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Processo n.º 830/2015 Data do acórdão: 2016-7-14 (Autos em recurso penal)
Assuntos:
– arguição de nulidade de sentença
– omissão de pronúncia
– extemporaneidade do recurso

S U M Á R I O
Como da fundamentação fáctica do acórdão de recurso se vê que a audiência de julgamento em primeira instância foi realizada em 13 de Julho de 2015 e que o Ministério Público interpôs, em 29 de Julho de 2015, o recurso de uma decisão judicial aí proferida, decidiu o tribunal de recurso, na fundamentação jurídica desse acórdão, que o recurso foi tempestivamente interposto dentro do prazo de vinte dias fixado no art.º 401.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, decisão essa que representa a decisão de improcedência da questão de extemporaneidade do recurso suscitada pelo arguido na resposta ao recurso. Não pode, pois, padecer o acórdão do vício de nulidade por omissão de pronúncia sobre essa questão de extemporaneidade.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 830/2015
(Autos de recurso penal)
(Da arguição de nulidade do acórdão de 16 de Junho de 2016)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Notificado do acórdão proferido por este Tribunal de Segunda Instância em 16 de Junho de 2016 a fls. 752 a 757 dos presentes autos de recurso penal n.o 830/2015, veio o 2.º arguido C arguir a nulidade desse aresto, através da peça de fls. 766 a 773, de seguinte teor:
– <<[…]
  I ‒ Dos factos
  Por decisão proferida pelo Tribunal Judicial de Base, o ora Requerente foi absolvido da prática na co-autoria material do crime de tráfico ilícito de estupefacientes, p.p. pelo art. 8º n. 1, da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto.
  Inconformado com tal decisão, o Ministério Publico interpôs recurso:
  i) quer da decisão final absolutória do 2º Arguido,
  ii) quer da decisão proferida oralmente na sessão de audiência de discussão e julgamento datada de 13 de Julho de 2015 mas não constante da correspondente acta lavrada de fls. 604 a 604a.
  Sendo que,
  No que diz respeito ao recurso da decisão final, veio o Ministério Público pedir a invalidação da decisão absolutória do 2º Arguido e o consequente reenvio do processo para novo julgamento no respeitante a esta parte.
  E, no que diz respeito ao recurso intercalar, interposto da sobredita decisão, veio o Ministério Publico alegar que o Tribunal de Primeira Instância terá violado o art. 112º do Código de Processo Penal, porquanto deveria ter considerado a conversação de “wechat” entre o 1º e 2º Arguidos e constante de fls. 87-90 dos autos.
  A estes dois recursos, respondeu o ora Requerente invocando o seguinte:
  i) a falta do objecto do recurso interlocutório,
  ii) a extemporaneidade da arguição do vicio invocado em sede de recurso interlocutório,
  iii) a conversação de “wechat” enquanto prova proibida, e
  iv) a não relevância da conversação de “wechat” para a decisão final.
  Decidindo sobre a questão levantada pelo Ministério Público em sede de recurso, veio esse Venerando Tribunal de Segunda Instância decidir que:
  “( ...)
  ‒ até à interposição, em 29 de Julho de 2015, desse recurso intercalar, o Ministério Público e o 2º arguido não chegaram a suscitar qualquer questão sobre a falta de referência dessa afirmação judicial na referida acta da sessão de audiência de julgamento (cfr. o que resulta do exame do exame do processado de fls. 604 a 666);
  ‒ Na resposta ao recurso intercalar do Ministério Publico, o 2º arguido alegou sobretudo que as decisões oralmente proferidas em audiência de julgamento que conheçam de qualquer questão interlocutória têm necessariamente de estar consignadas na acta, e que a inobservância desta regra implica a inexistência da respectiva decisão e consequentemente a impossibilidade de ser sindicada em sede de recurso;
  ‒ o Tribunal a quo proferiu o acórdão a fls. 618 a 650, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
  ‒ nesse acórdão, deu-se por não provado mormente o acusado facto de os 1º e 2º arguidos terem praticado conjuntamente as actividades de trafico de produto estupefaciente;
  ‒ da fundamentação da sua convicção probatória sobre os factos então sob indagação, o Tribunal a quo não fez nenhuma referência ao teor das conversas do 1º arguido na aplicação do “wechat” a que se referem as fls.84 a 90 dos autos, conversas essa cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.”
