Processo n.º 349/2014 Data do acórdão: 2016-6-23 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– fundamentação da sentença
– art.º 355.º, n.º 2, do Código de Processo Penal
– art.º 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– dolo do crime de tráfico de estupefacientes
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.º 400.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal
– insuficiência da prova
– análise laboratorial da Edefrina
– art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009
S U M Á R I O
1. Se da fundamentação fáctica probatória e jurídica do acórdão recorrido ainda se vê, com suficiente nitidez e em concreto, quais as razões determinantes da formação da livre convicção do tribunal a quo sobre os factos julgados, bem como da decisão condenatória do crime imputado ao arguido, não pode ter havido qualquer violação, por parte desse tribunal, do disposto no art.º 355.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
2. Sendo congruente, à luz das regras da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, essa fundamentação probatória, não se vislumbra alguma ofensa, por parte do mesmo tribunal a quo, à norma contida no art.º 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nem tão-pouco algum erro notório na apreciação da prova, no atinente à verificação do dolo da prática do crime imputado.
3. O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art.º 400.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal não se confunde com a questão da falta ou insuficiência da prova, falta alegada essa que não pode existir minimamente, se não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova.
4. A análise laboratorial quantitativa e percentual da Edefrina como substância compreendida na tabela V anexa à Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto, não releva mininamente para a verificação do dolo do arguido na prática do tráfico ilícito de estupefacientes, porquanto este delito, imputado sob a égide da norma incriminadora do art.º 8.º, n.º 1, dessa Lei, só o é se estão em causa as “substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III” anexas à mesma Lei.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 349/2014
(Autos de recurso penal)
Recorrente/arguido: A (A)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 157 a 166 do Processo Comum Colectivo n.º CR2-13-0032-PCC do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, o arguido A ficou condenado como autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto (doravante designada como Lei de droga), na pena de três anos e nove meses de prisão, e de um crime consumado de consumo ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 14.º desta Lei, na pena de dois meses de prisão, e, em cúmulo jurídico dessas duas penas, finalmente na pena única de três anos e dez meses de prisão.
Inconformado, veio recorrer o arguido para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), imputando ao Tribunal Colectivo recorrido, na essência, os seguintes vícios ou ilegalidades (cfr., e com detalhes, o teor da motivação do recurso, apresentada a fls. 180 a 209 dos presentes autos correspondentes):
– incumprimento do disposto no art.º 355.º, n.º 2, do CPP na elaboração do acórdão, devido à mera enunciação das provas, sem verdadeira motivação da matéria de facto e de direito que terão fundamentado a decisão;
– vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art.º 400.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), materializado pela insuficiência dos elementos de facto considerados para a livre convicção do tribunal na determinação da existência do “dolo” do tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, da Lei de droga, com ausência, pois, sob o ponto de vista do art.º 336.º, n.º 1, do CPP, de qualquer elemento nos autos de onde se possa retirar a existência do dolo do crime de tráfico (é que a prova produzida apenas se debruçou sobre a análise à Metanfetamina como substância abrangida na tabela II-B anexa à Lei de droga, sem que se tenha analisado quantitativa e percentualmente a Efedrina como substância compreendida na tabela V anexa à mesma Lei);
– indevida não substituição, por multa, da pena de dois meses de prisão do crime de consumo ilícito de estupefacientes, ao arrepio do art.º 44.º do Código Penal (CP);
– e também indevida não suspensão da execução da pena de prisão do crime de consumo de estupefacientes.
Ao recurso, respondeu a Digna Delegada do Procurador (a fls. 215 a 221v) no sentido de manutenção do julgado.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 230 a 232v), pugnando também pela confirmação do julgado.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, sabe-se que o acórdão recorrido tem, inclusiva e materialmente, o seguinte teor correspondentemente em português:
– <<[…]
II. Fundamentação
Discutida a causa, e com interesse para a sua decisão, resultaram provados os seguintes factos:
Desde o meio de Janeiro de 2011, o arguido A começou a vender a outrem a droga chamada “Ice” (gelo) em Macau.
Em 18 de Janeiro de 2011, pelas 21h00, os agentes policiais da PJ interceptaram o arguido A perto da porta n.º xx na Rua xxx e encontraram dois pacotes pequenos de cristais transparentes na caixa de cigarro portada pelo arguido.
Após o exame laboratorial, verificou-se que os supracitados cristais transparentes têm o peso líquido de 0,668 gramas e se tratam de “Metanfetamina”, substância compreendida na Tabela II-B anexa ã Lei n.º 17/2009 e “Efedrina”, substância compreendida na Tabela V anexa à mesma lei. Segundo a análise quantitativa, o teor percentual de “Metanfetamina” foi de 74,39% e o conteúdo foi 0,497 gramas.
