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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 10 / 2006

Recorrente: A
Recorrida: Região Administrativa Especial de Macau








1. Relatório
   A instaurou uma acção declarativa com processo comum ordinário contra a Região Administrativa Especial de Macau, pedindo a condenação desta a reconhecer a propriedade do autor sobre determinada quantia na moeda e restituir-lha e o pagamento dos juros, ou subsidiariamente a restituição da referida quantia e o pagamento de juros legais.
   Por sentença do Tribunal Judicial de Base, a acção foi julgada improcedente.
   Desta decisão recorreu o autor para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão proferido no processo n.º 271/2005, foi negado provimento ao recurso.
   Vem agora o autor recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões das suas alegações:
   “1. A questão sub judice deve analisar-se à luz dos preceitos do Código Civil de Macau;
   2. Decidindo em contrário, o acórdão recorrido violou o art.º 3.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 39/99/M, de 3 de Agosto, e o art.º 11.º, n.º 1 do Código Civil de Macau;
   3. O eventual desconhecimento do depósito de dinheiro do recorrente na Conta da Recebedoria da RAEM (desconhecimento que, de toda a maneira, terá cessado quando a RAEM foi accionada para o devolver ao recorrente) e a eventual falta de animus possidendi da RAEM relativamente a esse dinheiro são aspectos alheios à reivindicação de propriedade prevista no art.º 1235.º, n.º 1 do Código Civil de Macau (e no art.º 1311.º, n.º 1 do Código Civil de 1966), cujo exercício requer apenas a mera detenção por alguém de coisa pertencente a outrem;
   4. Decidindo em contrário, o acórdão recorrido violou o art.º 1235.º, n.º 1 do Código Civil actual (art.º 1311.º, n.º 1 do texto de 66) e aplicou erradamente os art.ºs 500.º, n.º 2, 1251.º e 1253.º do Código de 66;
   5. Não há indício nenhum nos autos de que B quisesse fazer seu o dinheiro do recorrente, representado pelos três cheques dos autos, e não numerário e cheques da RAEM, em valor equivalente, mas este ponto é também irrelevante porque não interessa saber o que é que B queria fazer, mas sim o que acabou fazendo;
   6. É totalmente despiciendo saber como passou a classificar-se o dinheiro do recorrente, uma vez depositado na Conta da Recebedoria, ao abrigo de regras de contabilidade, seja esta pública ou privada;
   7. A fungibilidade do dinheiro depositado numa conta bancária limita-se aos movimentos realizados nessa conta, de sorte que o dinheiro que se levanta dessa conta é considerado o mesmo que antes foi ali creditado, mas não já o dinheiro que se levanta doutra conta ou doutro local, ainda que seja também do titular da conta;
   8. Decidindo em contrário, o acórdão fez errada aplicação do art.º 197.º do Código Civil de Macau;
   9. Os factos provados e aceites pelo Tribunal a quo demonstram que, inversamente ao que se diz no acórdão recorrido, o recorrente não prestou o numerário titulado pelos três cheques dos autos a B, mas apenas lhe entregou fisicamente esses documentos, tendo C, por instrução de B, procedido ao respectivo depósito na Conta da Recebedoria, donde resulta que o dinheiro foi prestado à RAEM, não a B;
   10. O art.º 153.º do CPP de 1929, como todo o código a pertence, já se encontrava revogado à data em que foi instaurada a presente acção;
   11. A norma do art.º 6.º do decreto preambular do CPPM definiu os parâmetros de aplicação transitória do velho CPP de 1929 na vigência do novo CPPM, sem criar um regime especial para o dito art.º 153.º: ele aplicar-se-ia apenas aos processos-crime que ainda pendessem após a entrada em vigor do CPPM e só até ao respectivo trânsito em julgado;
