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Processo nº 374/2016
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do T.J.B. de 18.03.2016, decidiu-se absolver A, arguido com os sinais dos autos, da imputada prática de 1 crime de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, condenando-se o mesmo arguido como autor da prática em concurso real de, 1 crime de “consumo ilícito de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 14° da Lei n.° 17/2009, na pena de 2 meses de prisão, 1 crime de “detenção indevida de utensílio”, p. e p. pelo art. 15° da mesma Lei, na mesma pena de 2 meses de prisão, e 1 crime de “resistência e coacção”, p. e p. pelo art. 311° do C.P.M., na pena de 1 ano e 3 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado com a pena única de 1 ano e 6 meses de prisão; (cfr., fls. 534 a 548 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Inconformado com a referida absolvição, o Ministério Público recorreu.

Assaca à decisão recorrida – na parte que decidiu pela dita absolvição – o vício de “erro notório na apreciação da prova”, pedindo o reenvio dos autos para novo julgamento; (cfr., fls. 556 a 563-v).

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Em resposta, pugna o arguido pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 585 a 608).

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Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este T.S.I., neles subindo um outro recurso interlocutório também pelo Ministério Público interposto; (cfr., fls. 492 a 496-v).

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Em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:

“1. Do recurso intercalar
Na audiência de julgamento ocorrida em 19/01/2016, e tomando por base o facto confessado pelo próprio arguido, a ilustre colecta pediu o aditamento das seguintes matérias: «嫌犯於2015年4月13日或14日,從中國珠海乘船偷渡進入澳門» e «同時符合第6/2004號法律第22條所規定之加重情節;以及符合第17/2009號法律第21條第1款第7項所規定之附加刑».
Sobre esse pedido, a MMa Juiz Presidente do tribunal colectivo a quo decretou (vide. fls.437 dos autos): «在本案中,檢察院申請增加嫌犯非法進入澳門之事實,隨之加控嫌犯具第6/2004法律第22條所規定之加重情節,對相關事實提出之控告,未有改變任何被控之基本事實以及量刑刑幅,因而不構成《刑事訴訟法典》第340條之訴訟事實之實質變更,故此,有關增加該項事實及相關之加重情節,合議庭接納檢察院之申請。» e «因為有關嫌犯偷渡非法進入澳門之事實,檢察院加控嫌犯符合第17/2009法律第21條第1款7項所規定之附加刑,由於嫌犯被加控非法進入澳門事實,直接導致增加了嫌犯可被處予附加刑,這樣除了增加了新的事實之外,同時導致嫌犯有可能被判處更多的附加刑處罰,故此,該加控符合《刑事訴訟法典》第340條訴訟事實之實質變更,在嫌犯反對情況下,該加控不能被接納。» Ora, o texto integral supra transcrito patenteia que tal douto despacho contém em si duas decisões paralelas.
 O teor da Motivação de fls.492 a 495v. demonstra que o recurso em apreço se cinge à 2ª decisão traduzida em indeferir o pedido de aditar a aplicabilidade ao recorrente a pena acessória prevista na subalínea (7) da alínea 1) do n.°1 do art.21° da Lei n.°17/2009, com fundamento de tal aditamento constituir a alteração substancial regulado no art.340° do CPP.
A ilustre colega assacou, à aludida 2ª decisão, a ofensa do disposto no art.340° do CPP, argumentando que o terceiro aditamento comporta apenas a questão de aplicação de direito, não implicando alteração substancial de factos, em virtude de que a 1ª decisão do referido despacho já admitiu e aceitou o aditamento do facto confessado de «嫌犯於2015年4月13日或14日,從中國珠海乘船偷渡進入澳門». (O arguido entrou clandestinamente de Zhu Hai a Macau, de barco, em 13 ou 14 de Abril de 2015)
Ressalvado o elevado respeito pela opinião diferente, e sem tocar o caso julgado formado pela sobredita 1ª decisão, afigura-se-nos que a 2ª decisão posta em crise no recurso em apreço infringe o preceito na f) do art.1° e no art.340° do CPP, visto que a subalínea (7) da alínea 1) do n.°1 do art.21° da Lei n.°17/2009 prevê a «Expulsão ou proibição de entrada na RAEM, quando não residente, por um período de 5 a 10 anos.»
Pois, esta disposição legal patenteia que para efeitos da aplicação desta pena acessória, basta que um arguido quem tenha sido condenado na prática de qualquer crime previsto na Lei n.°17/2009 não seja residente da RAEM, não sendo necessário que o arguido tenha entrado ilegalmente em Macau, ou esteja em situação de imigração ilegal.
 O que permite seguramente a extrair que o facto de «嫌犯於2015年4月13日或14日,從中國珠海乘船偷渡進入澳門» é irrelevante e indiferente para a aplicação ao arguido da apontada pena acessória de expulsão e proibição de entrada na RAEM, dado a Acusação indicar com toda a clareza o facto de o arguido não ser residente da RAEM, mas sim de Tai Wan (台灣). Ou seja, a aplicação ao arguido desta pena acessória não depende daquele o facto de «嫌犯於2015年4月13日或14日,從中國珠海乘船偷渡進入澳門».
