Processo nº 1062/2015 Data: 02.06.2016
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “ofensa grave à integridade física”; (art. 138° do C.P.M.).
Agravação pelo resultado; (art. 139° do C.P.M.).
Falta de fundamentação.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Matéria conclusiva.
In dubio pro reo.
Crime preterintencional.
SUMÁRIO
1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”.
2. “Ofensa grave” para além de ser um “juízo” ou uma “afirmação (manifestamente) conclusiva”, (dado que já qualifica a ofensa de “grave”), não deixa de ser um “conceito de direito”, inadequada sendo a sua inclusão em sede de “matéria de facto”.
3. Provado não estando que o arguido tenha “agido com dolo”, tendo “querido provocar perigo para a vida” do ofendido, e, sendo que tal “resultado” apenas se lhe pode ser imputado a título de (mera) “negligência”, correcta não é a sua condenação como autor de 1 crime de “ofensa grave à integridade física” p. e p. pelo art. 138° do C.P.M., devendo antes ser condenado como autor de 1 crime (preterintencional), de “ofensa à integridade física agravada pelo resultado” p. e p. pelo art. 139° do mesmo código.
4. Identifica-se no “crime preterintencional” três elementos:
- um “crime fundamental” praticado a título de dolo;
- um “crime resultado” mais grave do que se intencionava imputado a título de negligência; e,
- a “fusão” dos dois crimes em causa.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 1062/2015
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar A (A), com os restantes sinais dos autos, como autor da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física”, p. e p. pelos art°s 137° e 138°, al. d) do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, e no pagamento de uma indemnização no montante total de MOP$298.825,00 ao ofendido dos autos; (cfr., fls. 190 a 194-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, veio o arguido recorrer, imputando ao Acórdão recorrido o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “violação do princípio in dubio pro reo”, “errada qualificação jurídica” e “falta de fundamentação”; (cfr., fls. 209 a 218).
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Respondendo, considera o Ministério Público que o recurso não merece provimento; (cfr., fls. 223 a 226-v).
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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Na Motivação de fls.210 a 218 dos autos, o recorrente assacou, ao douto aresto recorrido sucessivamente, a ofensa ao princípio de in dúbio pro reo, o erro de direito (qualificação jurídica), o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e a nulidade por falta de fundamentação, previstos estes três respectivamente no n.°1 do art.400°, nas alíneas a) do n.°1 do art.360° e a) do n.°2 do art.400° do CPP.
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Reflectindo as doutrinas e jurisprudências no que tocam ao princípio do in dúbio pro reo, colhemos que o seu núcleo e essência consistem na imposição de que os factos dúbios (“non liquets”) emergentes em processo penal devem ser valorizados e resolvidos em favor ao arguido.
Bem, importa atentar que este princípio «só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”. Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias, sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.» (Acórdãos do TSI nos Processos n.°729/2010 e n.°2/2011)
Com efeito, há-de existir uma dúvida positiva e racional que ilida a certeza contrária, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal, sendo aí que se começa a delinear o binómio entre o princípio do in dubio pro reo e o da prova livre, devendo este supor um entendimento objectivo, motivável e controlável da apreciação do juiz. (Acórdão do TSI no Proc. n.°44/2005)
Sendo assim, «Só se pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido. Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art.114° do CPP que escapa ao poder de censura deste Tribunal, à míngua de elementos objectivos constantes dos autos que levem a concluir de outro modo.» (Acórdão do TSI no Processo n.°122/2005)
Em expressão mais concreta, é que a inobservância deste princípio do in dúbio pro reo exige «a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.» (Acórdãos do TSI nos Processos n.°846/2014, n.°103/2015 e n.°94/2016)
Por isso, «Constatando-se que em momento algum teve o MM° Juiz a quo qualquer “dúvida” (ou hesitação) aquando da sua decisão sobre a factualidade imputada ao arguido, inviável é também conceber-se que ocorreu violação do dito princípio.» (Acórdão do TSI no Processo n.°311/2014)
No caso sub iudice, o douto Tribunal a quo estribou o 5° facto provado no Relatório da Perícia Médico-Legal de fls.21 dos autos, no qual se conclui «按現有資料,並不排除被鑑定人之雙側額顳枕部硬膜下血腫與2014年2月17日之受襲有關;而其傷患特徵符合由鈍器或其類似物所致,共需60日康復 (以其主診醫生判定之康復期為準);而僅以傷勢而言,實已對其身體的完整性造成嚴重傷害,符合澳門現行刑法典第138條d項所指—曾危及其生命。»
Percorrendo atenciosamente todo o Acórdão em sindicância, não descortinamos que o Tribunal a quo manifestasse qualquer dúvida sobre a força probatória do dito Relatório da Perícia Médico-Legal, ou sobre a certeza daquele 5° facto provado, nomeadamente sobre o nexo de causalidade adequada entre agressão do recorrente e a lesão do ofendido. O que nos aconselha a entender que não se verifica in casu a assacada violação do princípio do in dúbio pro reo.