  Acrescentou ainda esse Venerando Tribunal que:
  “( ...)
  Nesses parâmetros, e por uma questão de lógica processual, há que conhecer primeiro do recurso intercalar do Ministério Público.
  Dos elementos processuais acima coligidos dos autos, resulta nítido que este recurso foi tempestivamente interposto dentro do prazo de vinte dias fixado no art. 401º, n.º 1 do CPP.
  E este recurso não deve ser rejeitado por falta de objecto, porquanto se é certo que a "afirmação judicial" oral sob impugnação pelo Ministério Publico não constou efectivamente da acta da sessão de audiência de julgamento em que foi feita essa afirmação, não é menos certo que essa problema de tal afirmação oral não ter constado da acta só traduziu uma irregularidade processual no acto da elaboração da acta (cfr. as disposições conjugadas dos art. 86º, n.º 4, 89º, n.º 1 e 2, alínea d), 105º, n.º 2 e 110º, n.º 1, do CPP), e como tal não pode ter implicado a inexistência de tal afirmação judicial, porque esta estava gravada.”
  Assim entendendo, decidiu o Tribunal conhecer do recurso interlocutório julgando o mesmo procedente.
  Sucede que,
  II ‒ Da Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia por parte do Tribunal de Segunda Instância.
  O ora Requerente não se limitou a invocar a falta do objecto do Recurso.
  Com efeito,
  Em resposta ao Recurso alegou o ora requerente que,
«Ainda que assim não se entenda, e para o caso de se julgar existente o objecto do recurso, o que apenas por mera cautela de patrocínio se concede sempre se diga que ainda assim o recurso será de improceder.
[...]
Alega a Recorrente que a mesma viola o preceituado no artigo 112º do CPP e como tal deverá ser revogada.
Sucede que,
A julgar-se existir qualquer decisão, que como se viu não resulta da acta de audiência de julgamento,
O momento oportuno para atacar a validade da aludida decisão seria precisamente a audiência de discussão e julgamento, sob pena de, em sede de recurso, já um eventual vicio se mostrar sanado.»
  Ou seja,
  O ora Requerente invocou a extemporaneidade da arguição da alegada violação do art. 112º do Código de Processo Penal tal como invocado pelo Digníssimo Magistrado do Ministério Público.
  Salvo devido respeito por opinião diversa, caberia ao Tribunal de Segunda Instância, antes de decidir pela apreciação do alegado vicio invocado pelo Ministério Público, pronunciar-se sobre a invocada extemporaneidade da arguição do referido vicio, sob pena de nulidade em virtude da decisão proferida incorrer em omissão de pronúncia nos termos conjugados do n.º 2 do art. 563°e alínea d) do n.º 1 do art. 571º ambos do Código de processo Civil, ex vi , art. art. 4º do Código de Processo Penal.
  Isto porque,
  Não obstante do Tribunal de Segunda Instância ter entendido que o facto da “afirmação judicial” não ter constado da acta só traduz uma mera irregularidade processual no acto de elaboração da acta,
  Não invalida o facto do momento oportuno para atacar a validade da aludida decisão ser precisamente a audiência de discussão e julgamento, sob pena de, em sede de recurso, mesmo gue apelidado de recurso intercalar, já o vicio se mostre sanado.
  Daí que, tendo o Ministério Publico discordado do entendimento do Meritíssimo Juiz a quo, pelo facto da decisão por ele proferida ser alegadamente violadora do preceituado no artigo 112º do CPP, era na audiência de julgamento que teria necessariamente de ser invocada essa violação.
  Mas não o tendo feito, preferindo ficar silente e nada tendo dito no momento próprio, de nada lhe adianta vir, somente, em sede de recuso e pela primeira vez arguir a alegada violação.
  Na verdade,
  Dispondo o artigo 105º do CPP que a violação ou inobservância das disposições da lei processual penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
  E, não cabendo a violação do preceituado no artigo 112º do CPP ‒ única norma que no entendimento do Ministério Publico foi violada pela decisão recorrida ‒ em nenhuma das disposições referentes às nulidades absolutas ou insanáveis,
  Será de entender que estamos perante uma nulidade relativa ou uma mera irregularidade.