   12. Transitada em julgado relativamente a C a acção-crime a que os presentes autos aludem, não estando os presentes autos já pendentes quando do início de vigência do novo CPPM e tendo eles índole civil, não penal, inexiste qualquer motivo para lhes aplicar o velho CPP ou, em particular, o seu art.º 153.º;
   13. Mesmo que o CPP de 1929 se aplicasse à presente acção, o referido art.º 153.º não produziria efeitos sobre a presente acção porque tal estaria condicionado à circunstância de aqui se discutirem direitos que dependessem da existência da infracção criminal, o que não é o caso;
   14. Deste modo, a sentença do Tribunal Judicial de Base violou o disposto no art.º 6.º do decreto preambular do CPPM e fez errada aplicação do art.º 153.º do CPP de 1929;
   15. O art.º 578.º do CPCM também não se aplica à presente acção porque igualmente condiciona a produção dos seus efeitos à circunstância de na acção civil se discutirem relações jurídicas dependentes da prática da infracção, o que, como se referiu, não se verifica na presente acção;
   16. Ao abrigo dos art.ºs 73.º e 74.º do CPPM, a sentença penal que arbitre uma indemnização civil constitui caso julgado nos mesmos termos das sentenças civis;
   17. Não há identidade de sujeitos nem de causa de pedir entre a presente acção e a acção penal (vista na perspectiva civilista da indemnização que arbitrou) a que aludem os autos;
   18. Assim, a indemnização fixada no processo-crime não inibe o conhecimento do mérito da presente acção porque não corporiza a excepção de caso julgado;
   19. Decidindo em contrário, a sentença do Tribunal Judicial de Base violou os art.ºs 574.º, n.º 1, 576.º, n.º 1, 416.º e 417.º, todos do CPCM, aplicáveis ex vi dos art.ºs 73.º e 74.º do CPPM;
   20. A RAEM deve restituir ao recorrente o valor dos três cheques que recebeu em depósito por imperativo do art.º 1235.º, n.º 1 do Código Civil, e pagar-lhe, a título de indemnização, os juros bancários de que o recorrente se vê privado, por força do disposto no art.º 477.º, n.º 1 do Código Civil, como com mais desenvolvimento se pede na petição inicial;
   21. Decidindo em contrário, o acórdão recorrido violou os mencionados art.ºs 1235.º, n.º 1 e 477.º, n.º 1 do Código Civil;
   22. Subsidiariamente, a RAEM deve restituir o dinheiro com fundamento no enriquecimento sem causa, por força do art.º 467.º e seguintes do Código Civil, valendo aqui o valor objectivo da coisa entregue e devendo afastar-se o requisito de locupletamento porque doutra forma se permitiria à RAEM recusar a restituição de algo que não lhe pertence só para evitar que recaia sobre si o prejuízo económico duma fraude, o que repugna ao senso jurídico e moral do comum das pessoas, e ofende o princípio, que ressalta do art.º 8.º, n.º 3 do Código Civil, de que se deve presumir, sobretudo em caso de dúvida, que o legislador quis formular as soluções mais justas e morais (in casu, relativamente ao enriquecimento se causa) – cf. Código Civil Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, vol. 1, anotação ao art.º 8.º;
   23. Havendo lugar a restituição por enriquecimento sem causa, a RAEM deve ainda indemnizar o recorrente, no termos do art.º 474.º, a) do Código Civil, pagando-lhe juros legais, conforme com mais desenvolvimento se pede na petição inicial;
   24. Decidindo em contrário, o acórdão recorrido violou os art.ºs 467.º, 470.º, n.º 1, 8.º, n.º 3, e 474.º, a) do Código Civil.”
   Pedindo a procedência do recurso e a revogação do acórdão recorrido com a condenação da RAEM no pedido.
   