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Ora bem, o aludido Relatório da Perícia Médico-Legal refere que a agressão do recorrente podia objectivamente provocar perigo para a vida do ofendido. O que significa que existe o nexo de causalidade adequada entre a agressão do recorrente e a lesão do ofendido.
E no 6° facto provado do Acórdão em escrutínio, o douto Tribunal a quo deu por provado que o arguido, no espírito voluntário, livre e consciente, agrediu dolosamente o ofendido, provocando directamente grave lesão no corpo desse ofendido. (嫌犯是在自願、自由及有意識的狀態下,故意對被害人使用武力,從而直接造成被害人的身體受到嚴重損害。)
Em harmonia com as doutrinas autorizadas, enquanto o crime de ofensa grave à integridade física p.p. pelo art.138° do CPM exige, pelo menos, dolo eventual, a «agravação pelo resultado» prevista no art.138° deste diploma legal depende, apenas e só, da negligência – trata-se pois de crime preterintencional (Manuel Leal-Henriques: Anotação e Comentário ao Código Penal de Macau, Vol. III, Artigos 128.° a 195.°, 2014, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, pp.177 a 183)
Os 1° e 2° factos provados demonstram seguramente que a mudança de via de trânsito (切線) do ofendido não causou lesão ao recorrente nem ao seu motociclo, e que ao agredir o ofendido, o recorrente se encontrava normal, não estando em estado de embriaguez ou sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.
Perante este quadro factual, e à luz da razão humana comum e da regra da experiência, afigura-se-nos mais racional que o recorrente não quis provocar ou aceitou a morte ou perigo para vida do ofendido. Quer dizer que na nossa modesta opinião, a culpa do recorrente relativamente à consequência de «perigo para vida» não é dolo, mas sim negligência.
Nesta linha de perspectiva, e ressalvado o elevado respeito pela opinião diferente, inclinamos a acompanhar a arguição do erro de direito pelo recorrente nas conclusões E a G da referida Motivação, devendo ele ser condenado no autor do crime previsto e punido pelo n.°2 do art.139° em vez do p.p. pela d) do art.138° do CPM.
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No que respeite à arguição do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consagrado na alínea a) do n.°2 do art.400° do CPP, antes de mais, sufragamos as criteriosas explanações da ilustre colega na douta Resposta (fls.279 a 281v. dos autos).
Repare-se que seja correcto seja errado, o Tribunal a quo deu por provado o facto de que o arguido, no espírito voluntário, livre e consciente, agrediu dolosamente o ofendido, provocando directamente grave lesão no corpo desse ofendido. (嫌犯是在自願、自由及有意識的狀態下,故意對被害人使用武力,從而直接造成被害人的身體受到嚴重損害。)
O que nos semeia a impressão de não se descortinar in casu o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consagrado na alínea a) do n.°2 do art.400° do CPP. Daqui decorre, assim, segundo nos parece, o caimento deste argumento do recorrente.
