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Processo n.º 23/2016
Recurso penal
Recorrente: A
Recorrido: Ministério Público
Data do acórdão: 22 de Junho de 2016
Juízes: Song Man Lei (Relatora), Sam Hou Fai e Viriato Manuel Pinheiro de Lima

Assuntos: - Crime de tráfico de estupefacientes
- Erro notório na apreciação da prova

SUMÁRIO
Os vícios referidos nas várias alíneas do n.º 2 do art.º 400.º do Código de Processo Penal, mesmo verificados, devem ser decisivos e pertinentes para a decisão do caso concreto, caso contrário serão irrelevantes e não implicarão as consequências legais.

A Relatora,
Song Man Lei
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

1. Relatório
Por Acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base em 25 de Novembro de 2015, A (1.º arguida nos autos) foi condenado, pela prática de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p.p. pelo art.º 8.º n.º 1 da Lei n.º 17/2009, na pena de 7 anos de prisão.
Inconformado com a decisão, recorreu o arguido para o Tribunal de Segunda Instância, que decidiu negar provimento ao recurso.
Deste Acórdão continuou o arguido a recorrer para o Tribunal de Última Instância, onde a juíza-relatora do processo decidiu, por decisão sumária proferida ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 6 do art.º 407.º do Código de Processo Penal, rejeitar o recurso.
Vem agora o recorrente apresentar reclamação para a conferência, alegando que:
1. O argumento fulcral em que se baseia a rejeição do recurso é o de que será irrelevante o conhecimento do invocado erro notório na apreciação da prova, pois – no entendimento sufragado no despacho reclamado – a extirpação do facto que se pôs em causa, de que o arguido exercia a actividade (de tráfico de estupefacientes) desde Agosto de 2014, em nada influirá na determinação da medida da pena.
2. Na esteira deste entendimento, será inconsequente determinar se o reclamante apenas praticou um acto isolado de tráfico de estupefacientes ou se já se dedicava a esta actividade há algum tempo.
3. Começando por salientar o óbvio, se o facto fosse de todo irrelevante nunca teria sido reproduzido na acusação deduzida contra o reclamante no culminar da fase investigativa do inquérito, por simples desnecessidade.
4. Pelo contrário, a comprovação de tal facto é no mínimo reveladora de traços asténicos de uma personalidade tendencialmente desviante do agente e identificadora de um padrão comportamental anti-social.
5. A propagação da actividade no tempo, se bem que não configura um modo de vida do agente, alarma as expectativas comunitárias e faz disparar as necessidades contrafácticas da pena.
6. Diferentemente sucede se nos quedarmos com a demonstração da prática de um acto isolado, que não pode ser avaliado na sua gravidade da mesma forma, porque descortina – quando comparado com uma outra actuação mais frequente – uma personalidade muito mais facilmente recuperável e reinserível na sociedade, porque não reincidente.
7. O acórdão recorrido, aliás, afirma peremptoriamente que o facto do arguido se dedicar à actividade desde Agosto de 2014 é um dos pilares em que assenta a medida da pena determinada, a fls. 19 do acórdão recorrido: “De facto, ao crime em questão cabe a pena de 3 a 15 anos de prisão, e, como se vê, em causa não está apenas a “droga encontrada na posse do recorrente após a sua detenção”, (que também não corresponde ao que o mesmo alega ser), sendo de ter em conta que provado ainda está que efectuou uma transacção no valor de HKD$3,000.00 pouco antes de detido, (a 8.10.2014), e que igualmente se provou que já se vinha dedicando a esta actividade desde “Agosto de 2014” (carregado nosso)
8. Comparado com os outros factores que se acharam determinantes para achar a medida da pena, nem parece que a transacção de HK$3,000.00 (três mil dólares de Hong Kong) – quantia que não é elevada e cujo destino se desconhece – ou a quantidade de droga apreendida – temática que na motivação do recurso mais detalhadamente se explanou, designadamente na questão da medida da pena – sejam comparáveis ao facto de o reclamante ter-se alegadamente dedicado por um período contínuo de tempo à actividade que configura o tipo-de-ilícito.
9. O trecho do acórdão recorrido acima citado demonstra inequivocamente que o facto em disputa é com efeito extremamente relevante para o apuramento da responsabilidade e censurabilidade penal dos actos cometidos pelo arguido e, acima de tudo, para a determinação da medida da pena.
10. Se uma pena de sete anos de prisão foi determinada com base numa factualidade que pressuponha a realização plúrima e contínua do mesmo tipo de crime, não se pode atingir o mesmo resultado na busca de uma medida da pena justa quando se elimina tal repetição do substracto concreto da actuação, desde logo por uma simples questão de coerência.
11. Se analisarmos cruamente uma nova factualidade em que se comprova apenas a realização de um acto isolado de tráfico de estupefacientes – não esquecendo, como se salientou nas alegações de recurso, que os próprios agentes de investigação que depuseram na audiência de discussão e julgamento afirmaram com segurança que não encontraram na casa do reclamante quaisquer sinais que indiciassem a actividade de tráfico de droga – devemos incontornavelmente censurar a conduta do reclamante de uma forma muito menos gravosa, designadamente porque esta se despega de grande intensidade criminógena.

