打印全文
Processo nº 282/2016
(Autos de recurso civil)

Data: 16/Junho/2016

Assuntos: Conhecimento de mérito
  Artigo 230º, nº 3 do Código de Processo Civil

SUMÁRIO
1. O nº 3 do artigo 230º do CPC exige a verificação de certas circunstâncias para que se possa conhecer do mérito, não obstante a falta de um pressuposto processual, tais como: a excepção dilatória destina-se a tutelar o interesse de uma das partes; não existe outro motivo que obste ao conhecimento de mérito; e a decisão de mérito deve ser integralmente favorável a essa parte.
2. O que o legislador pretende é dar prevalência à decisão de mérito sobre a decisão de forma.
3. A legitimidade concedida às pessoas indicadas no artigo 124º do Código Civil não é a expressão ou reflexo dum direito ou interesse próprio de tais pessoas, antes, o único direito ou interesse próprio que está em causa na acção de interdição ou inabilitação respeita ao requerido que é o beneficiário do pedido.
4. Constatando-se do processo elementos que permitem comprovar a doença de que a requerida padece, ou mais precisamente, ela foi diagnosticada com demência senil, e em consequência disso, não conseguia mover as mãos e os pés, nem conseguia reconhecer as pessoas e reagir ao ambiente, perdeu a capacidade de falar e de cuidar de si mesma, sendo assim, será muito provável que o Tribunal a quo venha decretar a inabilitação da requerida, e se assim for, a decisão de mérito não deixará de ser integralmente favorável a quem a excepção dilatória se destina a tutelar o interesse, ou seja, em benefício da própria requerida.
5. Uma vez preenchidos os pressupostos previstos no nº 3 artigo 230º do CPC, ainda que se verifique a existência da excepção dilatória da ilegitimidade activa, deve o juiz conhecer do mérito da causa.
       
       
O Relator,

________________
Tong Hio Fong

Processo nº 282/2016
(Autos de recurso civil)