Daí decorre que para a aplicação da mencionada pena acessória ao arguido, o pedido da ilustre colega de acrescentar o facto de «嫌犯於2015年4月13日或14日,從中國珠海乘船偷渡進入澳門» não determina a alteração substancial de facto, pelo que, na nossa opinião, é ilegal a 2ª decisão que consiste em recusar tal pedido ao abrigo do disposto no art.340° do CPP.
Com efeito, é verdade que na Acusação, o colega do M.° P.° não indica a aplicabilidade ao caso sub iudice da disposição na subalínea (7) da alínea 1) do n.°1 do art.21° da Lei n.°17/2009, embora a identificação do arguido descrita na Acusação demonstre clara e suficientemente que ele não é residente da RAEM, mas sim de Tai Wan (台灣).
Consultando as jurisprudências autorizadas dos tribunais superiores de Portugal a título de direito comparado, colhemos a impressão de que não opera alteração de facto substancial ou não, mas apenas a alteração de qualificação jurídica, a aplicação (por julgador) de penas acessórias não mencionadas na acusação, tais como a proibição ou suspensão do exercício de função, e a expulsão dos estrangeiros.
Tudo ponderando, afigura-se-nos que o pedido da ilustre colega traduzido em aplicar ao arguido a pena acessória consignada na subalínea (7) da alínea 1) do n.°1 do art.21° da Lei n.°17/2009 não germina alteração substancial de facto, daí a apontada 2ª decisão posta em crise no recurso em apreço infringe o preceito na f) do art.1° e no art.340° do CPP.
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2. Do recurso do acórdão final
Em boa verdade, ficam sujeitos à livre apreciação e convicção do tribunal os meios de prova oferecidos pelo M.° P.° a propósito de provar o facto descrito no art.16° da Acusação, que reza «嫌犯知悉上述XX酒店房間內之毒品的性質及特徵,仍故意取得、收藏及持有該等毒品,同時藏有吸毒工具,目的為除小部份毒品用作嫌犯自己吸食,其餘由嫌犯趁機售予他人圖利。»
Com todo o respeito pela vista diferente, inclinamos a opinar que ofende a regra de experiência e, nesta medida, se padece do erro notório na apreciação de prova a decisão do Tribunal a quo consubstanciada em dar como não provado o facto acima mencionado.
Para tal efeito, cabe-nos, antes de mais, sufragar inteiramente todas as penetrantes observações da ilustre colega, nomeadamente os seguintes factos considerados por provados pelo Tribunal a quo:
- No cofre (夾萬/保險箱) sito do quarto n.°1926 do XX Hotel (XX酒店), os agentes da PSP encontraram estupefacientes e utensílios para o consumo de droga (docs. de fls.100 a 104 dos autos);
 - Antes de ser detido, o arguido morara nesse quatro no período de pelo menos 17 dias;
- No mesmo cofre, encontra-se o depósito de relógio e numerários pertencentes ao arguido;
- O arguido confessou, durante a audiência de julgamento, que lhe pertencia o utensílio para o consumo de droga escondido nesse cofre;
- No devido período, só o arguido e a testemunha da defesa B utilizaram e tinham acesso ao dito quarto, dizendo esta ao tribunal a quo que ela é namorada e privada assistente (女朋友及私人助理) do arguido, sem outrem tinha acesso a tal quarto;
- Depondo embora que lhe pertenciam os estupefacientes no dito cofre, a testemunha B não conseguiu dizer o código secreto (密碼) do aludido cofre ao tribunal a quo;
- Os utensílios na posse do arguido ao ser detido e os encontrados durante a busca nos referidos quarto e cofre são exactamente do mesmo estilo especializado, como apontou a ilustre colega «造型特別,如出一轍».
À luz da regra de experiência, opinamos que tudo isto torna, forte e seguramente, inacreditável o depoimento do arguido, no sentido de ele nunca ter conhecimento daqueles estupefacientes escondidos no sobredito cofre, e de não lhe pertencerem tais estupefacientes.
O que conduz a que a decisão do Tribunal a quo consubstanciada em dar por não provado o facto alegado no art.16° da contestação ofenda a regra de experiência e, deste modo, se padeça do erro notório na apreciação de prova assacado pela ilustre colega.
Por todo o expendido acima, propendemos pela procedência do presente recurso”; (cfr., fls. 647 a 649-v).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados e não provados os factos como tal elencados no Acórdão recorrido a fls. 538-v a 542, e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.

