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Processo nº 361/2016 Data: 02.06.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Liberdade condicional.
Pressupostos.


SUMÁRIO

1. A liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.

2. É de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social.

O relator,

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José Maria Dias Azedo

Processo nº 361/2016
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A (A), com os restantes sinais dos autos e ora presa no Estabelecimento Prisional de Macau (E.P.M.), vem recorrer da decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, motivando para, a final, concluir, imputando à decisão recorrida o vício de violação do disposto no art. 56° do C.P.M.; (cfr., fls. 72 a 79-v que como as que adiante se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os legais efeitos).

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Em resposta, pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público no sentido da procedência do recurso; (cfr., fls. 85 a 85-v).

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Em sede de vista, juntou o Exmo. Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“No presente recurso está apenas em causa ajuizar se a libertação condicional da recorrente se mostra compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, tal como exigido pelo artigo 56.°, n.° 1, alínea b), do Código Penal.
Nenhuma controvérsia se coloca quanto aos demais requisitos necessários para a concessão da liberdade condicional, pois a decisão recorrida julgou-os verificados.
Na sua motivação de recurso, a recorrente sustenta que todos os requisitos exigidos para a concessão da almejada liberdade condicional estavam preenchidos – no que é acompanhado pelo Ministério Público na sua resposta –, pelo que, ao denegar a libertação condicional, a decisão proferida incorreu em erro de direito na ponderação dos necessários pressupostos, violando a norma do artigo 56.°, n.° 1, do Código Penal.
Vejamos,
A liberdade condicional visa preparar, de forma controlada, o regresso do recluso ao seio da comunidade. Intentando acautelar e compatibilizar simultaneamente o interesse do recluso e da comunidade, o instituto é propício a situações de tensão dialéctica, cuja solução residirá na reunião perfeita dos pressupostos exigidos no artigo 56.° do Código Penal.
Resulta deste normativo que a libertação condicional de um recluso, para além de ter o assentimento deste, depende dos demais pressupostos formais e materiais aí enunciados.
O recluso deu o seu assentimento e nenhuma dúvida ocorre quanto à verificação dos pressupostos formais, como bem foi considerado, porquanto a pena é superior a 6 meses e já se mostra cumprida em 2/3.
Encaremos, então, os requisitos materiais.
Conforme jurisprudência dos tribunais da Região Administrativa Especial de Macau, a liberdade condicional é de aplicação casuística, e a sua concessão depende da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em consonância com as regras de convivência, bem como depende da compatibilidade com a defesa da ordem jurídica e da paz social, estando implícitas neste último requisito material considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínima irrenunciável da preservação e defesa da ordem jurídica – v. g., acórdãos do Tribunal de Segunda Instância, de 09.09.2004 e de 03.07.2008, proferidos nos processos 214/2004 e 378/2008, respectivamente, e citados por Leal-Henriques em anotação “Anotação e Comentário ao Código Penal de Macau”.
No caso vertente, não se suscitam dúvidas em sede de prevenção especial. A reclusa é primária, tem adoptado uma postura de cabal cumprimento das regras do estabelecimento prisional, tem aproveitado o tempo para se valorizar pessoalmente, através dos cursos frequentados e das actividades em que tem participado, bem como tem colaborado em matéria de prevenção, expondo o seu caso a grupos de jovens que visitam a cadeia, situação que, para além da carga de expiação e arrependimento que encerra, projecta um inegável efeito pedagógico junto dos jovens a quem o testemunho é dirigido. Além disso, após um primeiro pagamento das custas e encargos processuais da sua exclusiva responsabilidade, arcou depois com o pagamento da importância em que ela e o outro co-arguido foram condenados solidariamente, o que é revelador de uma postura de acatamento e cumprimento das obrigações decorrentes da decisão condenatória e traduz uma melhoria da sua educação para o direito. A reclusa conseguiu, sem dúvida, reagir de forma muito positiva e empenhada à severa provação a que foi submetida com a reclusão, ocorrida quando tinha apenas 18 anos de idade. Nenhum problema se coloca, pois, em sede de prevenção especial, revelando-se a conduta da recorrente altamente abonatória, como aliás foi frisado na decisão recorrida, sendo deveras favorável o juízo acerca da sua preparação para se reintegrar na sociedade.
Vejamos agora as coisas sob o prisma da prevenção geral. Prevenção geral positiva ou de integração, enquanto exigência de tutela do ordenamento jurídico, que se manifesta primordialmente no momento chave da aplicação da pena, mas que não pode menosprezar-se na avaliação das condições de concessão da liberdade condicional – cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, parágrafos 283 e 852.
Como a recorrente enfatiza na sua alegação de recurso, a pena de quatro anos que lhe foi imposta, próxima da moldura penal mínima prevista para o ilícito por que foi condenada, já espelha, por si, um juízo a que subjaz algum esbatimento das necessidades de prevenção geral associadas ao caso. E, apesar de, em Macau, o tráfico de droga ser objecto de acentuada reprovação ético-jurídica da comunidade, não podemos adoptar o entendimento de que a expiação da totalidade da pena é condição imprescindível para a compensação dos danos causados pelo crime, pois, se assim fosse, o instituto da liberdade condicional revelar-se-ia espúrio. Não sendo automática a concessão da liberdade condicional, também é verdade que apenas no caso muito específico e apertado do artigo 16.° da Lei 6/97/M está excluída a possibilidade de concessão de liberdade condicional, o que permite afirmar, como regra, a permissão da concessão da liberdade condicional. Por outro lado, a liberdade condicional não acarreta a extinção da pena, sendo do interesse da própria comunidade que o retorno do condenado à sua vida em sociedade se processe em condições que permitam um acompanhamento mínimo que sempre ajudará à reintegração, como é apanágio da liberdade condicional. Acresce que, no caso concreto, esse acompanhamento também é reclamado pela juventude da reclusa, que conta apenas 21 anos, podendo reintegrar-se mais fácil e rapidamente se beneficiar agora do acompanhamento proporcionado pela condição de libertada condicionalmente e de que dificilmente poderá beneficiar por alturas da próxima reapreciação, dada a proximidade do termo da pena.
Sopesando estes elementos, propendemos também para a ausência de óbices, em matéria de prevenção geral, à libertação condicional da recorrente.
Ante o exposto, vai o nosso parecer no sentido do provimento do recurso, devendo ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que conceda a liberdade condicional pelo período que falta para o cumprimento de pena, a ser objecto de acompanhamento pelos Serviços de Reinserção Social, e sugerindo-se que seja fixada à recorrente a obrigação de comprovar, em prazo a fixar, a sua projectada ocupação profissional ou estudantil”; (cfr., fls. 108 a 109-v).