  Sendo certo que qualquer uma das duas, impõem que sejam invocadas no próprio acto, in casu, na audiência de discussão e julgamento datada do dia 24 de Julho de 2015.
  Não o tendo feito o Ministério Público em sede da audiência de discussão e julgamento datada do dia 24 de Julho de 2015, perdeu este a oportunidade de o fazer em sede de recurso, mesmo que apelide o recurso de "intercalar".
  Assim,
  Não tento o Tribunal de Segunda Instância colhido o fundamento invocado pelo ora Requerente de que o recurso intercalar era desprovido de objecto,
  Tendo antes entendido que a falta da "afirmação judicial" em acta de julgamento apenas consubstanciava uma mera irregularidade,
  Não poderia o Tribunal de Segunda Instância, salvo devido respeito, ter deixado de se pronunciar sobre a tempestividade da arguição da alegada violação conforme foi pelo ora Requerente invocado em sede de resposta do recurso interposto pelo Ministério Público,
  E, consequentemente, nunca poderia esse Venerando Tribunal dar provimento ao recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público cujo fundamento, como se disse, está assente na existência de um alegado vicio cuja arguição é claramente extemporânea.
  Nem tão pouco se alegue que o Tribunal de Segunda Instância se pronunciou pela tempestividade do recurso interposto pelo Ministério Público, porquanto não foi essa a extemporaneidade que foi pelo ora Requerente colocada em causa.
  Mas sim, a tempestividade da arguição do vício por parte do Ministério Publico,
  Arguição essa a qual por se tratar de uma irregularidade, conforme supra se fundamentou, só poderia ter tido lugar na audiência de discussão e julgamento, momento o qual o Ministério Publico deixou passar em branco.
  Por essa razão, o acórdão proferido padece assim de nulidade por omissão de pronúncia nos termos conjugados do n.º 2 do art. 563°e alínea d) do n.º 1 do art. 571º ambos do Código de processo Civil, ex vi , art. art. 4º do Código de Processo Penal, nulidade essa a qual vem desde já invocada para todos os efeitos legais.
Termos em que,
Deverá o presente requerimento ser julgado procedente, por provado, e em consequência ser declarada a nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia nos termos conjugados do n.º 2 do art. 563°e alínea d) do n.º 1 do art. 571º ambos do Código de processo Civil, ex vi, art. art. 4º do Código de Processo Penal>>.
A propósito dessa pretensão do 2.º arguido, opinou a Digna Procuradora-Adjunta, a fls. 775 a 775v, pela manifesta improcedência da nulidade arguida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II – DOS ELEMENTOS COLIGIDOS DOS AUTOS
Com vista à decisão, é de atender ao seguinte conteúdo do acórdão de 16 de Junho de 2016, de fls. 752 a 757:
< (Autos de recurso penal)
Recorrentes: Ministério Público
1.º Arguido B (B)
Recorrido: 2.º arguido C (C)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido em 24 de Julho de 2015 a fls. 618 a 650 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR4-15-0089-PCC do 4.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficaram condenados o 1.º arguido B como autor material de um crime consumado de tráfico ilícito de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, da Lei n.º 17/2009, de 10 de Agosto (doravante abreviada como Lei de droga), na pena de onze anos de prisão, e de um crime consumado de consumo ilícito de estupefacientes, p. e. p. pelo art.º 14.º da mesma Lei, na pena de dois meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, finalmente na pena única de onze anos e um mês de prisão, e o 2.º arguido C, apenas como autor material de um crime consumado de acolhimento, p. e p. pelo art.º 15.º, n.º 1, da Lei n.º 6/2004, de 2 de Agosto, na pena de sete meses de prisão, ficando este arguido absolvido do inicialmente também acusado crime consumado, em co-autoria com o 1.º arguido, de tráfico ilícito de estupefacientes.