Do direito

3. Dois são os recursos pelo Ministério Público trazidos à apreciação deste T.S.I..

Um “interlocutório”, tendo como objecto uma decisão proferida em sede de audiência de julgamento, e o segundo, do Acórdão pelo T.J.B. a final proferido.

A decisão objecto do recurso interlocutório consiste num despacho de indeferimento (parcial) de um pedido do Ministério Público, requerendo o aditamento de 1 “facto” à acusação pública, e que, no final desta, em sede de incriminação, se incluísse uma referência ao art. 22° da Lei n.° 6/2004 e ao art. 21°, n.° 1, al. 7) da Lei n.° 17/2009.

O “facto” referia que o arguido tinha “vindo para Macau no dia 13 ou 14 de Abril de 2015, entrando em Macau por ZHUHAI, R.P.C.”.

O art. 22° da Lei n.° 6/2004 prescreve que:

“Na determinação da medida da pena correspondente aos crimes previstos na legislação comum, o facto de o agente ser um indivíduo em situação de imigração ilegal constitui circunstância agravante”.

E o art. 21°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009 que:

“1. Em caso de condenação por crimes previstos na presente lei, o tribunal pode, atenta a gravidade do facto e a sua projecção na idoneidade cívica do agente, aplicar as seguintes penas acessórias:
1) Nos crimes previstos nos artigos 7.º a 9.º,
(1) Proibição ou suspensão do exercício de funções públicas, por um período de 2 a 10 anos;
(2) Proibição do exercício de determinada profissão ou actividade, por um período de 2 a 10 anos;
(3) Proibição do exercício de funções de administração, de fiscalização ou de outra natureza em pessoas colectivas públicas, em empresas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos ou em empresas concessionárias de serviços ou bens públicos, por um período de 2 a 10 anos;
(4) Inibição da faculdade de conduzir veículos motorizados e de pilotar aeronaves ou embarcações, por um período de 2 a 5 anos;
(5) Proibição de contactar com determinadas pessoas, por um período de 2 a 5 anos;
(6) Proibição de frequentar certos meios ou lugares, por um período de 2 a 10 anos;
(7) Expulsão ou proibição de entrada na RAEM, quando não residente, por um período de 5 a 10 anos.
2) Nos crimes previstos no artigo 13.º,
(1) Proibição ou suspensão do exercício de funções públicas, por um período de 1 a 5 anos;
(2) Proibição do exercício de determinada profissão ou actividade, por um período de 1 a 5 anos.
3) Nos crimes previstos no artigo 16.º, encerramento do estabelecimento ou lugar público, por um período de 1 a 5 anos”; (com sublinhado nosso).