Os agentes policiais foram pesquisar à residência do arguido A, situada na Estrada dos xxx, Edf. XX, x.º andar x e encontraram na gaveta da secretária de computador do quarto do arguido A um pacote de cristais transparentes, um pacote de cristais brancos, três palhas transparentes e dez sacos plásticos transparentes em que respectivamente havia dez pequenos sacos plásticos transparentes.
Após o exame laboratorial, verificou-se que os supracitados cristais transparentes têm o peso líquido de 5,129 gramas e se tratam de “Metanfetamina”, substância compreendida na Tabela II-B anexa à Lei n.º 17/2009 e “Efedrina”, substância compreendida na Tabela V anexa à mesma lei. Segundo a análise quantitativa, o teor percentual de “Metanfetamina” foi de 72,77% e o conteúdo foi 3,732 gramas; os supracitados cristais brancos se tratam de “Ketamina”, substância compreendida na Tabela II-B anexa à Lei n.º 17/2009, com o peso líquido de 0,256 gramas. Segundo a análise quantitativa, o teor percentual de “Ketamina” foi de 81,37% e o conteúdo foi 0,208 gramas; e nas palhas transparentes acima referidas há vestígios que se tratam de “Ketamina”, substância compreendida na Tabela II-C anexa à Lei n.º 17/2009.
As supracitadas drogas foram compradas pelo arguido A de um homem chamado “B” no Interior da China. O arguido A portava as drogas que se tratam de “Metanfetamina” para vender a outrem e as drogas que se tratam de “Ketamina” para consumo pessoal.
Os vestígios de “Ketamina” que existem nas supracitadas palhas transparentes são resíduos das drogas que o arguido A consumiu. E os supracitados sacos plásticos transparentes servem para dividir as drogas que se tratam de “Metanfetamina” e embrulhar para venda.
No Corpo da Polícia Judiciária, os guardas policiais apreenderam HKD4.000,00 em numerário e dois telemóveis encontrados no arguido A. Os supracitados numerários foram adquiridos pelo arguido A através de praticar o supracitado crime e os supracitados telemóveis foram ferramentas de contacto do arguido A para praticar o supracitado crime.
O arguido A tinha perfeito conhecimento da natureza e das características das supracitadas drogas.
O arguido A praticou livre, voluntaria e conscientemente a supracitada conduta.
A supracitada conduta praticada pelo arguido A não foi autorizada por nenhuma lei e o arguido tinha perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
‒
Mais se provou:
O arguido é motorista e aufere mensalmente cerca de dezassete mil patacas.
Tem como habilitações académicas o 3º ano do ensino secundário e tem o pai a seu cargo.
Conforme o CRC, o arguido é primário.
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Factos não provados:
Nada a assinalar, uma vez que ficaram provados todos os factos relevantes da acusação.
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Convicção do Tribunal:
A convicção do Tribunal fundamenta-se na apreciação crítica e comparativa de toda a prova produzida em audiência de julgamento, globalmente analisada, nomeadamente, nas declarações das testemunhas C, agente da PJ, D e E (amigos do arguido), que depuseram com isenção e imparcialidade, e ainda no exame dos documentos tais como os relatórios dos exames laboratoriais às substâncias apreendidas e dos objectos apreendidos aos autos.
Segundo as regras da experiência, pelas circunstâncias em que o arguido foi detido, pela quantidade de estupefacientes encontrados no seu corpo aquando da sua detenção e do que foi encontrado na sua residência, e pelos objectos apreendidos, mormente a grande quantidade de sacos de plástico encontrados na sua residência e a forma como o estupefaciente era guardado e empacotado, tudo leva a concluir, sem margem para dúvidas, que o arguido se dedicava ao tráfico de estupefacientes e em simultâneo consumia parte desses estupefacientes, conforme o descrito na acusação.
‒
Enquadramento Jurídico- Penal:
Cumpre agora analisar os factos e aplicar o direito:
O n.º1 do art.º8º da Lei n.º17/2009, de 10 de Agosto, estabelece o seguinte: «Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos.»
E o artº14º desta Lei prevê: «Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.»
Da factualidade apurada, dúvidas não há que o arguido cometeu de forma consciente, livre e com dolo, e em autoria material e na forma consumada, um crime de tráfico ilícito de estupefaciente e de substâncias psicotrópicas p.p. pelo n.º1 do artº8º da Lei nº17/2009, de 10 de Agosto, e um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p.p. pelo artº14º da mesma Lei, estando preenchidos todos os pressupostos objectivos e subjectivos do respectivo tipo de ilícito por que vem acusado.