O Digo Procurador-Adjunto do Ministério Público pugna pela improcedência da presente reclamação.
Foram corridos vistos.

2. Factos provados
Nos autos foram dados como provados os seguintes:
1. Desde cerca de Agosto de 2014, o arguido A começava a praticar tráfico de estupefacientes em Macau.
2. No decurso do tráfico de estupefacientes, o arguido A usava, geralmente, o telemóvel, com o n.º XXXXXXXX, para contactar com as pessoas que pretendiam comprar estupefacientes.
3. Em 8 de Outubro de 2014, às 18h19, no exterior da entrada da [Sala de VIP] no [Hotel], o arguido A vendeu 3 sacos de “Ketamina” à arguida B, pelo preço de HKD3.000,00.
4. Posteriormente, o arguido A regressou ao seu domicílio, sito na [Endereço]. Naquele dia, às cerca das 20h15, o arguido A foi interceptado pelos agentes da PJ ao sair do edifício.
5. In loco, os agentes da PJ encontraram no bolso dianteiro do lado esquerdo das calças do arguido A 2 sacos de pós brancos e 6 sacos de objectos cristalizados transparentes (vide Auto de revista e apreensão, constante de fls. 13 dos autos).
6. Feito o exame laboratorial, confirmou-se que os supracitados 2 sacos de pós brancos continham a substância descrita na Tabela II-C, anexa à Lei n.º 17/2009, denominada por “Ketamina”, de peso bruto de 2,896 gramas (com conteúdo de pura “Ketamina” de 1,11 gramas, com o grau de pureza de 38,2%); e, os referidos 6 sacos de objectos cristalizados transparentes continham a substância descrita na Tabela II-B, anexa à mesma Lei, denominada por “Metanfetamina”, de peso bruto de 3,962 gramas (com conteúdo de pura “Metanfetamina” de 2,71 gramas, com o grau de pureza de 68,5%).
7. Os estupefacientes em apreço foram adquiridos pelo arguido A a um indivíduo desconhecido. O aludido arguido adquiriu e deteve os estupefacientes destinados à venda ao terceiro, com vista a obter interesse pecuniário ilícito.
8. Após a intercepção do arguido A, os agentes da PJ efectuaram investigação na fracção arrendada pelo mesmo arguido, sita no [Endereço]. Na dada altura, o arguido C estava a sair dum quarto da referida fracção.
9. Os agentes da PJ realizaram busca no quarto onde estava o arguido C e encontraram, em cima da mesa baixa que estava colocada à beira da cama no quarto acima referido, 1 saco de objecto cristalizado transparente, 1 palhinha, 6 folhas de papel de alumínio e 1 garrafa plástica transparente que continha líquido (na tampa da garrafa estavam enfiados um recipiente de vidro e dois conjuntos de palhinhas) (vide Auto de busca e apreensão, constante de fls. 38 dos autos).
10. Feito o exame laboratorial, confirmou-se que o referido saco de objectos cristalizados transparentes continha a substância descrita na Tabela II-B, anexa à Lei n.º 17/2009, denominada por “Metanfetamina”, de peso bruto de 1,386 gramas (com conteúdo de pura “Metanfetamina” de 1,01 gramas, com o grau de pureza de 72,7%); as palhinhas e o papel de alumínio em apreço tinham vestígios da supramencionada “Metanfetamina”; o líquido contido na garrafa plástica em apreço também continha a substância de “Metanfetamina”, de volume bruto de 160 mililitros; a tampa, bem como o recipiente de vidro e as palhinhas enfiados na tampa tinham vestígios de “Metanfetamina”.
11. Os estupefacientes em apreço foram adquiridos pelo arguido C a um indivíduo desconhecido. O aludido arguido adquiriu e deteve os estupefacientes destinados ao consumo próprio.
12. As palhinhas, o papel de alumínio e a garrafa plástica montada em apreço eram utensílios para consumo de estupefacientes detidos pelo arguido C.
13. Em 8 de Outubro de 2014, às cerca das 21h15, os agentes da PJ interceptaram a arguida B na [Sala de VIP] no [Hotel].
14. In loco, os agentes da PJ encontraram no saco de mão da arguida B 1 nota de HKD10,00 manchada com pós, 1 nota de HKD1.000,00 manchada com pós, 1 nota de HKD100,00 manchada com pós, 2 sacos plásticos transparentes e 1 palhinha (vide Auto de revista e apreensão, constante de fls. 50 dos autos).
15. Feito o exame laboratorial, confirmou-se que as 3 notas, os sacos plásticos transparentes e a palhinha supramencionados tinham vestígios de “Ketamina”, descrita na Tabela II-C, anexa à Lei n.º 17/2009.
16. A arguida B usou as referidas notas e sacos plásticos transparentes para empacotar “Ketamina” que tinha sido comprada, anteriormente naquele dia, ao arguido A, pelo preço de HKD3.000,00.
17. A aludida palhinha era utensílio para consumo de estupefacientes detido pela arguida B.
18. No mesmo dia, no Edifício da PJ, os agentes da PJ encontraram na posse do arguido A 2 telemóveis acompanhados de cartões telefónicos (um deles com o n.º XXXXXXXX) e MOP600,00 (vide Auto de apreensão, constante de fls. 16 dos autos).
19. O telemóvel, com o n.º XXXXXXXX, era instrumento de comunicação utilizado pelo arguido A na prática do tráfico de droga, enquanto a importância em apreço era dinheiro obtido pelo mesmo na prática do tráfico de droga.
20. Os arguidos A, C e B agiram, de forma livre, voluntária e consciente, ao praticarem deliberadamente os actos em causa.
21. Os arguidos tinham perfeito conhecimento da natureza dos estupefacientes supramencionados.
22. Os supracitados actos dos arguidos não eram permitidos por lei.
23. Os arguidos sabiam perfeitamente que as aludidas condutas eram proibidas e punidas por lei.
*
Ficaram provados ainda os factos seguintes:
Conforme o certificado de registo criminal, os três arguidos não têm antecedentes criminais.
Declarou o 1º arguido que era aposentado, recebendo mensalmente uma pensão de cerca de MOP4.000,00, tinha a mãe a seu cargo e tinha como habilitações académicas o ensino secundário geral incompleto.
Declarou o 2º arguido no interrogatório feito no MºPº que não tinha receita, tinha uma filha a seu cargo e tinha como habilitações académicas o ensino universitário.
Declarou a 3ª arguida no interrogatório feito no MºPº que era modelo, auferindo um salário mensal de cerca de HKD20.000,00, não tinha encargo familiar e económico, e tinha como habilitações académicas o ensino secundário.