Inconformados, vieram recorrer quer o Ministério Público quer o 1.º arguido, aquele no respeitante à decisão final absolutória do 2.º arguido do imputado crime consumado de tráfico, e o 1.º arguido na parte relativa à medida da pena de onze anos de prisão do seu crime de tráfico, por ele tida como desproporcionada, inadequada e excessiva, ao arrepio dos art.os 40.º, n.os 1 e 2, e 65.º, n.os 1 e 2, do Código Penal (CP), pedindo, assim, aquele Ente Judiciário a invalidação da decisão absolutória do 2.º arguido do inicialmente acusado crime de tráfico, com consequente reenvio do processo para novo julgamento a respeito desta parte, enquanto rogando o 1.º arguido a sua condenação no crime de tráfico em pena não superior a oito anos e dez meses de prisão (cfr., e com detalhes, o teor das respectivas motivações de recursos apresentadas a fls. 663 a 664v e a fls. 677 a 687 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso do 1.º arguido, respondeu o Ministério Público (a fls. 690 a 693) no sentido de improcedência manifesta.
Outrossim, o Ministério Público recorreu do “despacho judicial proferido oralmente” na sessão de 13 de Julho de 2015 de audiência de julgamento mas não constante da correspondente acta lavrada a fls. 604 a 604a, através do qual se terá afirmado judicialmente, a propósito do teor das conversações na aplicação “wechat” instalada no telemóvel do 2.º arguido a que se referem as fls. 84 a 90 dos autos, que não se pode falar das conversas aí do 1.º arguido, porque estas não servem como meio de prova. Entendeu, pois, o Ministério Público que o Tribunal a quo violou o art.º 112.º do Código de Processo Penal (CPP) ao considerar o teor dessas conversas do 1.º arguido como de valoração proibida em sede de audiência de julgamento, pelo que deveriam relevar essas conversas do 1.º arguido, susceptíveis de provar o consenso entre o 2.º arguido e o 1.º arguido na prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico (cfr., e com pormenores, o conteúdo da motivação do recurso junta a fls. 666 a 668v dos autos), recurso intercalar esse que aliás serviu de alicece lógica à fundamentação do seu acima referido recurso interposto do acórdão final da Primeira Instância.
A este recurso intercalar e àquele recurso final do Ministério Público, respondeu o 2.º arguido recorrido (unamente a fls. 699 a 717) que, desde já, inexistiria o objecto no recurso intercalar (por o recorrido despacho judicial proferido oralmente não ter constado da respectiva acta de audiência de julgamento), e que, subsidiaramente falando, também seria extemporâneo o recurso intercalar (por o Ministério Público não ter suscitado nada na sessão da audiência de julgamento), e que, fosse como fosse, seria salva a decisão judicial que o Ministério Público pretendia impugnar no recurso intercalar, o que prejudicaria, por decorrência lógica da questão da prova proibida, o recurso final do Ministério Público.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 728 a 730), pugnando pela procedência dos recursos intercalar e final do Ministério Público, com opinada condenação directa do 2.º arguido no crime de tráfico, para além de considerar dever ser mantida a pena já achada pelo Tribunal a quo ao crime do tráfico do 1.º arguido.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, retira-se o seguinte, com pertinência à decisão:
– na acta da sessão de audiência de julgamento, realizada no dia 13 de Julho de 2015 (cfr. o teor dessa acta lavrada a fls. 604 a 604a-verso), não consta nenhuma referência à “afirmação judicial” aludida na motivação do recurso intercalar do Ministério Público, acerca da não valoração, como prova, das conversas (a que aludem as fls. 84 a 90 dos autos) deixadas pelo 1.º arguido na aplicação “wechat” instalada no telemóvel do 2.º arguido; entretanto, o Ministério Público recorrente retirou, a partir do teor da gravação da audiência de julgamento, o conteúdo dessa “afirmação judicial” (no sentido de que a propósito do teor das conversações na aplicação “wechat” instalada no telemóvel do 2.º arguido a que se referem as fls. 84 a 90 dos autos, não se pode falar das conversas aí do 1.º arguido, porque estas não servem como meio de prova);
– até à interposição, em 29 de Julho de 2015, desse recurso intercalar, o Ministério Público e o 2.º arguido não chegaram a suscitar qualquer questão sobre a falta de referência dessa “afirmação judicial” na referida acta da sessão de audiência de julgamento (cfr. o que resulta do exame do processado de fls. 604 a 666);
– na resposta ao recurso intercalar do Ministério Público, o 2.º arguido alegou sobretudo que as decisões oralmente proferidas em audiência de julgamento que conheçam de qualquer questão interlocutória têm necessariamente de estar consignadas na acta, e que a inobservância desta regra implica a inexistência da respectiva decisão e consequentemente a impossibilidade de ser sindicada em sede de recurso;
– o Tribunal a quo proferiu o acórdão final a fls. 618 a 650, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
– nesse acórdão, deu-se por não provado mormente o acusado facto de os 1.º e 2.º arguidos terem praticado conjuntamente as actividades de tráfico de produto estupefaciente;
– da fundamentação da sua convicção probatória sobre os factos então sob indagação, o Tribunal a quo não fez nenhuma referência ao teor das conversas do 1.º arguido na aplicação “wechat” a que se referem as fls. 84 a 90 dos autos, conversas essas cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, e por uma questão de lógica processual, há que conhecer primeiro do recurso intercalar do Ministério Público.