   A recorrida apresentou as seguintes contra-alegações:
   “Ao contrário do expendido na alegação do recorrente, cremos que é aplicável, in casu, o anterior C. Civil, face ao comando do seu art.º 12.º, n.º 1.
   Temos como irrelevante, na verdade, na situação presente, a destrinça entre a constituição do direito e o seu exercício.
   A questão suscitada, de resto, como reconhece o autor, em nada altera os dados do problema.
   
   Conforme se sublinha no acórdão recorrido, o recorrente intentou a acção contra a RAEM, estribado em dois fundamentos: “o baseado no instituto de reivindicação da propriedade, e o outro, tido por subsidiário, construído na regra de repetição do indevido, enquadrada no instituto de enriquecimento sem causa”.
   A esse respeito, entretanto, não podemos, efectivamente, deixar de subscrever as doutas considerações do mesmo acórdão.
   Essas considerações, aliás, estão em consonância com as judiciosas explanações da resposta do Ministério Público.
   E afigura-se-nos, de facto, que é ocioso acrescentar-lhes o que quer que seja.
   
   Não pode configurar-se a alegada reivindicação quando é certo que o numerário em foco não chegou a entrar na esfera patrimonial da ré.
   E, pela mesma razão, não pode conceber-se o invocado enriquecimento, uma vez que a RAEM nunca recebeu o mesmo numerário.
   
   O autor reitera, em desespero de causa, o apelo para a procura de “outra fonte de responsabilidade”.
   Não se vislumbra, todavia, essa hipotética alternativa.
   
   O recorrente, na impossibilidade material de obter dos autênticos responsáveis aquilo de que foi privado, mais não pretende do que encontrar um terceiro – ou seja, a recorrida – que possa satisfazer a sua pretensão.
   Mas, é óbvio que a lei não permite um tal “malabarismo”.
   Vejamos.
   
   O recorrente foi vítima de uma burla, praticada por dois funcionários da ré, que, para esse efeito, utilizaram os seus serviços.
   Mas esta circunstância, só por si, não permite responsabilizar a respectiva entidade patronal, quer em termos de responsabilidade contratual, quer em sede de responsabilidade civil por factos ilícitos.
   
   No que diz respeito à primeira, como é sabido, os actos dos funcionários só podem repercutir-se na esfera patrimonial da respectiva entidade patronal se praticados na órbita das sua funções.
   O que, muito claramente, não foi o caso.
   Os funcionários em causa usaram os serviços e as suas competências para cometerem um crime de burla, à margem e contra a vontade da recorrida.
   Os mais elementares princípios jurídicos e o bom senso não permitem fazer reflectir na esfera patrimonial da RAEM as consequências de tais actos.
   O que significa que a pretensão do autor não pode buscar apoio na responsabilidade contratual.
   
   Afastada essa responsabilidade, importa averiguar se o pedido do recorrente pode ter qualquer outro fundamento, nomeadamente a responsabilidade extracontratual ou, nos termos legais, a responsabilidade por factos ilícitos.
   Neste plano, o art. 483º do referido C. Civil dispõe que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
   Deste dispositivo resulta, com suficiente clareza, que a obrigação de indemnizar nele prevista pressupõe e exige uma conduta violadora do direito de outrem, ou seja, um facto ilícito – praticado com dolo ou mera culpa – e a existência de prejuízos dele decorrentes.
   Impõe-se, assim, investigar se à ré pode ser imputada qualquer conduta violadora do direito do autor.
   Neste domínio, importa salientar, desde já, que o mesmo não imputa à recorrida qualquer conduta ilícita, nomeadamente negligência ou falta de fiscalização da actividade dos seus funcionários que pudesse ter facilitado ou permitido a sua actuação criminosa.
   E há que recordar que, no âmbito desta responsabilidade, a culpa não se presume – art.º 487.º do citado C. Civil.
   O que equivale a afirmar que ao recorrente incumbia alegar e provar a conduta negligente da recorrida.
   E, não tendo satisfeito tal ónus probatório, deve ter-se por inexistente essa conduta.
   Em tais circunstâncias, o pedido do autor não pode ter por suporte a responsabilidade em apreço.
   Também por esta via naufraga o pedido do recorrente.
   
   Ainda uma nota final, na esteira do vertido no douto acórdão.
   O art.º 500.º, n.º 2, do mesmo Diploma, estabelece que a responsabilidade do comitente – no caso, a recorrida – só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário “no exercício da função que lhe foi confiada”.
   Ora, como já vimos, os funcionários da ré agiram manifestamente para além das suas funções, abusando dos poderes que lhes haviam sido confiados.
   E, não se tendo apurado qualquer conduta ilícita da recorrida na vigilância e fiscalização da actuação daqueles funcionários, não lhe podem ser atribuídas as consequências da conduta criminosa dos seus funcionários.
   