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O n.°2 do art.355° do CPP prevê o dever de fundamentação, «que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.» E a alínea a) do n.°1 do art.360° comina a nulidade.
Adverte reiteradamente o Venerando TUI (Acórdãos nos Processos n.°23/2002 e n.°23/2007) : «Em relação à parte da convicção do tribunal, obedece aos requisitos do art.355.°, n.°2 do Código de Processo Penal a sentença que se limita a indicar as fontes das provas que serviram para fundamentar a convicção do julgador, sem necessidade de mencionar as razões que determinaram essa convicção ou o juízo crítico de tais provas, pois a lei não obriga a indicação desenvolvida dos meios de prova mas tão só a das fontes das provas.» e «Não há norma processual que exige que o julgador exponha pormenorizada e completamente todo o raciocínio lógico ou indique os meios de prova que se encontra na base da sua convicção de dar como provado ou não provado um determinado facto, nem a apreciação crítica das provas, sem prejuízo, naturalmente, de maior desenvolvimento quando o julgador entenda fazer.»
Em esteira da sobredita jurisprudência, parece-nos que não existe a nulidade assacada ao douto Acórdão em causa, visto que não é necessária a explicação reclamada pelo recorrente na conclusão N da Motivação (在事實之判斷部分中,完全無考量過或描述有關上訴人 “想要讓此人有生命危險,或者至少證明行為人預見到其行為可能會導致該危險,然而仍然作出相關行為,接受該危險的發生。” 的任何表述……), embora seja verdade tal apontada omissão.
Por todo o expendido acima, propendemos pela verificação do erro de direito invocado e, deste modo, pela procedência do presente recurso”; (cfr., fls. 240 a 242-v).
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Nada obstando, passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 191 a 192-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Insurge-se o arguido contra a decisão proferida com o Acórdão do T.J.B. que o condenou como autor da prática de 1 crime de “ofensa grave à integridade física”, p. e p. pelos art°s 137° e 138°, al. d) do C.P.M., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, e no pagamento de uma indemnização no montante total de MOP$298.825,00 ao ofendido dos autos, centrando o seu inconformismo na “decisão crime”.
E, como se deixou relatado, assaca ao aresto recorrido os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “violação do princípio in dubio pro reo”, “erro na qualificação jurídica” e “falta de fundamentação”.
–– Começando pela alegada “falta de fundamentação”, cremos que evidente é que não tem o arguido razão.
De facto, e como de uma mera leitura ao Acórdão recorrido se constata, (cfr., em especial, fls. 193), não deixou o Colectivo a quo de expor (claramente) os motivos que o levaram a decidir a matéria de facto da forma que decidiu.
Na verdade – e independentemente do “acerto do decidido” que é questão que difere da ora em apreciação – daí se alcançam as razões que levaram à decisão proferida, no caso, a de dar como provada a matéria de facto constante da acusação pública e do pedido de indemnização civil enxertado nos autos, tendo o Colectivo a quo explicitado os meios de prova que foram objecto da sua ponderação, expondo também os motivos que o levaram a ter os mesmos em consideração para a formação da sua convicção.
Óbvio é – e como se nos mostra ser natural – que mais se poderia consignar. Porém, face ao que da dita fundamentação consta, (e ainda que algo sintética), correcto não é considerar que padece o Acórdão recorrido do vício de “falta de fundamentação”.
Da mesma forma, pode-se (certamente) não concordar com a decisão (e fundamentação) que consta do Acórdão recorrido.
Porém, tal nada tem a ver com o vício de “falta de fundamentação” imputado.
Continuemos.
–– Quanto à “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.
Pois bem, repetidamente temos dito que o vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo”; (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 14.01.2016, Proc. n.° 1053/2015 e de 10.03.2016, Proc. n.° 95/2016).
