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Processo nº 125/2016 Data: 08.06.2016
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Matéria de facto nova.
Alteração da qualificação jurídica.
Princípio do contraditório.
Direito de defesa.
Nulidade.



SUMÁRIO

  Incorre-se em nulidade do art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M. se no Acórdão proferido a final da audiência de julgamento se incluir “matéria de facto nova”, procedendo-se também a uma “alteração da qualificação jurídica” constante da acusação, (ou pronúncia), acabando-se por condenar o arguido como autor de outro “tipo de crime”, sem que lhe tenha sido (préviamente) dada a oportunidade para sobre tal “alteração” se defender ou requerer o que tiver por conveniente.

O relator,

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José Maria Dias Azedo


Processo nº 125/2016
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A e B, arguidos com os restantes sinais dos autos, responderam no T.J.B., vindo a ser condenados como co-autores da prática de 1 crime de “falsidade de depoimento de parte ou declaração”, p. e p. pelo art. 323°, n.° 1 do C.P.M., na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por 1 ano; (cfr., fls. 319 a 324-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformados, os arguidos recorreram para, em síntese, assacar ao Acórdão recorrido a nulidade prevista no art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M., indevida valoração de prova e “erro notório na apreciação da prova”; (cfr., fls. 337 a 342).

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Respondendo, diz o Ministério Público que o Colectivo a quo incorreu em “erro notório na apreciação da prova”, sugerindo assim o reenvio para novo julgamento; (cfr., fls. 344 a 345-v).