   Não assiste, pelo exposto, razão ao recorrente.
   Deve, consequentemente, ser confirmada a douta decisão recorrida.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 As instâncias consideram provados os seguintes factos:
   “O autor emitiu, a favor da Recebedoria da Fazenda de Macau (alínea A da Especificação):
   - no dia 9 de Novembro de 1992, o cheque com o n° HHXXXXXX, no montante de HKD$867,000.00, sacado sobre a sua conta n° XX-XXX-XXXXXX-X do Banco da China;
   - no dia 16 de Agosto de 1993, o cheque com o n° MHXXXXXX, no montante de MOP$256,000.00, e o cheque com o n° MHXXXXXX, no montante de MOP$211,000.00, sacados sobre a conta n° XX-XXX-XXXXXX-X do Banco da China, aberta conjuntamente em nome do autor e sua mulher D.
   O autor entregou esses três cheques, nas datas respectivas, a B, funcionário da Direcção dos Serviços de Finanças da RAEM, que desempenhava as funções de escrivão e responsável pela coordenação do serviço do Juízo de Execuções Fiscais (alínea B da Especificação).
   O B entregou os três cheques a C, que era também funcionário da Direcção dos Serviços de Finanças, onde desempenhava as funções da Recebedor da Fazenda (alínea C da Especificação).
   O C depositou-os numa conta aberta junto do Banco Nacional Ultramarino, em Macau, à ordem da Recebedoria da Fazenda de Macau (Conta da Recebedoria) (alínea D da Especificação).
   A intenção do autor ao emitir os cheques e entregá-los ao B era pagar os custos da remição do prédio sito em [Endereço], que segundo o que o B lhe disse, a Fazenda de Macau tinha adquirido em execução fiscal movida a um tal E, por forma a tomar-se proprietário do mesmo, uma vez remido o prédio (alínea E da Especificação).
   Essa intenção foi ardilosamente inculcada ao autor pelo B, cujo propósito era não o de promover a realização do resultado querido pelo autor, mas servir-se dos cheques para, de modo fraudulento e com a colaboração do C, obter um ganho material de montante igual ao dos cheques (alínea F da Especificação).
   O B obteve esse ganho pela entrega que o C lhe fez de numerário (contado) e/ou cheques ao portador, os quais, no conjunto, igualavam o valor total dos cheques emitidos pelo autor (alínea G da Especificação).
   Em consequência destas e outras acções, o B e o C foram julgados e condenados, o primeiro pela prática de crimes de peculato e burla, e o segundo como cúmplice da prática de crimes de burla, nos autos de processo de querela n° 80/98, da 2ª Secção do então designado Tribunal de Competência Genérica de Macau (alínea H da Especificação).
   
   O numerário e/ou os cheques ao portador a que se alude em G) faziam parte de receitas da Fazenda que estavam à guarda do C (resposta ao quesito 1º).
   O numerário e/ou os cheques ao portador a que se alude em G) faziam parte de receitas da Fazenda a que o C tinha acesso, na qualidade de Recebedor da Fazenda (resposta ao quesito 2º).
   O autor nunca recuperou o seu dinheiro (resposta ao quesito 3º).”
   
   
   2.2 Aplicação da lei no tempo
   O recorrente começou por sustentar que se deve aplicar o Código Civil (CC) actual ao caso sub judice e não o Código de 1966 por considerar que a substanciação do direito à restituição alegado pelo recorrente depende do exercício efectivo e é de aplicar o Código Civil vigente aquando do seu exercício, ou seja, o Código de 1999.
   
   Com se sabe, com a entrada em vigor do actual Código Civil de 1999 no dia 1 de Novembro do mesmo ano, por força do art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 48/99/M, foi revogado o antigo Código Civil de 1966.
   De acordo com o art.º 6.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 39/99/M, “a aplicação das disposições do novo Código Civil a factos passados ou a situações constituídas anteriormente fica subordinada às regras dos seus artigos 11.º e 12.º, com as modificações e os esclarecimentos constantes do presente capítulo.”
   Por sua vez, prescreve assim o n.º 1 do art.º 11.º do CC de 1999:
   “A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.”
   Os factos alegados pelo autor que fundamentam os seus pedidos ocorreram em 1992. A presente acção de reivindicação foi instaurada após a entrada em vigor do novo CC de 1999. Por se tratar de um meio de protecção de propriedade, em que se discute, não a propriedade originária do dinheiro em causa, mas sim a sua reclamação depois de sair da esfera jurídica do recorrente, é de aplicar o novo CC, vigente aquando da sua interposição.
   Mas a questão tem pouca relevância para a decisão final, tal como reconhece o recorrente, pois as normas do novo CC neste domínio são praticamente idênticas com as anteriores.
   A questão nem se põe em relação ao enriquecimento sem causa, porque as normas dos dois CC são iguais.
   
   
   2.3 Acção de reivindicação
   Em relação à fundamentação do acórdão recorrido, o recorrente discorda da conclusão do tribunal recorrido de lhe negar o reconhecimento da propriedade do dinheiro em causa.
   