Dos elementos processuais acima coligidos dos autos, resulta nítido que este recurso foi tempestivamente interposto dentro do prazo de vinte dias fixado no art.º 401.º, n.º 1, do CPP.
E este recurso não deve ser rejeitado por falta de objecto, porquanto se é certo que a “afirmação judicial” oral sob impugnação pelo Ministério Público não constou efectivamente da acta da sessão de audiência de julgamento em que foi feita essa afirmação, não é menos certo que esse problema de tal afirmação oral não ter constado da acta só traduziu uma irregularidade processual no acto de elaboração da acta (cfr. as disposições conjugadas dos art.os 86.º, n.º 4, 89.º, n.os 1 e 2, alínea d), 105.º, n.º 2, e 110.º, n.º 1, do CPP), e como tal não pôde ter implicado a inexistência de tal afirmação judicial, porque esta já estava gravada.
Assim, e directamente sobre o mérito desse recurso intercalar, é de abraçar, desde já, como pertinente, a seguinte posição jurídica veiculada no texto “Apreensão de correio electrónico em Processo Penal” de PEDRO VERDELHO, publicado na REVISTA DO MINISTÉRIO PÚBLICO, Ano 25, Out-Dez 2004, N.º 100, págs. 153 a 164, já citada em algumas passagens suas na motivação desse recurso:
– <<[…] sendo interceptadas em tempo real, enquanto percorrem as redes de comunicação, as mensagens de correio electrónico terão que ser consideradas comunicações electrónicas. Porém, após o seu recebimento no computador a que se destinam, quando a comunicação já chegou ao seu destino e ficam alojadas no computador, sob a forma de um ficheiro em formato digital, a comunicação já cessou. As mensagens deixam de ter a essência de uma comunicação em transmissão, para passarem a ser antes uma comunicação já recebida, que terá porventura a mesma essência da correspondência. De acordo com esta perspectiva, enquanto circulam pelas redes comunicacionais, do computador de origem, através dos servidores, até ao computador de destino, as mensagens são inequivocamente uma comunicação electrónica. No entanto, após o seu recebimento pelo computador destinatário, a comunicação cessa. A mensagem pode ficar arquivada no computador de destino ou ser apagada. Neste momento, na sua essência, uma mensagem de correio electrónico em nada se distingue de uma carta remetida pelo correio físico, dito tradicional, que após ser recebida pode igualmente ser guardada ou destruída. Portanto, neste estádio, as mensagens de correio electrónico deixam de ser uma comunicação, passando a ter uma natureza similar à da correspondência, embora sob a forma digital.
[…]
[…] tal como acontece com o correio tradicional, no âmbito da recolha de prova em processo penal, deverá ser dado um tratamento diferenciado a mensagens recebidas mas ainda não abertas, por um lado, e a mensagens recebidas e já abertas, por outro.
Quanto às primeiras, se se lhe aplicar o regime processual do correio tradicional, têm que ser consideradas correspondência não aberta. […]
No que respeita às segundas, se já foram abertas, porventura lidas e mantidas no computador a que se destinavam, não deverão ter mais protecção que as cartas em papel que são recebidas, abertas e porventura guardadas numa gaveta, numa pasta ou num arquivo. Portanto, não merecem a mesma protecção das outras no momento da sua apreensão. […] Na sua essência são documentos sob forma digital, armazenados num computador, com um estatuto idêntico ao de uma carta em papel que tenha sido recebida pelo correio, aberta e guardada num arquivo pessoal. Ou ainda com a mesma natureza de um texto escrito em programa de processamento de texto e guardado em suporte informático. Sendo meros documentos escritos, estas mensagens não gozam da aplicação do regime de protecção de reserva da correspondência e das comunicações>>.