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Neste T.S.I., juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“Na Motivação de fls.337 a 342 dos autos, os recorrentes assacaram ao douto Acórdão sob sindicância, a nulidade contemplada na b) do n.°1 do art.360° do CPP, a violação da determinação, no n.°1 do art.336° deste diploma legal, e ainda o erro notório na apreciação de prova prescrito na c) do n.°2 do art.400° do mesmo diploma com a grave ofensa do princípio de in dúbio pro reo.
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Com efeito, sucede que no acórdão em escrutínio, o Tribunal a quo deu por provado, além de outros, o facto de que «……,在聽取兩名嫌犯的聲明時,兩名嫌犯已經獲清楚告知,如在宣誓之後作虛假陳述,需根據《刑法典》第323條規定之刑事責任。(見卷宗第15頁及第12頁至14頁) ». (Nota: tal como penetrantemente observou e aponta a ilustre colega, deve ler «需根據《刑法典》第323條規定承擔刑事責任» – assume responsabilidade de acordo com o art.323° do Código Penal)
Ora bem, o processo argumentativo da subsunção demonstra, sem margem para dúvida, que o sobredito facto e as declarações prestadas pelos dois arguidos nos SIM são nucleares e fundamentais da condenação deles na prática, em co-autoria material e forma consumada, de um crime de falsidade de declarações p.p. pelo n.°1 do art.323° do CPM.
 Procedendo à atenciosa aferição, colhemos a impressão de que o facto supra referido não consta nem da Acusação, nem do Despacho de Pronúncia. Por outra banda, de acordo com as Actas de audiência de julgamento (vide fls.311 a 313 e fls.318 dos autos), afigura-se-nos que não se trata de facto alegado pelos dois arguidos.
Examinando as apontadas Actas de audiência de julgamento, não vemos a comunicação do aludido facto aos dois arguidos – comunicação que é necessária e obrigatória, por força do n.°1 do art.339° do CPP, por implicar, na nossa óptica, a alteração não substancial.
Tudo isto aconselha-nos a acompanhar as conclusões 1 a 7 da dita Motivação, no sentido de surgir, no caso sub iudice, a invocada nulidade prevista na b) do n.°1 do art.360° do CPP, visto não ter sido comunicado aos arguidos o facto fundamental da condenação que implica em si uma convolação do crime pelo qual eles foram acusados e pronunciados.
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Antes de mais, importa ter presente que fundamentando a sua convicção, o Tribunal a quo apontou, no aresto impugnado, e bem, que «身份證明局的工作人員在審判聽證中作出聲明,聲稱已經不能記起事情的經過。» (A testemunha C não se conseguira lembrar do que se processava)
Tal menção cauciona que a testemunha C foi perguntada, na audiência de julgamento, se ele advertira os arguidos que a falsa declaração depois de prestar juramento poderia acarretar-lhes responsabilidade consagrada no n.°1 do art.323° do CPM.
Sendo assim, não podemos deixar de repugnar a 9 conclusão da Motivação em que o recorrente arrogou «原審法官根本未就上訴人在身份證明局作出聲明時,身份證明局職員是否明確對上訴人們作出提醒,如在宣誓之後作出虛假陳述,需根據《刑法典》第323條負刑事責任一事作審查。»
De outro lado, repare-se que a testemunha Si Tau Wai Tong (司徒偉東) prestou o juramento e o depoimento na presença dos dois arguidos e da respectiva defensora, e a Acta de audiência de julgamento de fls.318 e verso dos autos constata expressamente que «隨後,合議庭根據《刑事訴訟法典》第336條第1款所規定,審查了卷宗內及庭上取得之證據。»
Nestes termos, e sem prejuízo do respeito pela melhor opinião em sentido diferente, entendemos que não se verifica in casu a nulidade da prova prescrita no n.°1 do art.336° do CPP, o Tribunal a quo tomou diligentemente providências para assegurar a validade da prova.
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No que respeite ao «erro notório na apreciação de prova» previsto na c) do n.°2 do art.400° do CPP, é assente e consolidada, no actual ordenamento jurídico de Macau, a seguinte jurisprudência: «o erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.» (cfr. a título exemplificativo, Acórdãos do Venerando TUI nos Processo n.°17/2000, n.°16/2003, n.°46/2008, n.°22/2009, n.°52/2010, n.°29/2013 e n.°4/2014)
No caso sub iudice, fundamentando o erro notório na apreciação de prova, os recorrentes arguiram, nas 13 a 16 conclusões, que «……,但原審法院在審查他們之證言時只選擇性的選取了對上訴人不利的部分,而忽略了當中存在疑點的部分,嚴重違反了罪疑從無的原則。» (a 15 conclusão)
Este argumento dos recorrentes evidencia que em nome do «erro notório na apreciação de prova», ele tentaram, no fundo, pôr em dúvida a apreciação e avaliação pelo Tribunal a quo sobre a força probatória dos depoimentos das testemunhas, sendo sensível que não indicaram qualquer incompatibilidade entre factos provados, desconformidade com a realidade, a ilógica da conclusão tirada dum facto provado, a ofensa do valor de prova vinculada ou as legis artis, ou a violação da regra de experiência.
Nesta linha de vista, entendemos que não procede a arguição pelos recorrentes do erro notório na apreciação de prova, dado a qual consistir em apenas manifestar a sua discordância sobre a forma como o tribunal a quo ponderou os depoimentos prestados na audiência de julgamento.
No entanto, não se pode perder da vista a outra banda.
Em primeiro lugar, não se encontra, nos autos, nenhum documento que possa indubitavelmente demonstrar que os dois arguidos/recorrentes ofereceram juramento, antes de prestarem as declarações relativamente a factos quanto ao casamento matrimónio deles.
Em segundo, como bem observou a ilustre colega, os documentos de fls.12 a 15 só por si não garantem que a testemunha C quem precedeu à tomada das declarações dos dois recorrentes advertisse efectivamente estes que a falsidade da declaração poderia acarretar-lhes a responsabilidade consignada no n.°1 do art.323° do CPM.
Em terceiro e último lugar, recorde-se que no aresto impugnado, o Tribunal a quo mencionou conscientemente que «身份證明局的工作人員在審判聽證中作出聲明,聲稱已經不能記起事情的經過。» (A testemunha C não se conseguira lembrar do que se processava)
Ponderando tudo isto, e ressalvado respeito pelo ponto de vista diferente, inclinamos a não sufragar a 6 conclusão à qual chegou a ilustre colega na douta Resposta (cfr. fls.344 a 345 verso), no sentido de surgir in casu o erro notório na apreciação de prova, por inexistir meio de prova para abonar a convicção respeitante ao facto dado como provado de «……,在聽取兩名嫌犯的聲明時,兩名嫌犯已經獲清楚告知,如在宣誓之後作虛假陳述,需根據《刑法典》第323條規定之刑事責任。(見卷宗第15頁及第12頁至14頁) ».
Na nossa modesta opinião, a inexistência do próprio meio de prova em si mesmo é distinta da apreciação e avaliação da força probatória do certo meio de prova: enquanto a força probatória da maioria dos meios de prova está, em princípio geral, sujeita à livre apreciação do julgador, a convicção do julgador sem meio de prova infringe a regra de experiência e, desta forma, enferma do erro notório na apreciação de prova”; (cfr., fls.358 a 360-v).

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Passa-se a decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 320-v a 321-v, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Vem os arguidos recorrer do Acórdão que os condenou como co-autores da prática de 1 crime de “falsidade de depoimento de parte ou declaração”, p. e p. pelo art. 323°, n.° 1 do C.P.M. na pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por 1 ano.