Dito isto, e motivos não se vislumbrando para se alterar o assim entendido, vejamos.
Está provado que:
- no dia 16.02.2014 houve um acidente de viação em que foram intervenientes o arguido, conduzindo uma mota, e o ofendido, que conduzia um táxi;
- na sequência de tal acidente, e seguinte discussão, o arguido agrediu o ofendido com socos na cabeça e cara;
- como resultado de tal agressão, o ofendido sofreu ferimentos nas partes atingidas, (cabeça e cara), e deslocou-se ao hospital onde foi atendido e tratado, tendo neste mesmo dia regressado a casa;
- no dia 10.03.2014, o ofendido, por se sentir mal, deslocou-se ao Hospital onde lhe foi diagnosticado hematoma subdural (subaguda – crónica) frontotemporal-occipital bilateral, tendo ficado internado até ao dia 26.03.2014;
- em conformidade com o relatório médico – de fls. 21 – as lesões pelo ofendido sofridas foram causadas por agressão com objecto contundente, admitindo-se ou não se excluindo a possibilidade de as mesmas terem como causa a agressão que sofreu em 10.03.2014, (perpetrada pelo arguido), e causaram perigo de vida para a vítima, constituindo uma “ofensa grave” que demandou 60 dias para a sua cura.
- o arguido agiu livre e voluntáriamente, usou intencionalmente de violência contra o ofendido, causando-lhe uma “ofensa grave à integridade física”.
- o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida.
E, sendo (exactamente) esta a matéria de facto que constava da acusação e que se veio a dar (na íntegra) como provada, que dizer?
Pois bem, desde já há que dizer que se terá de ter como “não escrita” a referência feita quanto à “ofensa grave” como consequência da conduta do arguido; (cfr., v.g., o Ac. do Vdo T.U.I. de 09.07.2003, Proc. n.° 11/2003, de 07.11.2012, Proc. n.° 64/2012, e de 07.01.2015, Proc. n.° 111/2014).
Com efeito, (e como é “óbvio”), a mesma, para além de ser um “juízo” ou uma “afirmação (manifestamente) conclusiva”, (dado que já qualifica a ofensa de “grave”), não deixa de ser um “conceito de direito” inadequada sendo a sua inclusão em sede de “matéria de facto”, (e, ainda mais, num processo em que ao arguido se imputava, precisamente, a prática de 1 crime de “ofensa grave”).
Como no Ac. deste T.S.I. de 12.02.2015, Proc. n.° 847/2014, (do ora relator), se fez constar:
“Uma “conclusão” implica um juízo sobre factos, e estes, quando em si mesmos considerados, revelam uma realidade, compreensível e detectável sem necessidade de qualquer acréscimo dedutivo.
Há uma “questão de facto” quando se procura reconstituir uma situação concreta ou um evento do mundo real, e há uma “questão de direito”, quando se submete a tratamento jurídico a situação concreta reconstituída.
O “facto” não pode incluir elementos que, a priori, contenham, (ainda que implicitamente), a resolução da questão concreta de direito que há a decidir”.
E, então, (retirada à decisão da matéria de facto o dito “conceito”), que dizer da apontada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”?
Apenas que o vício não existe.
Na verdade, o Tribunal a quo não deixou de emitir pronúncia sobre “toda a matéria objecto do processo”, elencando a que resultou provada e não provada, e fundamentando, (como se viu), adequadamente, esta sua decisão.
Contudo, o caso dos autos justifica um esclarecimento adicional.
É que, à primeira vista, podia-se dizer que se a agressão que o arguido inflingiu no ofendido ocorreu no dia 16.02.2014, como relacionar, (considerar), esta (agressão) como a “causa” da “lesão” que aquele apresentava no dia 10.03.2014, (quase um mês depois), especialmente, quando provado está que no dia da agressão, o ofendido foi atendido no hospital e que após tal, daí saiu, sendo ainda que no próprio relatório médico se reconhece a “dúvida”, consignando-se que se admitia como possível ou, melhor, que não se excluía, a possibilidade de tal relação “causa-efeito”?
