao acto o vício de violação da presunção de inocência.
Este princípio, consagrado na Lei Básica, tem especial acuidade em processo penal, em cujo Código também aparece previsto, significando que, até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, não devem recair sobre o arguido quaisquer juízos que pressuponham o efectivo cometimento dos factos delituosos, devendo até lá beneficiar da presunção de que é inocente.
Mas um tal princípio não pode ser levado ao ponto de impedir a própria investigação dirigida contra o arguido e a eventual dedução de uma acusação, pois isso seria a negação do próprio processo penal que lhe consagra esse estatuto de presumido inocente.
E se é assim em processo penal, também em sede de procedimento administrativo não podem os processos paralisar só porque o administrado beneficia da presunção de inocência. A ponderação, por parte da Administração, no exercício da sua actividade, da integração de conceitos ligados ao cometimento de crimes, como sejam os da existência de indícios ou de fortes indícios, em nada belisca a presunção de inocência dos arguidos. Tanto mais que é o próprio legislador quem, no âmbito do seu poder de conformação, comete à Administração essa incumbência de integração de conceitos, indispensável à actividade administrativa.
Improcede igualmente a invocada violação do princípio da presunção de inocência.
Por fim, resta abordar a questão do erro nos pressupostos de facto.
A Polícia Judiciária, adentro das suas competências de investigação e prevenção criminal, efectuou uma acção no clube nocturno “XX”, do xx Resort, tendo encontrado, numa das salas do clube, dois comprimidos de Nimetazepam e Ketamina com um peso total de 8,83 gramas. Nessa sala estavam 13 pessoas, entre as quais o ora recorrente.
A presença do ora recorrente nessa sala do clube nocturno é o único facto que lhe é atribuído. Não lhe foi imputado consumo, detenção ou qualquer tipo de intervenção na introdução daqueles produtos no local onde foram encontrados. O recorrente foi, no acto, instado a colaborar na obtenção de provas e nada foi encontrado em seu poder que o pudesse conotar com as substâncias apreendidas. Chegou até a fazer testes à urina, que nada apontaram quanto a uso de substâncias abrangidas pela Lei da Droga. Foi com base no auto policial, onde o recorrente aparece identificado por ter sido encontrado num local onde estavam muitas outras pessoas e onde foi apreendida droga, que o acto recorrido considerou existirem fortes indícios de que o recorrente se achava incurso no artigo 14.0 da Lei n.º 17/2009, sendo este o pressuposto de que se partiu para interditar a entrada do recorrente na Região Administrativa Especial de Macau por três anos.
Quid juris, quanto ao invocado erro nos pressupostos?
Cremos que a razão está do lado do recorrente.
Indícios são vestígios, marcas, provas, sinais, que, reportados a um crime, permitem formular um juízo de probabilidade de ter sido cometido um determinado tipo de ilícito criminal.
Todavia, para o caso que ora nos interessa, a lei não se basta com indícios. Tão pouco se basta com indícios suficientes, que, na definição do artigo 265.º, n.º 2, do Código do Processo Penal, são aqueles que respaldam uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança. Exige a existência de fortes indícios - cf. artigo 4.º, n.º 2, alínea 3), da Lei 4/2003.
Pois bem, em face do que ficou dito quanto à situação fáctica imputada ao recorrente, no que toca ao auto da Polícia Judiciária lavrado na sequência da rusga ao clube nocturno “XX”, nenhum indício existe, muito menos forte, de que o recorrente tenha praticado qualquer crime. E se dúvidas fossem permitidas a esse respeito, aí estaria o despacho de arquivamento do Inquérito para as desfazer.
É certo que, nas suas peças de contestação e alegações, a autoridade recorrida coloca a tónica da motivação do acto, não tanto nos indícios da prática de crime, mas nos indícios da preparação para a prática de crime, hipótese que também aparece contemplada na norma daquele artigo 4.º, n.º 2, alínea 3). No dizer de tais articulados, o recorrente e todos os demais presentes naquela sala do clube nocturno “XX” preparavam-se para consumir substâncias estupefacientes, no âmbito de uma “party drug”, detendo (todos) na sua posse uma quantidade definida de substâncias estupefacientes.