Data: 16/Junho/2016

Recorrente:
- A

Recorrida:
- B

Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I) RELATÓRIO
Correm no Tribunal Judicial de Base uns autos de processo especial de inabilitação, em que é requerente A (doravante designado por “recorrente”) e requerida B.
Por despacho de 11.11.2015, foi a requerida absolvida da instância por ilegitimidade activa.
Inconformado da decisão, dela interpôs o recorrente recurso ordinário, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. A douta decisão recorrida é extremamente lesiva de direitos fundamentais da requerida, que se encontra totalmente inapta para prover pela sua pessoa, encontrando-se absolutamente dependente do recorrente.
2. Não se encontra no ordenamento jurídico de Macau qualquer outra solução legal que possa conferir ao recorrente prover pela pessoa da requerida, que não seja por via do instituto da inabilitação, agora negada em primeira instância.
3. Salvo melhor entendimento, a douta sentença viola os princípios da direcção do processo e do inquisitório (art.º 6º do Código de Processo Civil), e considerando que a gravidade da situação exige por parte do sistema judicial que o mérito da causa seja conhecido e objecto de uma decisão que assegure à requerida a manutenção da sua dignidade.
4. Ao Tribunal a quo impunha-se conhecer de mérito, nos termos permitidos pelo disposto no n.º 3 do art.º 230º do Código de Processo Civil, aplicável directamente ou por analogia.
Conclui, pedindo a revogação da decisão recorrida, e a consequente prossecução dos termos processuais para conhecimento do mérito da causa.
*
Devidamente notificado o Ministério Público, não ofereceu resposta ao recurso.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Está em causa a seguinte decisão da primeira instância:
“A instaurou a presente acção especial de inabilitação, por anomalia psíquica, contra B, viúva, nascida a XX de XXX de 1938, residente na ……, em Macau, requerendo que seja nomeado seu tutor.
Alegou, em síntese, que a requerida sofre de demência e está incapaz de cuidar de si, necessitando para o efeito da ajuda de terceiros.
Foram publicados editais e anúncios nos termos do artigo 847º do Código de Processo Civil.
Foi citado o Ministério Público em representação da requerida.
Procedeu-se ao seu exame por parte do perito médico nomeado.
Foi solicitado relatório social sobre as condições de vida da requerida e do agregado familiar em que a mesma se insere.
*
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O processo está isento de nulidades que o invalidem.
*
Da ilegitimidade do requerente:
A justificou a sua legitimidade para a propositura da presente acção especial de inabilitação com o facto de ser sobrinho e o único familiar da requerida a residir em Macau, tal como escreveu no artigo 1º da sua petição inicial, tendo corrigido tal alegação no artigo 8º dessa peça explicando que, a final, é primo segundo do falecido marido da requerida e da requerida.
Sucede, porém, que essa relação de parentesco, não é suficiente para assegurar a sua legitimidade para a propositura desta causa.
O artigo 124º, n.º 1 do Código Civil, aplicável às inabilitações por força do que dispõe o artigo 139º da mesma codificação, refere que a interdição ou a inabilitação podem ser requeridas pelo cônjuge ou unido de facto do interditando, pelo tutor ou curador deste, por qualquer parente sucessível ou pelo Ministério Público.
Como escreveu Rodrigues Bastos (Notas ao Código Civil, vol. 1º, 192), relativamente aos parentes, como só aos sucessíveis é reconhecida legitimidade para a acção, só a podem exercer os parentes em qualquer grau de linha recta a até ao 4º grau da linha colateral. Tal faculdade não é concedida nem aos afins nem aos credores.
Os parentes sucessíveis de qualquer pessoa encontram-se enumerados no artigo 1973º, n.º 1 do Código Civil, e são os seguintes:
a) cônjuge e descendentes; b) cônjuge e ascendentes; c) unido de facto; d) irmãos e seus descendentes (sobrinhos); e) outros colaterais até ao quarto grau.
Sendo afim da requerida, o ora requerente não tem legitimidade para a propositura da presente acção dado que o mesmo é primo segundo do falecido marido da requerida (confiram-se os artigos 1463º a 1469º todos do Código Civil).
A legitimidade activa é um pressuposto processual, de conhecimento oficioso, que impede o conhecimento do mérito desta acção especial e conduz à absolvição da requerida da instância.
Em face do que se deixou exposto, julgo verificada a excepção dilatória de ilegitimidade activa e, em consequência, abstenho-me de conhecer o mérito da presente causa e absolvo a requerida da instância.
Custas a cargo do requerente.
Notifique.”
*
Entende o Tribunal que, verificada está a excepção dilatória de ilegitimidade activa, deve abster-se de conhecer do mérito da causa e absolver a requerida da instância.