3. O direito
No seu recurso interposto para este Tribunal de Última Instância, sustenta o recorrente que o Tribunal de Segunda Instância incorreu no erro notório na apreciação da prova, uma vez que, face à prova produzida em audiência, não se pode dar por comprovado que ele exercia a actividade de tráfico desde Agosto de 2014, um facto que teve necessariamente uma repercussão negativa de forma muito acentuada no momento da determinação da medida da sua pena.
E pretende a redução da pena, pugnando pela aplicação de uma pena que se situe nos 4 anos de prisão.
Por decisão sumária de 28 de Abril de 12016, a juíza-relatora do processo decidiu rejeitar o recurso, considerando irrelevante a discussão sobre a verificação ou não do erro notório na apreciação da prova, já que, mesmo verificado, o vício imputado pelo recorrente não se revelaria essencial nem decisivo para a qualificação jurídica do crime e a determinação da pena concreta, não afectando uma nem outra, de forma substancial.
Atentas as circunstâncias do caso apuradas nos autos e o teor da decisão sumária ora reclamada, afigura-se-nos que não merece censura a decisão, que deve ser mantida.

Por um lado, é evidente que o facto sobre o qual se alega verificado o vício de erro notório na apreciação da prova (o recorrente exercia a actividade de tráfico desde Agosto de 2014), considerado provado ou não, não afecte em nada a qualificação jurídica dos factos praticados pelo recorrente.
Na realidade, nos autos ficou provado que o ora recorrente chegou a vender “Ketamina” à arguida B e na posse do recorrente foram também encontrados “Ketamina” (com peso líquido de 1,11 gramas) e “Metanfetamina” (com peso líquido de 2,71 gramas), todos destinados à venda a terceiros, com vista a obter interesse pecuniário ilícito.
Tais factos, não impugnados pelo recorrente, são suficientes para condenar o recorrente pelo crime de tráfico de estupefacientes, já que, tendo em conta a natureza dos estupefacientes em causa, a sua quantidade (superior à quantidade diminuta, relativamente a “Metanfetamina”) bem com a finalidade para que detinha o recorrente a droga, é de concluir pela bondade da qualificação jurídica do crime, que também não foi posta em causa pelo recorrente.