Não foi propriamente esta a motivação de facto em que assentou o acto recorrido. Este laborou, como se viu, na base da existência de indícios fortes da prática do crime previsto no artigo 14.º da Lei n.º 17/2009; não na hipótese de existência de fortes indícios de que o recorrente se preparava para cometer um crime. São pressupostos diferentes, há que reconhecê-lo. Todavia, a verificação desta última hipótese também não recolhe quaisquer indícios, muito menos os tais fortes indícios exigidos. Nada permite supor ou conjecturar que a droga fora levada para o local mediante acordo de todos os presentes e que estava destinada a ser consumida ali, também por todos. Repare-se que, se houvessem sido colhidos elementos indiciários, mesmo que apenas suficientes, em sede de Inquérito, que apontassem para esta hipotética comparticipação na detenção de droga, inerente à aventada “party drug” e ao pressuposto consumo colectivo, é óbvio que o Ministério Público teria que avançar para outra solução que não o arquivamento puro e simples do Inquérito. Nem a pertinente investigação efectuada no âmbito do Inquérito logrou colher esses indícios suficientes, muito menos eles transparecendo do auto da Polícia Judiciária já referido e tido em conta para sustentar os fortes indícios em que se louvou o acto recorrido.
Procede, assim, o suscitado vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto.
Termos em que, na procedência do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto, deve o recurso obter provimento, anulando-se o acto recorrido.».
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Cumpre decidir.
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II – Pressupostos processuais
O tribunal é absolutamente competente.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III – Os Factos
1 – O recorrente, que é nacional de Singapura, onde reside, encontrando-se de visita na RAEM, ao abrigo de uma autorização de permanência, no dia 9 de Janeiro de 2015, foi surpreendido pela Polícia Judiciária quando se encontrava no quarto nº V15 “XX”, nas instalações da XX Resorts, S.A., sitas no Cotai - Taipa, juntamente com outras 12 pessoas.
2 – No interior do referido quarto, foram encontradas substâncias estupefacientes, a saber duas cápsulas de Nimetazepam e 8,83 gramas de Ketamina.
3 – Também foram encontrados equipamentos (utensílios) apropriados para o consumo das aludidas substâncias estupefacientes.
4 – Foi então o recorrente notificado para se pronunciar em sede de audiência de interessados sobre a medida a aplicar-lhe, o que fez.
5 – Foi no procedimento proferida a seguinte proposta nº 298/2015:
«Proposta n.º 298/2015-Pº.222.18
Data: 28/03/2015
1. A (do sexo masculino), casado, nascido aos 11 de Outubro de 1967, em Singapura, da nacionalidade singapurense, filho do B e C, residente em: 101 XX XX XX X SINGAPORE (4xxxxx), portador do passaporte singapurense n.º EXXXXXXXB.
2. Aos 9 de Janeiro de 2015, a PJ interceptou 13 indivíduos no quarto V15, XX, no XX Macau (incluindo A), e encontrou drogas no quarto (dois comprimidos de “Erimin 5” e Ketamina, de 8,83 gramas no total) e utensílios de consumo. Depois da investigação da PJ, A violou o art.º 14.º da Lei n.º 17/2009, sobre o consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas. Contra ele foi feita denúncia criminal pela PJ.
3. Pelo motivo acima indicado, se no futuro A puder vir a Macau, constituirá perigo à ordem e segurança pública do Território. Nos termos legais vigentes, pode-se tomar a medida de interdição da entrada em Macau ao A.
4. Nos termos do art.º 93.º do Código do Procedimento Administrativo, aos 13 de Fevereiro de 2015, este CPSP já informou A, através da carta registada com aviso de recepção, de que as autoridades administrativas pretendem proibir-lhe a entrada na RAEM pelo prazo que se considera apropriado. Ele pode alegar os assuntos que se acham próprios por escrito no prazo de 40 dias a contar do dia seguinte àquele da colocação do carimbo postal do envio da carta. Mais tarde, aos 25 de Março de 2014, este CPSP recebeu as alegações escritas feitas pelo advogado DR. PEDRO LEAL, mandatário do A, sobre essa medida de proibição de entrada.
5. Segundo o conteúdo da correspondência, o advogado DR. PEDRO LEAL afirmou que o seu representado nunca consumiu drogas em Macau ou em outros lugares, nem tem o hábito de consumir drogas. Aos 9 de Janeiro de 2015, quando estava a entreter-se no XX, XX Macau, o representado dele foi preso e levado à I polícia para ser investigado, sem saber a razão. Mais tarde, o representado dele passou pelo exame de urina, o resultado do exame das drogas relacionadas foi negativo. O representado dele não sabe quem consumiu drogas no sítio acima mencionado e quando, nem sabe a origem das drogas. Nestes termos, ele espera que este CPSP não tome a medida de proibição da entrada no Território ao seu representado.
