Proc. nº 372/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Julho de 2016
Descritores:
-Execução
-Embargos de terceiro
-Acção de usucapião
- Excepção de caso julgado
- Autoridade de caso julgado
SUMÁRIO:
I. Tendo os embargos de terceiro sido julgados improcedentes em virtude de o embargante ter invocado simplesmente a posse e não a propriedade do bem penhorado, inexiste caso julgado (nem na vertente exceptiva, nem na da autoridade do caso julgado) que impeça o embargante de instaurar posteriormente acção autónoma tendente à demonstração da aquisição da propriedade por usucapião.
II. Pode o autor na acção de usucapião formular o pedido de levantamento da penhora e cancelamento do respectivo registo.
III. O caso julgado, enquanto excepção dilatória, pressupõe uma tríplice identidade: de “sujeitos”, “pedido” e “causa de pedir”. Tem em vista impedir a repetição de uma causa face ao resultado de outra já decidida e, nesse sentido, vem sendo considerada como excepção com uma vertente negativa.
IV. A autoridade de caso julgado surge nalguma doutrina e jurisprudência como modo de estender a eficácia do caso julgado onde, em princípio, ela não iria, face aos requisitos sabidos da excepção prevista nos arts. 416º e 417º do CPC.
Proc. nº 372/2016
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, casado com B, no regime de separação de bens, de nacionalidade chinesa, residente nos Estados Unidos da América em ... instaurou no TJB (Proc. nºCV3-15-0011-CAO) acção declarativa com processo ordinário contra: ---
I. “EMPRESA DE FOMENTO E INVESTIMENTO C (MACAU), LIMITADA”, sociedade comercial com sede em Macau na…, registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º…; e
II. MINISTÉRIO PÚBLICO, ---
Pedindo que: ---
(i) o Autor fosse declarado, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, como o único proprietário da tracção autónoma designada por “B1”, do 1.º andar “B”, para habitação, do prédio sito em Macau na …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º…, a fls…. do livro …, por a haver adquirido por usucapião; e
(ii) fosse ordenado o levantamento da penhora efectuada nos autos de Execução por Custas n.º CV2-07-0042-CAO-A e que incide sobre a mencionada fracção autónoma e o cancelamento do respectivo registo na Conservatória do Registo Predial de Macau, a que corresponde a inscrição n.º … do Livro ….
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Foi, na oportunidade, proferida sentença que declarou o autor titular do direito resultante da concessão do terreno da fracção autónoma acima referida e julgou extinta a instância relativamente ao pedido de levantamento da penhora efectuada na execução por custas acima mencionada.
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Contra esta decisão recorreu o autor na parte em que julgou extinta a instância relativa ao pedido de levantamento da penhora.
Na respectiva alegação de recurso, o autor da acção apresentou as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto da parte da sentença de fls. 228 e seguintes que, não dando provimento ao pedido formulado na alínea b) da petição inicial, “julgou extinta a instância relativa ao pedido de levantamento da penhora efectuada nos autos de Execução por Custas n.º CV2-07-0042-CAO-A”.
2. Os fundamentos da decisão recorrida constam da sua parte final e resumem-se ao facto de o Tribunal a quo ter considerado que o pedido de levantamento da penhora e de cancelamento do respectivo registo está abrangido pela excepção de caso julgado relativamente à decisão que declarou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelo ora Autor contra os ora Réus (aí embargados) com fundamento na posse, e que correram por apenso à dita execução e onde foi formulado idêntico pedido.
3. O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva exercida através da autoridade do caso julgado e que no caso dos embargos de terceiro encontra acolhimento no artigo 299.º do CPC; e uma função negativa exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas (artigo 416.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
4. O caso julgado como excepção pressupõe a tríplice identidade a que o artigo 417.º do CPC faz referência e distingue-se do caso julgado como autoridade, uma vez que este pressupõe a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se deste modo que a relação material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a tríplice identidade mencionada no artigo 417.º do CPC.
5. Posto isto, afigura-se ao Recorrente ser manifesto que o pedido de levantamento da penhora sobre a fracção autónoma “B1” e cancelamento do respectivo registo não viola o caso julgado como excepção, nem como autoridade.
6. Com efeito, começando pelo caso julgado como excepção, a tríplice identidade que o artigo 417.º exige para a verificação desta excepção dilatória não se mostra satisfeita pois, não obstante, haver uma identidade de sujeitos e pedido, as causas de pedir que servem de fundamento ao pedido de levantamento da penhora e cancelamento do correspondente registo são distintas.