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Corridos os vistos legais dos Mmos Juízes-Adjuntos, e nada obstando, vieram os autos à conferência.

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Flui dos autos a factualidade seguinte (com relevo para a decisão a proferir):

– por Acórdão do T.J.B. de 08.10.2014, foi, A, ora recorrente, condenada como autora da prática de 1 crime de “tráfico de estupefacientes”, na pena de 4 anos de prisão;
– a mesma recorrente, deu entrada no E.P.M. em 27.07.2013, e em 26.03.2016, cumpriu dois terços da referida pena, vindo a expiar totalmente a mesma pena em 26.07.2017;
– durante o cumprimento da pena, desenvolveu e participou em actividades laborais, tendo desenvolvido voluntariado no exterior;
– tem visita de familiares;
– se lhe vier a ser concedida a liberdade condicional, vai regressar à casa da família em Macau, tencionando trabalhar como empregada comercial.

Do direito

3. Insurge-se a ora recorrente contra a decisão que lhe negou a concessão de liberdade condicional, afirmando, em síntese, que se devia considerar que reunidos estão todos os pressupostos do art. 56° do C.P.M. para que tal libertação antecipada lhe fosse concedida.

Vejamos.

— Preceitua o citado art. 56° do C.P.M. (que regula os “Pressupostos e duração” da liberdade condicional) que:

“1. O tribunal coloca o condenado a pena de prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo 6 meses, se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
2. A liberdade condicional tem duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, mas nunca superior a 5 anos.
3. A aplicação da liberdade condicional depende do consentimento do condenado”; (sub. nosso).

Constituem, assim, “pressupostos objectivos” ou “formais”, a condenação em pena de prisão superior a seis (6) meses e o cumprimento de dois terços da pena, num mínimo de (também) seis (6) meses; (cfr. n.° 1).