   O autor, ora recorrente, entende que, por intenção ardilosamente inculcada por B, então funcionário das Finanças, ele entregou três cheques àquele, emitidos a favor da Recebedoria da Fazenda de Macau e o dinheiro em causa foi apropriado pela Fazenda. Por isso, o dinheiro de que B se apropriou fraudulentamente pertencia à Fazenda e não ao recorrente, pelo que a RAEM, ora recorrida, devia restituir ao recorrente o dinheiro nos termos do art.º 1235.º do CC, ou seja, por meio de reivindicação da propriedade do dinheiro.
   Em seguimento da qualificação jurídica sustentada pelo recorrente, o tribunal recorrido considera que a recorrida nunca pretendia ter a posse da coisa que o recorrente reivindica, não existe animus por parte da anterior Administração para possuir ou deter tal dinheiro. Quem teve a posse ou deteve o dinheiro foi B. Nega, consequentemente, a restituição da propriedade pela recorrida pedida pelo recorrente.
   
   Ora, nos termos do art.º 1235.º, n.º 1 do CC, “o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”
   No entanto, é de notar que “só as coisas podem ser objecto do direito de propriedade regulado neste Código.” (art.º 1226.º do CC).
   No anterior CC, foi expresso que “só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis,” podem ser objecto do direito de propriedade (art.° 1302.° do CC de 1966).
   Não parece que haja diferença substancial do âmbito da regulamentação do direito de propriedade nos dois Códigos Civis.
   
   “São coisas corpóreas as coisas que, tendo existência física, são perceptíveis pelos sentidos. Pelo contrário, as coisas incorpóreas são aquelas cuja existência é desencadeada pelo espírito humano, ganhando, depois, relevância social.”
   “A importância desta distinção (coisas corpóreas e incorpóreas) é fundamental, porquanto entendemos que só as coisas corpóreas interessam aos direitos reais.
   Em primeiro lugar por uma razão positiva: o Código Civil contém o essencial da regulamentação do direito real de propriedade. Ora, nos termos do seu artigo 1302.º, só as coisas corpóreas podem ser objecto desse direito real. Seria anómalo que esse princípio não fosse comum a todos os direitos reais. Na verdade, o Código, numa técnica que encontraremos repetidamente, enuncia a propósito da propriedade um princípio geral do nosso direito das coisas.
   Em segundo lugar por uma razão lógica: o universo das coisas incorpóreas é muito extenso; podemos considerar que abrange, entre outras, todas as realidades com relevância económica. Ora a não delimitação dos direitos reais às coisas corpóreas levá-los-ia a assumir a regulamentação de toda a matéria patrimonial privada, deixando sem tratamento específico uma realidade incontestavelmente existente: a das coisas corpóreas.”1
   Por isso, a acção de reivindicação, como meio paradigma de defesa da propriedade, incide apenas às coisas corpóreas. O dinheiro que o recorrente reclama é apenas a expressão de determinado valor numerário, sem qualquer existência física, insusceptível, em consequência, de recorrer a este meio de protecção.
   Improcede o recurso nesta parte, sem prejuízo de apreciar a situação jurídica do recorrente sob outra qualificação jurídica.
   
   
   2.4 Enriquecimento sem causa
   O recorrente tentou ainda sustentar o seu pedido no instituto de enriquecimento sem causa, baseado no locupletamento da recorrida à custa do recorrente, salientando ainda que o dinheiro ou cheques ao portador entregues por C a B era da Fazenda e não do recorrente.
   
   De acordo com os art.ºs 473.º, n. 1 do CC de 1966 ou 467.°, n.° 1 do CC actual:
   “Aquele que, sem causas justificativas, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.”
   Portanto, são três os requisitos cumulativos da verificação da obrigação de resituir:
   “1. Que haja um enriquecimento de alguém;
   2. Que o enriquecimento careça de causa justificativa;
   3. Que ele tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição (ou do seu antecessor).”2
   
   Segundo o recorrente, a recorrida ficou com o dinheiro do recorrente como receita. Há assim enriquecimento por parte da Fazenda.
   Mas não acompanhamos este entendimento.
   Na realidade, e sempre com base nos factos provados na presente acção, o recorrente entregou o dinheiro no total de MOP$1.361.744,00 através de três cheques emitidos a favor da Recebedoria da Fazenda de Macau a B para pagar os custos da remição de um prédio situado em Macau.
   O recorrente entregou o dinheiro é porque tal antigo funcionário da Direcção dos Serviços de Finanças lhe disse que a Fazenda de Macau tinha adquirido o prédio em execução fiscal e o recorrente queria, por esta forma, tornar-se proprietário do mesmo, após a remição do prédio.
   Só que, essa intenção foi ardilosamente inculcada ao recorrente por B.
   