Ora, é sabido, que certo tipo de lesões, a sua (efectiva) percepção, (compreensão da sua extensão ou seus efeitos e resultados), podem (apenas) surgir momentos – dias, semanas ou meses … – depois da agressão que as causa, podendo até acontecer que, as mesmas lesões, embora já existentes (logo) após a agressão, não tenham sido (adequadamente) identificadas ou diagnosticadas, estabelecendo-se (de imediato) a relação da sua “causa-efeito”.
E, a ser assim, adequado não se mostra que, sem se estabelecer factualmente – em sede da “matéria de facto provada” (e de forma clara) – a dita “relação” entre a agressão pelo arguido perpetrada no dia 16.02.2014, e as lesões que o ofendido apresentava no dia 10.03.2014, se decida, mesmo assim, declarar-se aquele como seu culpado, (e autor).
Porém, não é esta a situação dos autos.
In casu, outra matéria existe – e ainda que não tendo origem na acusação pública, constava do pedido de indemnização civil enxertado nos autos, oportunamente notificado ao arguido e objecto de discussão em audiência de julgamento, sendo assim de considerar válidamente adquirida para a decisão proferida – pois que provado (também) está (em sede da matéria alegada no pedido civil) que aquando da primeira visita do ofendido ao hospital, (em 16.02.2014), o mesmo não foi “observado” ou “examinado” tendo-lhe (apenas) sido prestados os cuidados de saúde primários no sentido de tratar os ferimentos que apresentava, e que, os sintomas de dores de cabeça e indisposição começaram-lhe a aparecer (dias) depois, até que, preocupado, e por desconhecer a sua causa, dirigiu-se pela segunda vez ao hospital, (em 10.03.2014), onde lhe foi diagnosticado “hematoma subdural (subaguda – crónica) frontotemporal-occipital bilateral”.
Perante este – chamemos – “complemento” (factual), afigura-se-nos que afastada fica a atrás referida “dúvida” ou “lacuna” na matéria de facto quanto à “relação de causa-efeito”, (a fim de se poder imputar as lesões que o ofendido apresentava no dia 10.03.2014 à agressão pelo arguido levada a cabo em 16.02.2014).
Com efeito, clarificado (agora) está que a dita agressão causou não só os ferimentos que foram identificados no dia da sua ocorrência, mas que deu também origem a um hematoma subdural, que provocou no ofendido mal estar – dores de cabeça e indisposições – que, por sua vez, o levaram a deslocar-se novamente ao hospital onde, (só então), se veio a identificar a sua causa. (Aliás, esta “relação” está mesmo explicitada em sede de “fundamentação”, e daí termos também considerado inexistir o vício da “falta de fundamentação”).
Nesta conformidade, sendo de se concluir que inexiste o apontado vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, há que concluir pela improcedência do recurso, na parte em questão.
–– No que toca à alegada violação do princípio “in dubio pro reo”, idêntica se nos apresenta a solução.
“O princípio “in dubio pro reo” identifica-se com o da “presunção da inocência do arguido” e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um “non liquet”.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio “in dubio pro reo”, decidir pela sua absolvição”; (cfr., v.g. o recente Ac. deste T.S.I. 14.01.2016, Proc. n.° 1053/2015, de 25.02.2016, Proc. n.° 94/2016 e de 28.04.2016, Proc. n.° 239/2016).
Por sua vez, e como entende a doutrina, segundo o princípio “in dubio pro reo” «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido»; (cfr., Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 215).
Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo - quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, Vol. VIII, págs. 611-615) .
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do S.T.J. de 29.04.2003, Proc. n.° 3566/03, in “www.dgsi.pt”).