6. Portanto, a fim de precaver a entrada em Macau do A de novo para cometer crimes, nos termos do art.º 4.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003, conjugado com o art.º 12, n.º 2, alínea 1), n.º 3, n.º 4 da Lei n.º 6/2004, propôs-se tomar a medida de proibição de entrada em Macau ao A.
7. À decisão superior.
O chefe da Secção de Processamento e Tratamento de Notícias,
D (ass.: vd. o original)
Chefe n.º 1xx xxx»
6 – O Director do Departamento proferiu a seguinte informação:
«1. Segundo informa o resultado da investigação da PJ, existem fortes indícios mostrando que A violou o art.º 14.º da Lei n.º17/2009, sobre o consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas. Contra ele foi feita denúncia criminal pela PJ e o caso foi remetido ao MP para ser processado.
2. Como existem fortes indícios que mostram que o indivíduo acima mencionado cometeu crime em Macau, nos termos do art.º 4.º, n.º 2, alínea 3) da Lei n.º 4/2003, conjugado com o art.º 12, n.º 2, alínea 1), n.º 3, n.º 4 da Lei n.º 6/2004, propôs-se ao Sr. Secretário para a Segurança interditar a sua entrada na RAEM no prazo de J. anos.
3. À consideração superior.
O director do Departamento de Informação,
(ass.: vd. o original)
- Aos 2 de Abril de 2015».
7 – O Comandante da PSO emitiu o seguinte parecer:
«Parecer:
- Concordo. À apreciação do Sr. Secretário para a Segurança.
O comandante do CPSP
(ass.: vd. o original)
Aos 15 de Abril de 2015»
8 – O Secretário para a Segurança proferiu o seguinte despacho:
«Concordo. Execute-se segundo a proposta.
11/05/2015
(ass.: vd. o original)»
9 – O inquérito instaurado contra o ora recorrente na sequência dos indícios sobre os factos supra referidos, foi arquivado por falta de indícios suficientes de que tenham praticado actos ilícitos (fls. 11 e sgs. do apenso “traduções”)
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IV – O Direito
1 – Do vício de forma por falta de fundamentação
Na óptica do recorrente o acto em crise padece de falta de fundamentação, na medida em que, na proposta de que ele se apropriou, nada consta sobre a sua motivação, tornando-o assim obscuro.
Não tem razão. A proposta é tão clara e cristalina acerca dos factos e das razões de direito que estiveram na base da aplicação da medida de interdição decretada, que não fica nenhum espaço para a mais pequena dúvida sobre o que esteve em causa.
Aliás, o recorrente esteve bem ciente da fundamentação e do iter cognoscitivo do acto, pois não apenas teve oportunidade de apresentar resposta escrita em audiência de interessados, como formular a petição de recurso, uma e outra sem a mais leve sombra de dúvida ou hesitação.
Logo, por não ter sido desrespeitado o disposto nos arts. 114º e 115º do CPA, temos que concluir que se não verifica o aludido vício.
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2 – Do vício de violação de lei, por atentado ao princípio da presunção de inocência.
Parece o recorrente querer dizer que, por se presumir inocente até ao trânsito em julgado em processo penal que o condene pela prática de um ilícito criminal, não poderia ver contra si praticado um acto ablativo como este que aqui sindicou.
Como é bom de ver, e toda a gente sabe, o princípio universal de presunção de inocência tem o seu campo privilegiado de actuação no processo penal. No processo penal, este princípio acompanha o arguido até ao seu termo, a ponto de se poder dizer que ele (princípio) só é abandonado perante uma sentença final e devidamente transitada que o reconheça culpado e o condene pela prática de um crime.
Todavia, assim como no processo penal e até esse momento definitivo, o arguido não pode libertar-se dos indícios que sobre si impendem – pois caso não existissem, nem sequer teria a condição de arguido – assim também não pode noutros foros (v.g., administrativo) escapar aos mesmos ou idênticos indícios de prática do mesmo ilícito. Ou seja, se estamos a falar simplesmente de indícios, o mesmo indivíduo carrega sobre si essa condição, qualquer que seja a natureza do processo em que eles tenham relevância. Não podem ter importância num e perdê-la noutro.