Enquanto o recorrente entende que não obstante que o Tribunal deveria ter conhecido a excepção em melhor oportunidade, mas não o tendo sido feito em devido tempo, não existe agora motivo que obste ao conhecimento de mérito.
Quid iuris?
Ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 124º, aplicável por força do artigo 139º, ambos do Código Civil, a inabilitação pode ser requerida pelo cônjuge ou unido de facto do inabilitando, pelo tutor ou curador deste, por qualquer parente sucessível ou pelo Ministério Público.
É verdade que, não integrando o recorrente em qualquer das pessoas indicadas nesse artigo, deixa de ter legitimidade para propor a acção de inabilitação, devendo, logo no início da referida acção especial, ser liminarmente indeferida a petição inicial por manifesta ilegitimidade activa.
Mas a verdade é que, in casu, decorreram todos os trâmites processuais, e só na altura em que devia ser proferida sentença para conhecer do mérito da causa, é que foi colocada, pela primeira vez e oficiosamente, a questão de ilegitimidade.
Invocou-se pelo recorrente o princípio do inquisitório consagrado no nº 2 do artigo 6º do CPC, no sentido de que o juiz deve providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, sempre que essa falta seja susceptível de suprimento, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou se estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.
E no entender do recorrente, configurando-se esse poder de actuação oficiosa do Tribunal como um dever, que, a não ter sido cumprido, gera situação cuja consequência processual deverá ser análoga à formação de caso julgado formal relativamente à questão de legitimidade.
Em primeiro lugar, queremos dizer que o princípio do inquisitório não se aplica no presente caso, na medida em que, em relação à questão da legitimidade activa, o que está em causa é saber se o recorrente tem ou não tem legitimidade para propor a respectiva acção especial de inabilitação, e em caso negativo, não há aqui lugar ao suprimento da falta do referido pressuposto processual.
Por outro lado, apesar de o Tribunal não ter conhecido logo no início daquele pressuposto processual, mas não é por isso que se teria formado caso julgado formal relativamente à questão da legitimidade.
Estatui-se no artigo 575º do Código de Processo Civil que “os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem recurso”.
Por outras palavras, quaisquer decisões que não sejam de mero expediente, proferidas dentro do processo, uma vez transitadas, passam a ter força obrigatória nessa mesma acção, não podendo o juiz alterá-las.
De facto, olhando para os autos, verifica-se que o Tribunal a quo nunca chegou a pronunciar-se sobre a questão da legitimidade das partes, e sendo essa a primeira apreciação da questão pelo Tribunal a quo, não se descortina em que termos se fundamenta a alegada violação do caso julgado formal.
Por fim, é capaz de ter razão o recorrente quando alega que o juiz deveria ter aplicado o disposto no nº 3 do artigo 230º do CPC, e em consequência, conhecer do mérito do causa.
Preceitua-se no nº 3 do artigo 230º do CPC que “a irregularidade cometida só constitui excepção dilatória quando não tenha sido sanada; ainda que não tenha sido sanada, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a excepção dilatória a tutelar o interesse de uma das partes, não haja, no momento da sua apreciação, outro motivo que obste ao conhecimento do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte”.
Segundo essa disposição legal, é concedida ao juiz a faculdade de conhecer do mérito, mesmo que se verifique a existência de excepção dilatória não suprida, desde que a decisão seja inteiramente favorável à parte em cujo interesse se estabelecera o pressuposto processual.
No fundo, o que o legislador pretende é dar prevalência à decisão de mérito sobre a decisão de forma.
Como observa o Professor Miguel Teixeira de Sousa1, “…no momento em que o tribunal conclui que falta um pressuposto processual é possível o conhecimento do mérito da acção. O que interessa discutir é se, neste caso, é admissível que o tribunal conheça do mérito apesar da falta do pressuposto. A resposta a esta questão depende da função do pressuposto que não está preenchido. Em geral, os pressupostos processuais podem realizar uma de duas funções: esses pressupostos podem destinar-se quer a assegurar o interesse público na boa administração da justiça, quer a garantir o interesse das partes na obtenção de uma tutela adequada e útil”.
Defende o mesmo autor que “…importa verificar se o conhecimento do mérito pode ser favorável à parte que seria beneficiada com a protecção que resultaria do preenchimento do pressuposto”2.
Vejamos quais os interesses que estão em causa nesta acção de inabilitação.