No caso dos autos, das fotografias impressas a fls. 86 a 90 dos autos, vê-se que as conversas deixadas pelo 1.º arguido na aplicação “wechat” instalada no telemóvel do 2.º arguido já foram transmitidas (e não em via de transmissão) por esta aplicação e aí conhecidas pelo 2.º arguido (posto que este até já respondeu às mesmas pela mesma via), pelo que o facto de tais conversas assim transmitidas, e já conhecidas pelo seu destinatário (2.º arguido), se encontrarem guardadas aí na conta de “wechat” deste não impede a consideração de que essas conversas já deixaram de constituir conversação ou comunicação propriamente dita para efeitos do art.º 175.º do CPP, pelo que não é aplicável a essas conversas o regime estatuído nos art.os 172.º a 174.º do CPP. Daí que as mesmas conversas assim deixadas pelo 1.º arguido na conta “wechat” do 2.º arguido podem ser valoradas como um meio de prova legalmente admissível, em sede da formação da livre convicção do tribunal sentenciador aquando do julgamento da matéria de facto (art.os 112.º e 114.º do CPP).
Procede, pois, o recurso intercalar do Ministério Público, com o que há que revogar o despacho judicial oral recorrido, invalidando também, por simultâneo provimento do recurso final do mesmo Ente Recorrente, a decisão absolutória do 2.º arguido do inicialmente acusado crime de tráfico, devendo o mesmo Tribunal a quo voltar a julgar toda a matéria de facto objecto do acusado crime de tráfico do 2.º arguido, e proferir depois nova decisão de direito sobre a posição processual deste arguido.
Isto tudo porque o Tribunal a quo não levou em consideração, ao contrário do que seria devido jusprocessualmente, em sede da formação da sua livre convicção sobre os factos então sob indagação a respeito do crime de tráfico imputado ao 2.º arguido, o teor das conversas deixadas pelo 1.º arguido na conta “wechat” do 2.º arguido a que se referem as fls. 84 a 90.
E agora quanto ao mérito do recurso final do 1.º arguido, que ataca apenas a justeza da pena achada no acórdão recorrido ao seu crime de tráfico, realiza o presente Tribunal ad quem que vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas pelo Tribunal a quo e descritas como provadas no texto da decisão recorrida (sobretudo as quantidades concretas de diversas substâncias estupefacientes em causa), e à luz dos padrões da medida da pena vertidos nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, 65.º, n.os 1 e 2, do CP, tendo em consideração especial as inegáveis elevadas exigências da prevenção geral do delito de tráfico de estupefaciente em Macau, a pena de onze anos de prisão para este crime do 1.º arguido, como tal já fixada pelo Tribunal a quo dentro da respectiva moldura penal aplicável (de três a quinze anos) prevista na Lei de droga, já não pode admitir mais redução.
Improcede, pois, o recurso final do 1.º arguido, sem mais indagação por ociosa.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar providos os recursos intercalar e final do Ministério Público, e não provido o recurso final do 1.º arguido, revogando, pois, o recorrido despacho judicial oral sobre a questão da prova, invalidando também a recorrida decisão absolutória do 2.º arguido do inicialmente acusado crime de tráfico, devendo o mesmo Tribunal a quo voltar a julgar toda a matéria de facto objecto do acusado crime de tráfico do 2.º arguido, e proferir depois nova decisão de direito sobre a posição processual deste arguido.
Pagará o 2.º arguido as custas dos dois recursos do Ministério Público, com quatro UC de taxa de justiça no recurso intercalar e duas UC de taxa de justiça no recurso final.
E pagará o 1.º arguido as custas do seu recurso final, com três UC de taxa de justiça.
Macau, 16 de Junho de 2016.