Por outro lado e quanto à determinação da pena concreta, achamos que a comprovação ou não do facto indicado pelo recorrente é, de igual modo, irrelevante.
Nos termos do art.º 40.º n.º 1 do Código Penal de Macau, a aplicação de penas visa não só a reintegração do agente na sociedade mas também a protecção de bens jurídicos.
E ao abrigo do art.º 65.º do Código Penal de Macau, a determinação da medida da pena é feita “dentro dos limites definidos na lei” e “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal”, tanto de prevenção geral como de prevenção especial, atendendo a todos os elementos pertinentes apurados nos autos, nomeadamente os elencados no n.º 2 do artigo.
No caso vertente, o crime pelo qual foi condenado o recorrente é punível com a pena de 3 a 15 anos de prisão.
Não resultam dos autos quaisquer circunstâncias que militem a favor do recorrente, com excepção de ser delinquente primário.
Decorre da factualidade provada que o recorrente, aposentado e com pensão estável e razoável, não é residente local e dedicou-se em Macau às actividades de tráfico da droga. Foi detido em flagrante delito, mas negou a prática do crime, declarando que foi ao pedido de um amigo que aceitou transportar “estimulantes”, ou seja, afrodisíacos para mulheres, atitude esta que não permite dizer que se encontrava o recorrente arrependido com a sua conduta e que houve confissão integral e sem reserva dos factos.
A factualidade assente revela que é muito intenso o dolo do recorrente e são graves os factos ilícitos.
No que tange às finalidades da pena, são prementes as exigências de prevenção geral, face à realidade social de Macau, onde se tem detectado problemas graves relacionados com o tráfico e consumo de estupefacientes, impondo-se prevenir a prática do crime em causa, que põe em risco a saúde pública e a paz social.
Ponderado todo o circunstancialismo apurado no presente caso (tomando em conta tão só aqueles factos provados não impugnados pelo recorrente), nomeadamente as circunstâncias referidas no art.º 65.º do Código Penal de Macau, não se nos afigura excessiva a pena de 7 anos de prisão aplicada ao recorrente, que foi encontrada dentro da moldura penal fixada para o crime em causa.
O facto de o recorrente exercer, ou não, a actividade de tráfico desde Agosto de 2014 também não se mostra relevante para a aplicação daquela pena concreta, não se descortinando como é que tal facto assume a pertinência pretendida pelo recorrente, no sentido de ter “necessariamente uma repercussão negativa de forma muito acentuada no momento da determinação da medida da sua pena”, na medida em que revela minimamente traços asténicos de uma personalidade tendencialmente desviante do agente e identifica um padrão comportamental anti-social.
Alega ainda o recorrente que no Acórdão recorrido foi peremptoriamente afirmado que o facto em causa foi um dos pilares em que assenta a medida da pena determinada.
Ora bem, é verdade que o arresto posto em crise fez, em último lugar dos elementos que ponderou na determinação da pena, referência àquele facto.
No entanto, tal ponderação não vincula, naturalmente, o tribunal de recurso.
Bem pode haver situações em que um tribunal considera importante um certo facto ou uma determinada circunstância, mas um outro tribunal entende que não, ou casos em que, mesmo sem contar com um facto ou circunstância considerada relevante pelo tribunal a quo, o tribunal a quem encontra a mesma pena que achar mais adequada para o caso concreto, como nos presentes autos.
E não se vislumbra aqui a violação do princípio de reformatio in pejus.

Concluindo, é de reafirmar que o facto indicado pelo recorrente não é essencial nem decisivo para a qualificação jurídica do crime em causa e a determinação da pena concreta, uma vez que, mesmo sem tomar em conta o facto, opera-se na mesma a qualificação jurídica e aplica-se a mesma pena concreta.
Daí que é irrelevante o vício invocado pelo recorrente, mesmo verificado.
É entendimento pacífico deste Tribunal de Última Instância que os vícios referidos nas várias alíneas do n.º 2 do art.º 400.º do CPP, mesmo verificados, devem ser decisivos e pertinentes para a decisão do caso concreto, caso contrário serão irrelevantes e não implicarão as consequências legais.

4. Decisão
Face ao expendido, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça fixada em 8 UC.

Macau, 22 de Junho de 2016

   Juízes: Song Man Lei (Relatora) – Sam Hou Fai –
Viriato Manuel Pinheiro de Lima




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Processo n.º 23/2016