O problema, portanto, não é esse. Ponto é saber-se se noutro foro os mesmos indícios podem ter uma consequência autónoma e independente daquele que anda, geralmente, associado a outro.
Ora, os tribunais de Macau têm dito que “Com a previsão, como pressuposto da interdição de entrada, de existência de “fortes indícios” da prática do crime, não se pode falar na aplicação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, já que a exigência legal, tão só, de fortes indícios se opõe logicamente à ideia de comprovação de prática do facto ilícito.
Não se aplica, na matéria de interdição de entrada em virtude de existirem fortes indícios da prática do crime, os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo» (Ac. TUI, de 19/11/2014, Proc. nº 28/2014).
Por isso, “A recusa de entrada na RAEM de não-residentes não está ligada à questão de saber se lhe deve ser aplicada alguma pena ou medida de segurança, enquanto reacção pública ao crime, caso em que terá sempre que ter em linha de conta o princípio da presunção de inocência, mas sim estamos no âmbito do exercício da actividade administrativa, em que a Administração terá o dever e o cuidado de tomar decisões destinadas a satisfazer interesses públicos. A medida de interdição fundada na existência de fortes indícios de o indivíduo ter praticado ou de se preparar para a prática de quaisquer crimes está condicionada pela existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM.
Tem-se entendido haver fortes indícios da prática de crime quando, de acordo com os elementos probatórios recolhidos em determinada fase processual, se prevê que o agente terá muito provavelmente que ser condenado numa pena ou medida de segurança. (Ac. TSI, de 22/10/2015, Proc. nº 267/2014).
No caso em apreço, a interdição de entrada do recorrente foi determinada com fundamento nas disposições conjugadas dos art.ºs 12.º n.º 2, al. 1), nº3 e 4 da Lei n.º 6/2004 e 4.º n.º 2, al. 3) da Lei n.º 4/2003.
Ora, a al. 3) do n.º 2 do art.º 4.º da Lei n.º 4/2003 alude expressamente à mera circunstância de “existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes”.
Por conseguinte, basta a mera existência de “fortes indícios” quanto à prática ou à preparação para a prática de crimes, para que a Administração logo possa decretar a interdição de entrada, alicerçada então na existência de perigo efectivo para a segurança ou ordem públicas da RAEM (nº3, do cit.. art. 12º).
E como tem sido reconhecido, “A constatação da existência de fortes indícios de o recorrente ter praticado crime insere-se nos poderes discricionários da Administração, não sindicável pelos tribunais, salvo havendo erro grosseiro e manifesto” (Ac. TSI, de 29/10/2015, Proc. nº 94/2015).
Portanto, os elementos do procedimento levaram as autoridades competentes a concluir que, na situação concreta detectada – grupo de 13 pessoas juntas numa sala de um clube nocturno, na posse de dois comprimidos de Nimetazepam e Ketamina – havia indícios de que se preparavam para consumo e, portanto, para a prática de um ilícito.
Para a Administração havia indícios! E, como é sabido, para a aplicação da medida não era necessário que cada um dos referidos indivíduos viesse a ser punido criminalmente, já que “Não se torna necessário que os factos demonstrem inequivocamente o cometimento de um crime definitivamente julgado, bastando a existência dos referidos indícios para que a norma do art. 4º, nº2, al. 3), da Lei nº 4/2003 se possa aplicar, “ex vi” art. 12º, nº3, da Lei nº 6/2004” (cit. Ac. do TSI, Proc. nº 94/2015).
Com efeito, “Ao contrário do que sucede com a alínea 2), do nº2, do art. 4º da Lei 4/2003, em que se torna necessário um crime “julgado”, na alínea 3), desse número basta a existência de meros indícios de um crime “praticado”.” (Ac. TSI, de 18/04/2013, Proc. nº 647/2012).
Neste sentido, a aplicação da medida, não colide com o aludido princípio de presunção de inocência.
Mas, como se verá já a seguir, se os indícios podiam existir na ocasião em que a situação foi detectada, eles podem vir a ser desmontados ou abatidos por revelação factual em contrário mais tarde, seja no próprio procedimento, seja no recurso contencioso, seja até noutro domínio, como o penal. O que queremos dizer é que a medida pode deixar de subsistir se, supervenientemente, se vier a apurar que, ou os indícios não eram fortes, ou desapareceram por prova em sentido diferente.