[…]>>
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Do teor integral do acórdão de 16 de Junho de 2016 do presente Tribunal ad quem, constam as seguintes passagens:
– <<[…] vieram recorrer […] o Ministério Público […] no respeitante à decisão final absolutória do 2.º arguido do imputado crime consumado de tráfico […], pedindo, assim, […] a invalidação da decisão absolutória do 2.º arguido do inicialmente acusado crime de tráfico, com consequente reenvio do processo para novo julgamento a respeito desta parte […]>> (cfr. o 2.º e último parágrafo da página 2 do texto do acórdão, a fl. 752v dos autos);
– < A este recurso intercalar e àquele recurso final do Ministério Público, respondeu o 2.º arguido recorrido (unamente a fls. 699 a 717) que, desde já, inexistiria o objecto no recurso intercalar (por o recorrido despacho judicial proferido oralmente não ter constado da respectiva acta de audiência de julgamento), e que, subsidiaramente falando, também seria extemporâneo o recurso intercalar (por o Ministério Público não ter suscitado nada na sessão da audiência de julgamento), e que, fosse como fosse, seria salva a decisão judicial que o Ministério Público pretendia impugnar no recurso intercalar, o que prejudicaria, por decorrência lógica da questão da prova proibida, o recurso final do Ministério Público>> (cfr. o teor dos 2.º e 3.º parágrafos da página 3 do acórdão e do 1.º parágrafo da página seguinte do mesmo, a fls. 753 a 753v dos autos);
– < – na acta da sessão de audiência de julgamento, realizada no dia 13 de Julho de 2015 (cfr. o teor dessa acta lavrada a fls. 604 a 604a-verso), não consta nenhuma referência à “afirmação judicial” aludida na motivação do recurso intercalar do Ministério Público, acerca da não valoração, como prova, das conversas (a que aludem as fls. 84 a 90 dos autos) deixadas pelo 1.º arguido na aplicação “wechat” instalada no telemóvel do 2.º arguido; entretanto, o Ministério Público recorrente retirou, a partir do teor da gravação da audiência de julgamento, o conteúdo dessa “afirmação judicial” (no sentido de que a propósito do teor das conversações na aplicação “wechat” instalada no telemóvel do 2.º arguido a que se referem as fls. 84 a 90 dos autos, não se pode falar das conversas aí do 1.º arguido, porque estas não servem como meio de prova);
– até à interposição, em 29 de Julho de 2015, desse recurso intercalar, o Ministério Público e o 2.º arguido não chegaram a suscitar qualquer questão sobre a falta de referência dessa “afirmação judicial” na referida acta da sessão de audiência de julgamento (cfr. o que resulta do exame do processado de fls. 604 a 666);
– na resposta ao recurso intercalar do Ministério Público, o 2.º arguido alegou sobretudo que as decisões oralmente proferidas em audiência de julgamento que conheçam de qualquer questão interlocutória têm necessariamente de estar consignadas na acta, e que a inobservância desta regra implica a inexistência da respectiva decisão e consequentemente a impossibilidade de ser sindicada em sede de recurso>> (cfr. o teor dos últimos dois parágrafos da página 4 do acórdão e dos três primeiros parágrafos da página seguinte do mesmo, a fls. 753v a 754 dos autos, e com o sublinhado acima feito só agora);
– < Nesses parâmetros, e por uma questão de lógica processual, há que conhecer primeiro do recurso intercalar do Ministério Público.
Dos elementos processuais acima coligidos dos autos, resulta nítido que este recurso foi tempestivamente interposto dentro do prazo de vinte dias fixado no art.º 401.º, n.º 1, do CPP.
E este recurso não deve ser rejeitado por falta de objecto, porquanto se é certo que a “afirmação judicial” oral sob impugnação pelo Ministério Público não constou efectivamente da acta da sessão de audiência de julgamento em que foi feita essa afirmação, não é menos certo que esse problema de tal afirmação oral não ter constado da acta só traduziu uma irregularidade processual no acto de elaboração da acta (cfr. as disposições conjugadas dos art.os 86.º, n.º 4, 89.º, n.os 1 e 2, alínea d), 105.º, n.º 2, e 110.º, n.º 1, do CPP), e como tal não pôde ter implicado a inexistência de tal afirmação judicial, porque esta já estava gravada>> (cfr. o teor de toda a página 6 do acórdão e do 1.º parágrafo da página seguinte do mesmo, a fls. 754v a 755 dos autos, e com o sublinhado acima feito só agora).