“In casu”, atenta a pena que à recorrente foi fixada, e visto que se encontra ininterruptamente presa desde 27.07.2013, expiados estão já dois terços de tal pena, pelo que preenchidos estão os ditos pressupostos formais.

Todavia, e como é sabido, tal “circunstancialismo” não basta, já que não sendo a liberdade condicional uma medida de concessão automática, impõe-se para a sua concessão, a verificação cumulativa de outros pressupostos de natureza “material”: os previstos nas alíneas a) e b) do n.° 1 do referido art. 56°.

Com efeito, importa ter em conta que a liberdade condicional não é uma “medida de clemência”, constituindo uma medida que faz parte do normal desenvolver da execução da pena de prisão, manifestando-se como uma forma de individualização da pena no fito de ressocialização, pois que serve um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, equilibradamente, recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão; (cfr., v.g., J. L. Morais Rocha e A. C. Sá Gomes in “Entre a Reclusão e a Liberdade – Estudos Penitenciários”, Vol. I, em concreto, “Algumas notas sobre o direito penitenciário”, IV cap., pág. 41 e segs.).

Na esteira do repetidamente decidido nesta Instância, a liberdade condicional “é de conceder caso a caso, dependendo da análise da personalidade do recluso e de um juízo de prognose fortemente indiciador de que o mesmo vai reinserir-se na sociedade e ter uma vida em sintonia com as regras de convivência normal, devendo também constituir óbviamente matéria de ponderação, a defesa da ordem jurídica e da paz social”; (cfr., v.g., o recente Ac. deste T.S.I. de 25.02.2016, Proc. n.° 80/2016, de 31.03.2016, Proc. n.° 191/2016 e de 05.05.2016, Proc. n.° 289/2016).

Assim, detenhamo-nos na apreciação de tais pressupostos de natureza material.

Ponderando na factualidade atrás retratada, poder-se-á dizer que é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, mostrando-se a pretendida liberdade condicional compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social?

Cremos que de sentido positivo deve ser a resposta, mostrando-se de subscrever, na íntegra, o teor do douto Parecer do Ministério Público que atrás se deixou transcrito e que aqui se dá como reproduzido, pouco havendo a acrescentar.

De facto, a reclusa ora recorrente, era primária antes da condenação na pena que cumpre, demonstra arrependimento pela sua conduta – v.d., v.g., as várias cartas juntas aos autos e o parecer da técnica de serviço social – aliás, cometeu o crime quando nova – tinha cerca de 20 anos de idade – tem tido um “bom comportamento prisional” – vd., Parecer do Director do E.P.M. – possuindo também vontade e apoio da família para levar uma “vida nova”.

Mostra-se pois verificado o pressuposto do art. 56°, n.° 1, al. a) do C.P.M., ou seja, viável se nos apresenta o necessário juízo de prognose favorável quanto à sua futura vida em liberdade.

Por sua vez, e sem esquecer a natureza do crime cometido, ponderando na reduzida quantidade de estupefaciente em questão, (aliás, reflectida na pena aplicada), no período de pena já expiado, (quase 3 anos), e no que falta cumprir, (pouco mais que 13 meses), crê-se que viável é atender-se à pretensão em questão, considerando-se igualmente verificados os pressupostos do art. 56°, n.° 1, al. b), desde que à recorrente se fixem certas obrigações que terá que observar.

Assim, em face das expostas considerações, e verificados se mostrando de considerar os pressupostos do art. 56°, n.° 1 do C.P.M., há que revogar a decisão recorrida, concedendo-se a liberdade condicional à ora recorrente, devendo a mesma observar o programa que lhe vier a ser fixado pelos Serviços de Reinserção Social, devendo-se apresentar mensalmente, na P.S.P., com início no dia seguinte ao da sua libertação, ficando proibida de frequentar casinos e devendo comprovar nos autos, no prazo de 2 meses, a sua ocupação profissional, (sob pena de eventual revogação da agora concedida liberdade condicional).

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam conceder provimento ao recurso.

Passem-se os competentes mandados de soltura.

Sem custas.

Envie-se cópia à P.S.P. e aos Serviços de Reinserção Social.

Registe e notifique.

Macau, aos 02 de Junho de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 361/2016 Pág. 16

Proc. 361/2016 Pág. 17