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3- Do vício de erro sobre os pressupostos de facto
Este vício, como é sabido, enquanto vício autónomo, encontra a sua mais profunda justificação no âmbito da actividade discricionária. Quando a actividade é vinculada, o erro sobre os pressupostos significará que a Administração erra a aplicação do direito por se basear em factos inverídicos; Nessa situação, o vício será o de violação de lei.
No caso em apreço, a actividade é discricionária, face ao disposto no art. 4º, nº2, al. 3), da Lei nº 4/2003, em conjugação com o art. 12º, nº2, al. 1) e nºs 3 e 4 da Lei nº 6/20042. Ou seja, por haver fortes indícios de haver cometido os apontados ilícitos, a Administração aplicou a referida medida, quando a podia não ter aplicado.
Sendo assim, apreciemos autonomamente o referido vício de erro sobre os pressupostos de facto, nesta perspectiva autónoma e não na de violação de lei.
Ora, por um lado, acontece que o recorrente sempre se mostrou inconformado no procedimento com a medida que lhe foi aplicada; e, por outro, o processo judicial onde a investigação foi feita não foi conclusiva, tendo levado ao arquivamento por falta de indícios suficientes.
Indícios são factos que encaminham presuntivamente o intérprete para uma determinada realidade. E, nesse sentido, os mesmos factos, enquanto subsistirem intocáveis, podem constituir indícios para efeitos administrativos e indícios diferentes para efeitos criminais. Daí que se perceba o alcance das normas administrativas que temos entre mãos.
Só que o foro penal onde estes indícios (factos) foram apurados para efeitos criminais concluiu que eles (os factos) não eram concludentes e suficientes para incriminarem o recorrente e o levarem, sequer, a uma acusação.
E, na verdade, como é possível dizer que A, só por se encontrar num grupo amigos consumindo vodka, também está a ingerir essa bebida, se ninguém o viu beber, ou se até se se vier a demonstrar que não “bebe álcool”, por não gostar simplesmente, ou por estar impedido de o fazer por alguma razão física-orgânica?!
E, por identidade de razões, como é possível dizer que B, num grupo de 13 pessoas, numa sala pública de um clube nocturno, está a consumir - ou que se preparava para consumir - parte da droga encontrada a algum outro dos indivíduos do grupo?!
Neste segundo exemplo – que corresponde ao do presente processo – pode admitir-se, numa primeira abordagem, que os indícios podem apontar no sentido de uma eventual resposta afirmativa à questão. Meros indícios, que não são, porém, fortes! Diferente seria, se a droga viesse a ser encontrada num quarto de hotel onde o indivíduo C está hospedado sozinho. Aí, não custa admitir que se esteja em presença de fortes indícios. Já não é fortemente plausível – ou necessariamente plausível – que dois comprimidos de “Erimin 5 “ e “Ketamina” encontrados a alguém do grupo sirvam para utilização por todos os membros do grupo. Quer dizer que os elementos do procedimento não chegam para densificar a noção do conceito indeterminado de “fortes indícios”, necessária ao preenchimento, por seu turno, da densificação do “perigo para a segurança e ordem públicas da RAEM”.
E a demonstração de que não eram fortes os indícios está na circunstância de nem sequer o Ministério Público, após a investigação levada a cabo, os ter considerado suficientes para, contra ele, deduzir uma acusação, levando-o antes a arquivar o inquérito.
Não é este TSI que está a concluir que inexistiam “ab initio” quaisquer indícios, nem razões para a aplicação da medida naquele momento; o que o este tribunal está a fazer é um exercício superveniente de lógica a partir dos dados recolhidos dos autos, entre os quais o arquivamento do inquérito. Ou seja, não existem elementos seguros e comprovados de que o recorrente se preparava para cometer um ilícito e, portanto, também não se pode aceitar que a sua presença em Macau constitua um perigo para a ordem e segurança pública.
Neste sentido, a medida não pode manter-se, por não se verificarem os respectivos pressupostos de facto.
Procede, pois, este vício.
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V – Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso contencioso, anulando o acto impugnado.
Sem custas.
TSI, 12 de Maio de 2016
José Cândido de Pinho
Fui Presente Tong Hio Fong
x Lai Kin Hong
Mai Man Ieng
769/2015 20