O 2.º arguido diz, no petitório de arguição de nulidade ora sub judice, que ele chegou a alegar, na sua resposta então apresentada ao recurso intercalar do Ministério Público, que como o Ministério Público recorrente alega que a decisão por este impugnada viola o art.º 112.º do CPP, então, a julgar-se existir essa decisão, o momento oportuno para atacar a validade da mesma decisão seria precisamente a audiência de discussão e julgamento, sob pena de, em sede de recurso, já um eventual vício se mostrar sanado. (Tese essa, do 2.º arguido, aliás já referida inclusivamente em súmula na parte do relatório do acórdão de 16 de Junho de 2016).
Assim, avança o 2.º arguido, no petitório de arguição de nulidade, que: “caberia ao Tribunal de Segunda Instância, antes de decidir pela apreciação do alegado vício invocado pelo Ministério Público, pronunciar-se sobre a invocada extemporaneidade da arguição do referido vício, sob pena de nulidade em virtude da decisão proferida incorrer em omissão de pronúncia nos termos conjugados do n.º 2 do art. 563º e alínea d) do n.º 1 do art. 571º ambos do Código de processo Civil, ex vi, art. 4º do Código de Processo Penal”; “Daí que, tendo o Ministério Público discordado do entendimento do Meritíssimo Juiz a quo, pelo facto da decisão por ele proferida ser alegadamente violadora do preceituado no artigo 112º do CPP, era na audiência de julgamento que teria necessariamente de ser invocada essa violação”; “E, consequentemente, nunca poderia esse Venerando Tribunal dar provimento ao recurso interlocutório interposto pelo Ministério Público cujo fundamento, como se disse, está assente na existência de um alegado vicio cuja arguição é claramente extemporânea”; “Nem tão pouco se alegue que o Tribunal de Segunda Instância se pronunciou pela tempestividade do recurso interposto pelo Ministério Público, porquanto não foi essa a extemporaneidade que foi pelo ora Requerente colocada em causa.// Mas sim, a tempestividade da arguição do vício por parte do Ministério Público” (cfr. o teor literal das páginas 5 a 7 desse petitório, a fls. 770 a 772 dos autos).
Entretanto, é de chamar a devida atenção do 2.º arguido para o seguinte: da fundamentação fáctica do acórdão de 16 de Junho de 2016, se vê, com nitidez, que a sessão de audiência de julgamento em primeira instância foi realizada em 13 de Julho de 2015 e que o Ministério Público interpôs o recurso intercalar em 29 de Julho de 2015, daí que na fundamentação jurídica do mesmo acórdão, decidiu este Tribunal que o recurso intercalar do Ministério Público “foi tempestivamente interposto dentro do prazo de vinte dias fixado no art.º 401.º, n.º 1, do CPP”, decisão essa que representa a decisão de improcedência da questão de extemporaneidade do recurso intercalar, como tal suscitada pelo 2.º arguido na resposta a esse recurso.
Sendo de notar que a tese do 2.º arguido de extemporaneidade de arguição, pelo Ministério Público, na motivação do recurso intercalar, do vício de violação do art.º 112.º do CPP é uma autêntica ofensa ilegal ao sentido e alcance da própria norma do art.º 401.º, n.º 1, do CPP, visto que se procedesse esta tese sui generis desse arguido, todo o fundamento do recurso ordinário, jusprocessualmente admissível, de qualquer decisão judicial proferida em sessão de audiência de julgamento teria que ser invocado logo no momento de proferimento da decisão judicial recorrenda!...
O acórdão de 16 de Junho de 2016 não padece, pois, da nulidade arguida pelo 2.º arguido.
No fundo, o que o 2.º arguido pretende é tentar, através do mecanismo de arguição de nulidade do acórdão, fazer alterar o julgado feito nesse aresto a seu favor, mas tudo em vão, como já se demonstra acima (e sem mais indagação por desnecessária).
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar improcedente a arguição de nulidade do acórdão de 16 de Junho de 2016.
Custas do processado dessa arguição pelo 2.º arguido, com quatro UC de taxas de justiça.
Macau, 14 de Julho de 2016.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)



Processo n.º 830/2015 Pág. 1/27