Invocando o art. 1°, al. f) e o art. 340° do C.P.P.M., o Colectivo do T.J.B. indeferiu a inclusão da referência do art. 21°, n.° 1, al. 7) da Lei n.° 17/2009.

Ora, certo sendo que tal “pena acessória” apenas se aplica “em caso de condenação pelos crimes previstos nos artigos 7° a 9° da Lei n.° 17/2009”, oportunamente, se for caso disso, voltaremos à questão.

–– Quanto ao “recurso do acórdão”.

Pois bem, como se viu, o recurso tem aqui como objecto a decisão de absolvição do arguido da imputada prática como autor de 1 crime de “tráfico de estupefacientes”, p. e p. pelo art. 8° da Lei n.° 17/2009.

E, em síntese que nos parece adequada, eis os contornos da questão.

A acusação imputava ao arguido a prática de 4 crimes: o de “tráfico”, e os outros 3 pelos quais foi (acabou) condenado.

Em termos de factualidade, e na parte que interessa, relatava que no dia 28.05.2015, e quando circulava num táxi o arguido veio a ser interceptado por uma brigada da P.S.P. que efectuava uma operação de prevenção criminal.

Aquando da sua identificação, o arguido tenta a fuga, forçando a presença dos agentes da P.S.P. que, em resposta, o imobilizam e impedem de alcançar os seus intentos.

Submetido a uma revista, na sua posse foram encontradas várias porções de estupefaciente que se veio a identificar como Ketamina e Metanfetamina em quantidade total superior a 25 gramas; (cfr., fls. 8 a 12 e a “matéria de facto dada como provada”).

Encontradas que foram também as chaves de 1 quarto do “Hotel XX”, no mesmo se efectuou uma busca (com autorização judicial para o efeito, já que o arguido não consentiu na sua realização; fls. 62).

No âmbito desta busca, e no cofre instalado no quarto em questão, veio-se a encontrar uma outra porção de estupefaciente – também constituída por Metanfetamina, com peso de 112 gramas, e Ketamina, com peso de 130 gramas, cfr., fls. 71 a 92 – cuja pertença se considerou ser do arguido, que a destinava para a cedência e tráfico a terceiros, e que, (em essência), constituía a “matéria de facto” em que assentava a imputada prática do crime de “tráfico de estupefacientes” (pelo qual foi também acusado).

Porém, deu o Tribunal a quo como “não provado” que o estupefaciente encontrado no cofre existente no quarto do “Hotel XX” que era habitado pelo arguido lhe pertencia, daí resultando, (consequentemente), a sua absolvição em relação ao dito crime de “tráfico”, sendo, (precisamente), este o segmento da decisão com a qual não concorda o Exmo. Magistrado Recorrente.

Que dizer?

Pois bem, cabe notar que justificando a sua decisão, consignou o Tribunal a quo (em sede de fundamentação do decidido), que o arguido negou que o estupefaciente que estava no cofre era seu, dizendo desconhecer a sua existência, alegando que apenas a sua assistente, com quem partilhava o quarto, sabia o código de acesso ao interior do cofre, o que por esta foi confirmado, (em depoimento prestado em audiência de julgamento), alegando que o estupefaciente em questão tinha sido por ela adquirido e que tal facto era do (total) desconhecimento do arguido.