7. Efectivamente, ao passo que na presente acção a causa de pedir do aludido pedido consiste na titularidade por parte do Autor do direito de propriedade sobre a fracção autónoma penhorada (por a haver adquirido por usucapião), nos embargos de terceiro idêntico pedido teve como fundamento único a posse do bem penhorado e não a titularidade do direito de fundo.
8. O que acima se disse resulta evidente não só do alegado nos artigos 72.º a 78.º da petição inicial (e também do ponto III. das alegações de direito do Autor) mas também da fundamentação do douto acórdão do Tribunal de Segunda Instância (TSI) que julgou definitivamente improcedentes os embargos de terceiro - e cujo caso julgado o Meritíssimo Juiz a quo considera vincular os presentes autos - em que é dito com toda a clareza que a causa de pedir invocada para fundamentar o pedido de levantamento da penhora consistiu somente na posse sobre o imóvel, e não na titularidade do direito de propriedade.
9. Por outro lado, a decisão proferida nos embargos nunca poderia ter autoridade de caso julgado na presente acção uma vez que o objecto da decisão aí proferida, ou seja a relação material controvertida aí definida, é distinta daquela que é objecto destes autos.
10. Com efeito, conforme, uma vez mais decorre com clareza da fundamentação do acórdão e da sentença que julgaram os embargos de terceiro, a situação ou a relação jurídica material controvertida objecto destas decisões situou-se unicamente no plano da posse, não se alargando ao plano da titularidade do direito de fundo - o direito de propriedade - que é invocado nos presentes autos como a razão para que seja ordenado o levantamento da penhora por esta sucumbir perante a aquisição Originãria1 do direito por usucapião.
11. Não tendo nem a existência do direito de propriedade do embargante sobre a fracção penhorada, nem a (in)oponibilidade de tal direito à penhora ou ao direito de propriedade ao exequente/embargado sido objecto de apreciação (julgamento) nos embargos de terceiro, porque tal direito não foi aí arrogado (sendo que, nada assim o obrigava atenta a redacção do artigo 292.º do CPC que permite que os embargos se fundem apenas na posse), nada impede o Tribunal de, nesta acção, apreciar o mérito de um novo pedido de levantamento deste ónus e consequente cancelamento do respectivo registo fundado agora na titularidade do direito adquirido por usucapião, uma vez que o objecto das duas decisões não é o mesmo, isto porque posse e a propriedade correspondem a distintas situações ou relações jurídicas materialmente controvertidas.
12. E é o próprio acórdão a que se vem fazendo menção que lapidarmente o confirma ao afirmar: “Tanto assim, tão necessário individualizar a causa de pedir para embargar, que, se invocada a propriedade nos embargos, já não será possível ao embargante, numa acção de reivindicação, fazer valer o seu direito; já não assim, não vindo invocada a propriedade. (Vd. Nesta linha o Ac. STJ, de 8/1/2009, Proc. n.º 08B3797 e aposição vertida).”
13. Aliás, o entendimento preconizado pelo acórdão a que se tem vindo a fazer menção mais não é do que a decorrência do disposto no artigo 299.º do CPC que estabelece precisamente o alcance da autoridade do caso julgado material da sentença de mérito proferida nos embargos de terceiro sendo, por isso, urna norma especial em relação ao artigo 576.º do mesmo diploma.
14. Tendo, por conseguinte, os embargos de terceiro deduzidos pelo Autor ora Recorrente sido, como já se disse, exclusivamente decididos no plano da posse, e não no da titularidade do direito de fundo (a propriedade), a decisão aí proferida nunca poderia fazer caso julgado nos presentes autos no que se refere à existência ou inexistência desse direito, apenas a podendo vincular quanto à posse dando-se como assente, como ali se deu, que o aí embargante era já possuidor do imóvel à data da penhora.
15. A provar isto está, aliás, a circunstância de o Tribunal a quo não se ter coibido (e bem) de apreciar do mérito do pedido de declaração do Autor como proprietário da fracção “81” por a haver adquirido por usucapião, dando procedência a este pedido, não obstante o acórdão que julgou improcedentes os embargos de terceiro ter dado como assente o direito de propriedade do executado (aqui Réu) sobre esse mesmo imóvel e de ter fundado na existência deste direito a decisão de improcedência do pedido de levantamento da penhora.