   Ou seja, não existia razão legal para o recorrente entregar tal dinheiro à Fazenda de Macau. Tal execução fiscal e a remição do prédio não existia na realidade, mas sim foram inventadas por B. O que aconteceu foi que este induziu o recorrente em erro, aproveitando a confiança do recorrente nele como intermediário para tratar as formalidades de remição, servindo os serviços das Finanças e o mecanismo de recebimento e pagamento das quantias fiscais, com a intenção de obter ganho patrimonial ilícito.
   É de referir que no processo penal em que os dois antigos funcionários das Finanças foram condenados por crimes de peculato e burla, ficou provado que o ora recorrente chegou a entregar a B, num período de tempo próximo, mais cinco cheques, o primeiro ao portador e outros a favor deste funcionário no valor total de HK$2.433.000,00 para o mesmo efeito de remição do prédio.
   É certo que os três cheques do recorrente emitidos a favor da Recebedoria da Fazenda de Macau foram depositados na conta desta e apresenta-se como receitas da Fazenda. Mas para além de não existir causa legal para o recorrente proceder ao pagamento à Fazenda e consequentemente não pode constituir receita da Fazenda, o depósito dos cheques na conta da Fazenda era apenas um passo de todo o esquema montado por B para conseguir ganho ilícito. Pois outro antigo funcionário das Finanças, C, como recebedor da Fazenda, e em concluio com B, entregou a este numerário e / ou cheques ao portador de igual valor dos três cheques do recorrente, concretizando assim o seu intuito de obter ganho patrimonial ilícito.
   Por esta razão, não é possível afirmar que haja enriquecimento por parte da recorrida à custa do recorrente, mostrando improcedente o pedido do recorrente de condenar a recorrida a restituir o dinheiro com base no enriquecimento sem causa.
   Mesmo que se considerasse procedente o argumento do recorrente de que a entrega dos três cheques foi realmente para a prática de actos fiscais, também não conduz logicamente à aplicação do mecanismo do enriquecimento sem causa, pois este exige que o enriquecimento careça de causa justificativa.
   Na verdade, o recorrente foi vítima da burla praticada por B. Por isso, na sentença que condenou os dois arguidos, foi arbitrada ao recorrente a indemnização de MOP$3.766.000,00 a pagar solidariamente pelos dois arguidos, valor que corresponde sensivelmente ao soma dos valores de todos os cheques entregues pelo recorrente a B.
   
   
   2.5 Efeitos da decisão penal condenatória
   O recorrente considera que o art.º 153.º do Código de Processo Penal (CPP) de 1929, que se prescrevia o efeito de caso julgado da condenação definitiva, não é aplicável à presente acção cível, pois foi instaurada após a entrada em vigor no novo CPP. Nem é aplicável o art.º 578.º do Código de Processo Civil (CPC) actual sobre a oponibilidade da decisão penal condenatória, pois o direito invocado pelo recorrente não depende da prática de infracção penal.
   
   Tratam-se os presentes autos duma acção cível instaurada após a entrada em vigor do actual CPC, é de considerar o seu art.º 578.º, em vez do antigo CPP.
   Dispõe o art.º 578.º do CPC:
   “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam às formas do crime, em quaisquer acções civis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção.”
   Assim, a condenação penal serve como presunção da existência dos factos nela dados como provados, ao contrário do que se determinava a indiscutibilidade da decisão penal no antigo CPP.
   Portanto, é de considerar aplicável o art.º 578.º do CPC nos presentes autos. Mas, mesmo assim, esta norma não tem virtualidade para alterar as conclusões referidas nos pontos anteriores.
   
   Destas conclusões também resultam que é irrelevante a questão do efeito da decisão penal sobre a presente acção cível na parte respeitante à indemnização arbitrada.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso
   Custas pelo recorrente nesta e na segunda instância.


   Aos 30 de Novembro de 2007.



Juízes : Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cfr. António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, LEX, Lisboa, 1993, p. 191 a 193.
2 Cfr. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, p. 480 e 481.
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Processo n.° 10 / 2006 20