Ora, da reflexão que sobre a questão nos foi possível efectuar, cremos que tem o Exmo. Magistrado Recorrente razão, mostrando-se de acompanhar o teor do douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto que atrás se deixou transcrito, pois que, a decisão proferida e (na parte) recorrida – no sentido de se dar como não “não provado” que o estupefaciente encontrado no cofre fosse do arguido (e destinado a “tráfico”) – apresenta-se-nos como (frontalmente) contrária às regras de experiência, não se podendo assim confirmar.

Vejamos.

Importa ponderar (especialmente) no seguinte:
- o arguido declarou que estupefaciente que foi encontrado na sua posse era para o seu próprio consumo, afirmando ser um “grande consumidor” e, daí, necessitar da referenciada quantidade; e,
- negou que o estupefaciente encontrado no cofre do quarto do hotel que habitava era seu, dizendo desconhecer da sua existência, que desconhecia igualmente o código de acesso do aludido cofre e que quem o possuía (conhecia) era (tão só) a sua companheira, (assistente), que com ele partilhava o quarto;
- (e em sintonia com o assim alegado, em audiência de julgamento), a referida companheira declarou que o estupefaciente encontrado no cofre tinha sido por ela adquirido para o seu próprio consumo, que o tinha colocado no cofre sem o conhecimento do arguido, e que era ela a única conhecedora do código que permitia o seu acesso.

Pois bem, não se nega que os depoimentos se apresentam – à primeira vista – “redondos” e “compatíveis”.

Porém, tal “compatibilidade” é apenas (meramente) “superficial”, não esclarecendo nem justificando, (em nossa opinião), um “conjunto de factos” como se passará a (tentar) demonstrar.

Desde já, há que notar que no cofre em questão estava também depositada uma quantia de HKD$1.009.000,00 (em numerário), 3 relógios, (pelo menos um, de considerável valor), que pertenciam ao arguido, e objectos e instrumentos próprios para o consumo de estupefacientes (nomeadamente, dois “cachimbos”); (cfr., fls. 71 a 92).

E, sendo que o arguido já se encontrava a habitar o mesmo quarto há (pelo menos) “17 dias”, não se mostra – aqui sim, e em nada – “compatível” com as regras de experiência que, (após tantos dias a fazer uso do mesmo quarto), (ainda) não soubesse o código de acesso ao cofre – de 4 ou 6 números – especialmente, quando nele eram depositadas quantias monetárias elevadas e objectos valiosos que lhe pertenciam, afigurando-se-nos que o “normal” seria uma “situação inversa”, com o arguido a conhecer o código e a ter total e permanente acesso ao cofre e ao numerário e objectos (relógios) que aí se encontravam.

Aliás, há que referir – e realçar – como bem nota o Ilustre Procurador Adjunto, que a companheira do arguido, (sem apresentar qualquer justificação ou motivação), não foi capaz de identificar o código para a abertura do cofre, o que, (para além de ser, no mínimo, invulgar e estranho), não pode deixar de retirar (qualquer sentido e) credibilidade ao (teor do) seu depoimento, tornando antes “sólida” a consideração que se deixou efectuada em relação ao (conhecimento do) arguido.

Para além disto, (apenas) outras três breves observações.

Sendo o arguido – como o mesmo alega – um “grande consumidor” – que, (supostamente), necessitava de consumir grandes quantidades de estupefaciente por dia – apresenta-se “normal” que, (sem deter ou possuir outras quantidades de estupefaciente com excepção das encontradas na sua posse), não soubesse que no cofre do seu quarto estavam depositadas quase 250 gramas de produto da mesma espécie do que consumia (todos os dias e como se viu, em grandes quantidades)?

Teria algum “fornecedor infalível” ou seria uma (pequena) surpresa que a sua companheira se preparava para lhe fazer em dia de dificuldades e aflições?