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias; (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarães de 09.05.2005, Proc. n.° 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador – e não no do recorrente – alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
No caso, e como se viu, não existiu qualquer dúvida por parte do Tribunal, inexistente sendo também o vício que se assaca.
–– Por fim, quanto ao assacado “erro na qualificação jurídico-penal” da conduta do arguido.
Aqui, entende o arguido que a sua conduta não integra o crime pelo qual foi punido, (do art. 138°, al. d) ), mas sim o p. e p. pelo art. 139°, n.° 2, ambos do C.P.M..
Ora, como – bem – nota o Ilustre Procurador Adjunto no seu Parecer, neste ponto, tem o arguido razão.
Vejamos.
Nos termos do art. 138° do C.P.M.:
“Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a
a) privá-la de importante órgão ou membro, ou desfigurá-la grave e permanentemente,
b) tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem,
c) provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável, ou
d) provocar-lhe perigo para a vida, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos”.
E, por sua vez, prescreve o art. 139° que:
“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa e vier a produzir-lhe a morte é punido:
a) Com pena de prisão de 2 a 8 anos, no caso do artigo 137.º;
b) Com pena de prisão de 5 a 15 anos, no caso do artigo anterior.
2. Quem praticar a ofensa prevista no artigo 137.º e vier a produzir a ofensa prevista no artigo anterior é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”.
No caso, óbvio é que com a sua conduta cometeu o arguido o crime de “ofensa à integridade física do ofendido”; (cfr., art. 137° do C.P.M.).
Porém, não se nos mostra provado que o arguido tenha “agido com dolo”, tendo “querido provocar perigo para a vida” daquele, sendo que tal “resultado” apenas se lhe pode ser imputado a título de (mera) “negligência”, o que impõe a solução que se deixou adiantada; (sobre a questão, cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. de 03.07.2003, Proc. n.° 95/2003-I e de 23.06.2011, Proc. n.° 204/2011, e os do Vdo T.U.I. de 06.12.2006, Proc. n.° 41/2006 e de 06.12.2011, Proc. n.° 58/2011).
Com efeito, como se disse no citado Ac. deste T.S.I. de 03.07.2003:
“Identifica-se no “crime preterintencional” três elementos:
- um “crime fundamental” praticado a título de dolo;
- um “crime resultado” mais grave do que se intencionava imputado a título de negligência; e,
- a “fusão” dos dois crimes em causa”.
Ou, como se consignou no aludido Ac. do Vdo T.U.I. de 06.12.2011:
“O crime de ofensa grave à integridade física, previsto e punível pelo artigo 138.º do Código Penal, é um crime doloso. O agente quer ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, tem intenção de provocar ofensa no corpo ou na saúde de outrem. Em todas as situações previstas, o dolo tem que abranger não só o delito fundamental, como as consequências que o qualificam. Isto é, a intenção tem de abranger não só a ofensa, como as circunstâncias previstas numa das quatro alíneas.
Os crimes do artigo 139.º constituem ilícitos preterintencionais, em que o resultado excede a intenção do agente. Há dolo quanto à ofensa ao corpo ou à saúde de outrem, mas existe mera negligência quanto ao resultado morte”.
Nesta conformidade, e ponderando no estatuído nos art°s 40° e 65° do C.P.M., tendo presente a moldura penal agora em questão, e não olvidando o que do C.R.C. do arguido consta, afigura-se-nos justa e equilibrada uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, mantendo-se o período de suspensão pelos mesmos motivos que levaram o Colectivo a quo a decretá-lo.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Em face do exposto, em conferência, acordam conceder parcial provimento ao recurso.
Pelo seu decaimento, pagará o arguido 6 UCs de taxa de justiça.
Registe e notifique.
Macau, aos 02 de Junho de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 1062/2015 Pág. 4
Proc. 1062/2015 Pág. 29