16. A jurisprudência comparada dos tribunais portugueses suporta plenamente as alegações do Recorrente citando-se a título meramente exemplificativo o Acórdão da Relação de Évora de 25/11/2004 (Proc. n.º 885/04-2) que explica que “O alcance do caso julgado terá de ser aferido em função dos fundamentos dos embargos e assim: - Se os embargos se fundarem em direito de fundo do terceiro, ficará assente a sua existência ou inexistência deste direito; - Se a causa se mantiver no âmbito da posse, ficará assente que o terceiro era ou não possuidor do bem penhorado à data da penhora; - Se for invocado em reconvenção o direito de propriedade (ou outro direito real de gozo) do executado, ficará assente que este é ou não o proprietário do bem penhorado (ou titular do direito real menor invocado) ”.
17. E o Acórdão da Relação do Porto de 27.3.1995 que afirma: “A decisão proferida nos embargos de terceiro deduzidos à penhora não constitui caso julgado relativamente à acção sumária em que é pedido reconhecimento do direito de propriedade sobre os bens penhorados, já que é diferente a cause de pedir, que nos embargos é a posse e na acção sumária o direito de propriedade”.
18. Sendo, portanto, o âmbito do caso julgado formado nos embargos de terceiro a que se vem fazendo referência meramente o da posse, não ocorre a excepção de caso julgado impeditiva da reapreciação da questão da oponibilidade ou inoponibilidade da aquisição originária por usucapião do imóvel penhorado pelo Autor/Recorrente a essa penhora, nem tão pouco a decisão de improcedência dos embargos de terceiro, proferida com base no referido fundamento, poderia ter autoridade de caso julgado na presente acção cujo objecto é o direito de propriedade sobre o bem penhorado e não a sua posse.
19. Assim, andou mal o Tribunal a quo ao dar como verificada a excepção dilatória de caso julgado e declarando, em consequência, extinta a instância relativamente ao pedido de cancelamento da penhora efectuada nos Autos de Execução por Custas n.º CV2-07-0042-CAO-A, com isso violando e fazendo uma errada aplicação dos artigos 230.º, n.º 1, alínea e), 299.º, 416.º, 417.º, 574.º, n.º 1, 576.º, n.º 1 e 582.º todos do CPC.
20. Não se verificando, pois, que a decisão proferida nos embargos de terceiro impeça a apreciação do pedido de cancelamento da penhora formulado na presente acção, ou possa vincular a decisão a proferir neste processo, por não existir caso julgado material como excepção, ou como autoridade, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, com a apreciação por este Venerando Tribunal, pois a isso não está impedido por força do disposto no artigo 630.º do CPC, do mérito da causa.
21. Ora, em face da matéria que foi dada como assente e que motivou a procedência do pedido de declaração do Autor/Recorrente como o proprietário da fracção autónoma penhorada por a haver adquirido, por usucapião, outra solução não resta se não a de declarar procedente o pedido de levantamento da penhora e cancelamento do respectivo registo.
22. Efectivamente, é entendimento unânime da jurisprudência e da doutrina que a aquisição por usucapião prevalece sobre qualquer aquisição em venda executiva resultante de uma penhora.
23. De facto, a lei, nos artigos 1213.º e 1242.º alínea c) do Código Civil (artigos 1288.º e 1317.º, alínea c) do Código Civil de 1966), determina que o momento da aquisição por usucapião retroage ao momento do início da posse, precisamente com o desiderato de tutelar o possuidor que venha a invocar (e a provar) esse direito em face de quaisquer terceiros adquirentes ou titulares de outros direitos reais de gozo ou de garantia incompatíveis com o direito de propriedade.
24. Tendo o Autor/Recorrente adquirido o imóvel por usucapião, cujos efeitos se produzem a partir do início da respectiva posse, nunca se poderia dar prevalência a uma aquisição que viesse a ocorrer posteriormente no âmbito de uma venda executiva, porquanto a 1.ª Ré, aí executada, já deixara (há muito) de ser proprietária do imóvel - não podendo portanto transmitir (ainda que forçosamente - na venda executiva) um direito que não tem!