E não se mostra também “menos normal” (ou natural), que o arguido (sem saber da existência do estupefaciente no cofre), se tenha “oposto” à busca no quarto do hotel, (e não tenha dito desde o início que quem tinha o código do cofre era a sua companheira, afirmando apenas desconhecer a origem do estupefaciente), e que esta sua companheira, sem estar mínimamente identificada ou referenciada nos autos se apresente por sua iniciativa a testemunhar nos termos em que o fez, (mesmo depois de advertida sobre o que lhe poderia suceder em termos de procedimento criminal), mas, não conseguindo, (por motivos ocultos ou mero acaso), identificar o código do cofre?

Ora, é verdade que diz o ditado popular que, “nesta vida, tudo, (ou quase tudo), é possível …”.

Porém, há – no mínimo – “leis da natureza” que provam que não é bem assim.

Que se saiba, por ora e pelo menos em relação aos “comuns mortais”, ainda não é reconhecido o “dom da ubiquidade”.

No caso, em causa não está nenhuma “lei da natureza”, apenas (simples) regras de experiência (humana) e da normalidade das coisas.

E, como sabido é, a livre apreciação da prova, não deixa de implicar que a mesma (prova) seja também apreciada em conformidade com as “regras de experiência”, ocorrendo “erro notório” quando a decisão com estas colide de forma frontal e patente, como em nossa opinião, é a situação dos autos.

Com efeito, o facto de o arguido se declarar (grande) consumidor, o de ter quantias consideráveis e objectos de valor no cofre, e de habitar no quarto há 17 dias, são, em termos de “normalidade das coisas”, incompatíveis com o alegado facto de o mesmo arguido desconhecer o código de acesso do cofre – com (apenas) 4 ou 6 números – onde se encontrava (também) uma grande porção de estupefaciente idêntico ao que consumia (ou tinha que consumir todos os dias em grandes quantidades).

Por sua vez, a (espontânea) “confissão” da sua companheira também se não monstra compatível com a sua “ignorância” quanto ao código do cofre.

Se ela era a pessoa que guardara o que se veio a encontrar no cofre do quarto do hotel, como justificar que não soubesse o respectivo código?

O natural, (normal), não seria declará-lo até mesmo para corroborar o que tinha declarado (no sentido de que, pelo menos ela sabia)?

Dest’arte, na constatação da existência do assacado vício de “erro notório na apreciação da prova”, e na procedência do presente recurso do Acórdão interposto, há que decretar o reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M. proferindo-se, posteriormente, nova decisão quanto à matéria respeitante ao crime de “tráfico de estupefacientes” que ao arguido é imputado.

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Aqui chegados, é momento de decidir o “recurso interlocutório”.

E decidindo, cremos que o mesmo deve proceder, valendo aqui as considerações pelo Ilustre Procurador Adjunto tecidas no seu Parecer que se deixou transcrito.

Aliás, a questão não é (totalmente) nova, e foi já abordada no Acórdão deste T.S.I. de 03.12.2015, Proc. n.° 896/2015, onde se considerou que a aplicação de uma pena acessória não implicava a sua referência em sede de acusação.

E, nesta conformidade, à vista está a solução a dar à questão em apreciação.

Decisão

4. Pelo exposto, e em conferência, acordam conceder provimento aos recursos, devendo os autos voltar ao T.J.B. para, após adequada tramitação, e nada obstando, proferir-se nova decisão.

Custas pelo arguido, com taxa de justiça que se fixa em 8 UCs.

Macau, aos 16 de Junho de 2016


  José Maria Dias Azedo [Dando como reproduzida a declaração de voto de 31.03.2011 que juntei ao Proc. n.° 81/2011, assim como a de 03.12.2015 que anexei ao Proc. n.° 896/2015].

Chan Kuong Seng (subscrevo também a decisão do recurso intercalar do M.P., sem prejuízo da posição jurídica já assumida no acórdão de 3/12/2015, do Processo n.º 896/2015 do TSI).

Tam Hio Wa
Proc. 374/2016 Pág. 24

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