São de opinião que o Acórdão recorrido está inquinado com a nulidade prevista no art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M., indevida valoração de prova e “erro notório na apreciação da prova”.

E começando-se pela invocada nulidade, cremos que tem os recorrentes razão, pois que (efectivamente) incorreu o Colectivo a quo na arguida nulidade.

Vejamos.

Nos termos do art. 360° do C.P.P.M.:

“1. É nula a sentença:
a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 355.º; ou
b) Que condenar por factos não descritos na pronúncia ou, se a não tiver havido, na acusação ou acusações, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 339.º e 340.º
2. As nulidades da sentença são arguidas ou conhecidas em recurso, podendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 2 do artigo 404.º”.

E, nesta conformidade, atento o prescrito na alínea b) do transcrito comando legal, à vista está a solução.

Com efeito, in casu, e como bem se nota no transcrito Parecer, evidente é que se introduziu “matéria de facto nova”, procedendo-se também a uma “alteração da qualificação jurídico-penal” (constante da pronúncia, onde se imputava aos arguidos a prática de 1 crime de “falsificação de documento” do art. 18°, n.° 2, da Lei n.° 6/2004), condenando-se os arguidos como autores de um outro tipo de crime, sem que aos mesmos se tenha efectuado oportuna – prévia – comunicação para, no exercício do contraditório, se defenderem ou requerer prazo para o fazer (como estatuído é no art. 339° do mesmo C.P.P.M.).

E, tal “omissão” (de prévia comunicação aos arguidos com consequente violação do seu direito de defesa e ao contraditório), acarreta, necessáriamente, a nulidade prevista no citado art. 360°, n.° 1, al. b) do C.P.P.M..

De facto, como estatui o art. 3°, n.° 3 do C.P.C.M. – aqui aplicável por força do art. 4° do C.P.P.M. – “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

E, como sobre questão semelhante – em relação à “alteração da qualificação jurídica” já se pronunciou o Vdo T.U.I.:

“I – A questão da alteração da qualificação jurídica da acusação para a sentença, em processo penal, não está regulada expressamente no Código de Processo Penal.
II – À alteração da qualificação jurídica deve aplicar-se, por analogia, o disposto no n.º 1, do art.º 339.º do Código de Processo Penal, devendo o juiz comunicar a alteração ao arguido e conceder-lhe, se ele requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
III – Quando a alteração implicar a aplicação de penalidade mais elevada o juiz tem sempre de observar o contraditório.
IV – Nas hipóteses de a alteração implicar a aplicação de penalidade igual ou inferior à que constava da acusação, em regra, será necessário proceder à comunicação da alteração ao arguido, visto que a estratégia de defesa estruturada para determinada configuração jurídica, não valerá para outra, mesmo que para infracção menos grave.
V – Não será de proceder à comunicação quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação, ou seja, de um modo geral, sempre que entre o crime da acusação ou da pronúncia e o da condenação há uma relação de especialidade ou de consunção e a convolação é efectuada para o crime menos gravoso.”; (cfr., os Acs. de 18.07.2001, Proc. n.° 8/2001 e de 09.07.2003, Proc. n.° 11/2003).

No mesmo sentido, e mais recentemente, pronunciando-se sobre idêntica nulidade considerou a Relação de Lisboa que a mesma tinha como “(…) pressuposto que o arguido seja surpreendido, na decisão final, com uma condenação por crime diverso daquele que lhe era imputado na acusação, relativamente ao qual não teve oportunidade de organizar a sua defesa. Ou seja, são visadas aquelas situações em que, após encerramento da audiência de julgamento, o tribunal profere uma decisão surpresa quanto à qualificação jurídica dos factos provados, condenando o arguido por um crime diferente do imputado”; (cfr., o Ac. de 05.04.2016, Proc. n.° 181/13, in “www.dgsi.pt”).

No caso, e como já se referiu, não só procedeu o Colectivo a quo a uma “alteração da qualificação jurídica” como introduziu “matéria de facto nova”, com evidente prejuízo para o direito de defesa dos ora recorrentes, implicando a conclusão a que se chegou, impondo-se pois concluir pela verificação da arguida nulidade do Acórdão recorrido, prejudicadas ficando a apreciação das outras questões colocadas.

Decisão

4. Pelo exposto, acordam conceder provimento ao recurso, devendo os autos voltar ao Tribunal recorrido para, após adequada tramitação, e nada obstando, proferir-se nova decisão.

Sem tributação.

Macau, aos 08 de Junho de 2016
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
Proc. 125/2016 Pág. 2

Proc. 125/2016 Pág. 3