Refere Emídio Santos3 que “o único interesse a tomar em linha de conta é o do requerido. O requerente ou qualquer outra pessoa incluída no círculo definido pelo artigo 141º do Código Civil (correspondente ao nosso artigo 124º do CC), não pode invocar o direito de obter a interdição ou a inabilitação. É certo que até pode ter interesse em ver decretada a incapacidade do requerido. Não é, no entanto, o seu interesse que justifica a atribuição a si da legitimidade para instaurar a acção. O pedido de interdição ou inabilitação não visa, pois, dar satisfação a um direito ou interesse próprio de quem o faz; o beneficiário do pedido é o requerido”.
Observa ainda o mesmo autor que a razão de o legislador ter atribuído legitimidade às pessoas indicadas naquela disposição legal é que aquelas provavelmente estarão mais próximas do incapaz e por isso, estarão em condições de requerer ao tribunal as medidas de protecção.
Isso significa que, no fundo, a atribuição de legitimidade concorrente a várias pessoas é feita em benefício do requerido, pese embora sejam elas partes legítimas (activas) para propor a acção, mas não têm direito ou interesse próprio.
No mesmo sentido, cita-se, a título de direito comparado, o Acórdão da Relação de Porto, de 19.9.2013, Processo nº 2872/12.7TBGDM-A.P1, nele foi registada a seguinte observação:
“Também nós consideramos que a legitimidade concedida às pessoas incluídas no círculo definido no antes citado artigo 141º do C. Civil não é a expressão ou reflexo dum direito ou interesse próprio de tais pessoas. Dito de outra forma, não é o direito ou o interesse próprio de tais pessoas que justifica que lhes seja atribuída, pela lei, legitimidade para instaurar a acção de interdição.
Antes, o único direito ou interesse próprio que está em causa na acção de interdição respeita ao requerido que é o beneficiário do pedido.”
No vertente caso, o Tribunal a quo não conheceu do mérito, por entender que verificado está a excepção dilatória de ilegitimidade activa.
Em nossa modesta opinião, embora seja verdade que o recorrente é parte ilegítima para intentar a acção de inabilitação, mas considerando os elementos carreados ao processo até ao momento em que foi proferida a decisão recorrida, julgamos que o Tribunal não está impedido de conhecer do mérito da causa, nos termos consentidos pelo nº 3 do artigo 230º do CPC.
Como se disse acima, a norma exige a verificação de certas circunstâncias para que se possa conhecer do mérito, não obstante a falta de um pressuposto processual, tais como: a excepção dilatória destina-se a tutelar o interesse de uma das partes; não existe outro motivo que obste ao conhecimento de mérito; e a decisão de mérito deve ser integralmente favorável a essa parte.
Em primeiro lugar, conforme dito acima, o único direito ou interesse próprio que está em causa na acção de interdição respeita ao requerido que é o beneficiário do pedido, daí que verificado está o requisito de que a excepção dilatória destina-se a tutelar o interesse de uma das partes, sendo neste caso, o da requerida.
Em segundo lugar, não se vislumbra a existência de outro motivo, para além da própria ilegitimidade activa, que obste ao conhecimento de mérito, pelo que preenchido também esse segundo requisito.
Por último, há elementos contidos nos autos que permitem comprovar a doença de que a requerida padece, ou mais precisamente, ela foi diagnosticada com demência senil, e em consequência disso, não conseguia mover as mãos e os pés, nem conseguia reconhecer as pessoas e reagir ao ambiente, perdeu a capacidade de falar e de cuidar de si mesma, sendo assim, será muito provável que o Tribunal a quo venha decretar a inabilitação da requerida, e se assim for, a decisão de mérito não deixará de ser integralmente favorável a quem a excepção dilatória se destina a tutelar o interesse, ou seja, em benefício da própria requerida.
Aqui chegados, salvo o devido respeito por melhor opinião, entendemos que, ainda que se verifique a existência da excepção dilatória da ilegitimidade activa, deve o juiz conhecer do fundo da causa, por se encontrarem preenchidos os pressupostos previstos no nº 3 artigo 230º do CPC, cuja aplicação da norma redunda na prevalência da decisão de mérito sobre a decisão baseada em questões processuais, ao contrário do que se defendia na doutrina tradicional, em que se dava prioridade à apreciação dos pressupostos processuais.
Pelo que, concede-se provimento ao recurso.
***
III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente A, revogando a decisão recorrida, devendo o juiz conhecer do mérito da causa.
Custas pela recorrida.
Registe e notifique.
***
 RAEM, 16 de Junho de 2016
 Tong Hio Fong
 Lai Kin Hong
 João A. G. Gil de Oliveira
1 Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 84
2 Mesma obra, pág. 85
3 Emílio Santos, Das Interdições e Inabilitações, pág. 49
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------




Processo Civil nº 282/2016 Página 1