Integrado o tipo, entre a pena detentiva e a pena não privativa de liberdade deve o Tribunal dar preferência à segunda (artº64º do CP), porém, in casu, entende-se que a pena mais adequada e que mais se realiza as finalidades de punição, ou seja a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade será a de prisão. (artº40º do CP)
Na determinação da pena concreta, ao abrigo do disposto no artigo 65º do CP, atender-se-á à culpa do agente e às exigências da prevenção criminal, tendo em conta o grau de ilicitude, o modo de execução, gravidade das consequências, o grau da violação dos deveres impostos, intensidade do dolo, os sentimentos manifestados, a motivação do arguido, suas condições pessoais e económicas, comportamento anterior e posterior, sua idade e a quantidade de estupefacientes na sua posse, e demais circunstancialismo apurado, pelo que se tem por ajustada uma pena de três (3) anos e nove (9) meses de prisão para o crime de tráfico ilícito de estupefaciente e de substâncias psicotrópicas e uma pena de dois (2) meses de prisão para o crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas.
Em cúmulo jurídico, deve o arguido ser condenado em uma pena única de três (3) anos e dez (10) meses de prisão (artº71º do CP).
[…]>> (cfr. o teor literal de fls. 162v a 165 dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Conhecendo nesses parâmetros, desde já se observa que, diversamente do entendido pelo recorrente:
– da fundamentação fáctica probatória e jurídica do acórdão recorrido ainda se vê, com suficiente nitidez e em concreto, quais as razões determinantes da formação da livre convicção do Tribunal Colectivo a quo sobre os factos julgados, bem como da decisão condenatória do crime de tráfico ilícito de estupefacientes, pelo que não pode ter havido qualquer violação, por parte desse Tribunal, do disposto no art.º 355.º, n.º 2, do CPP;
– sendo congruente, à luz das regras da experiência da vida quotidiana humana em normalidade de situações, essa fundamentação probatória, não se vislumbra alguma ofensa, por parte do mesmo Tribunal a quo, à norma contida no art.º 336.º, n.º 1, do CPP, nem tão-pouco algum erro notório na apreciação da prova, no atinente à verificação do dolo da prática do imputado crime de tráfico;
– outrossim, ao invocar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no art.º 400.º, n.º 1, alínea a), do CPP, confundiu o recorrente este vício com a questão da falta (ou insuficiência) de prova dos factos determinantes do dolo do crime de tráfico, falta de prova alegada essa que não pode existir minimamente, devido à inverificação de qualquer erro notório na apreciação da prova nos termos acabados de ser vistos;
– sendo de frisar que a pretendida análise quantitativa e percentual da Edefrina como substância compreendida na tabela V anexa à Lei de droga não releva mininamente para a verificação ou afirmação do dolo do recorrente na prática do tráfico ilícito de estupefacientes, porquanto este delito, imputado ao recorrente sob a égide da norma incriminadora do art.º 8.º, n.º 1, da Lei de droga, só o é se estão em causa as “substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III” anexas à mesma Lei;
– assim sendo, tendo o recorrente, em 18 de Janeiro de 2011, detido 0,497 grama líquido de Metanfetamina e outros 3,732 gramas líquidos da mesma substância, todos por ele comprados para serem vendidos a outrem, e sendo a quantidade de referência de uso diário desta substância fixada em 0,2 grama no respectivo Mapa integrante da Lei de droga, sabendo ele bem a natureza e as características dessa substância, e agindo ele de modo livre, voluntário e consciente, com intenção de praticar a sua conduta acima referida, não legalmente autorizada, essa matéria de facto já dada por provada no acórdão recorrido suporta cabalmente a decisão de condenar efectiva e legalmente o próprio recorrente no acusado crime de tráfico ilícito de estupefacientes do art.º 8.º, n.º 1, da Lei de droga.
O recorrente roga que seja substituída, por multa, a pena de prisão do seu crime de consumo ilícito de estupefacientes.
Entretanto, atentas as inegáveis exigências da prevenção geral deste delito de consumo de estupefacientes, não se pode satisfazer esta pretensão dele (cfr. o critério material consagrado na parte final do art.º 44.º, n.º 1, do CP para efeitos de substituição da prisão por multa).
Nem se pode suspender a execução da pena de prisão deste crime de consumo, porquanto atentas sobretudo as circunstâncias em que foi descoberta a prática deste crime (pois ao lado deste crime, praticou comprovadamente o recorrente o crime de tráfico de estupefacientes), não é de formar judicialmente qualquer juízo de prognose favorável para efeitos de suspensão da pena de prisão, em sede de art.º 48.º, n.º 1, do CP.
Improcede, pois, o recurso, sem mais indagação, por ociosa ou prejudicada, de todo o remanescente alegado pelo recorrente na sua motivação.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar não provido o recurso.
Custas do recurso pelo recorrente, com oito UC de taxa de justiça.
Macau, 23 de Junho de 2016.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 349/2014 Pág. 13/13