25. Assim, quaisquer direitos incompatíveis com o direito de propriedade do Autor sobre o imóvel, em virtude da aquisição originária por usucapião, que pudessem porventura emergir para o 2.º Réu no âmbito dos Autos de Execução por Custas n.º CV2-07-0042-CAO-A, não poderão, sob qualquer circunstância, deixar de sucumbir.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente, em consequência, ser proferida decisão que:
a) Revogue a sentença recorrida na parte em que julgou extinta a instância relativa ao pedido de levantamento da penhora efectuada nos autos de Execução por Custas n.º CV2-07-0042-CAO-A que incide sobre a fracção autónoma “B1” do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, por considerar que este pedido está abrangido pela excepção de caso julgado da decisão proferida pelo T81 nos Autos de Recurso Civil e Laboral n.º 560/2015, emergentes dos Autos de Embargos de Terceiro n.º CV2-07-0042-CAO-B;
b) Considerando não se verificar tal excepção de caso julgado, nem autoridade de caso julgado do referido acórdão em relação aos presentes autos, aprecie o mérito do aludido pedido declarando-o totalmente provido, assim ordenando o levantamento da penhora e cancelamento do respectivo registo na Conservatória do Registo Predial a que corresponde a inscrição n.º… do livro …, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!».
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Não houve resposta ao recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
O prédio a que pertence a fracção autónoma designada por “B1” do 1º andar “B”, para habitação, do prédio sito em Macau na…, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º…, a fls…. do livro…, encontra-se construído em terreno concedido por arrendamento pela Região Administrativa Especial de Macau, conforme inscrição n.º…, a fls. … do livro….
Encontrando-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo….
Tendo o valor matricial de MOP$494.560,00, muito embora o seu valor real se cifre num valor aproximado de MOP$1.500.000,00.
A fracção autónoma encontra-se registada na Conservatória do Registo Predial a favor da 1ª Ré, Empresa de Fomento e Investimento C (Macau) Limitada, conforme inscrição n.º…, a fls…. do Livro….
Com efeito, em 11 de Janeiro de 1992 o Autor celebrou com a 1ª Ré (como se disse proprietária registada da fracção autónoma) um acordo nos termos do qual lhe prometeu comprar e esta lhe prometeu vender o imóvel em apreço.
Conforme resulta do clausulado do aludido contrato, a 1ª Ré promitente vendedora e o Autor promitente-comprador acordaram expressamente que o preço de venda da dita fracção seria de HKD$448.800,00.
Também como consta do contrato a que se vem fazendo menção em 28 de Dezembro de 1991 o Autor já havia pago à 1ª Ré, a título de sinal e antecipação do pagamento do preço, a quantia de HKD$200.000,00.
O remanescente do preço convencionado foi, por sua vez, pago pelo Autor à 1ª Ré em 7 de Maio e 15 de Outubro de 1992, tendo esta, conforme se havia contratualmente obrigado, emitido e entregue ao Autor os respectivos recibos de quitação.
Ora, após o recebimento integral do preço de aquisição da fracção autónoma (l5/10/1992) e sensivelmente na mesma data a 1ª Ré entregou ao Autor as chaves da fracção autónoma.
Efectivamente, desde a data em que pagou a totalidade do preço de aquisição da fracção autónoma e recebeu as respectivas chaves (meados de Outubro de 1992) que o Autor vem agindo na convicção e com a intenção de exercer sobre o referido imóvel o direito de propriedade como verdadeiro direito próprio.
Tanto assim que, após ter recebido as chaves da fracção autónoma o Autor decidiu proceder à sua limpeza com o fito de aí instalar o seu domicílio.
Tendo igualmente e com o mesmo propósito mobilado a fracção autónoma com os móveis necessários ao conforto doméstico, tais como sofás, mesas, cadeiras e cama.
E instalado ainda alguns electrodomésticos, nomeadamente um aparelho de ar condicionado e um frigorífico, tudo na convicção de se tratar do verdadeiro e único proprietário deste imóvel.
Acresce que, após ter ocupado a fracção autónoma o Autor procedeu à mudança para o seu nome do contador relativo ao fornecimento de energia eléctrica no dito imóvel.
Procedendo desde então, a suas expensas, ao pagamento das respectivas despesas, tudo conforme se comprova por cópias de diversas facturas emitidas pela Companhia de Electricidade de Macau - CEM, S.A.
O mesmo sucede com as despesas relativamente ao fornecimento de água na fracção autónoma que vêm sendo exclusivamente pagas pelo Autor, não obstante nas respectivas facturas constar ainda o nome do representante da 1ª Ré na celebração do contrato-promessa de compra e venda relativo a este imóvel.
Por outro lado, é também o Autor quem vem procedendo ao pagamento das respectivas despesas de condomínio da fracção autónoma - desde a data que lhe foi entregue e tomou posse da fracção autónoma (meados de Outubro de 1992) e que, como já se disse, coincidiu com o pagamento integral do preço estipulado no contrato-promessa e até hoje.
Todas as supra mencionadas despesas foram suportadas exclusivamente pelo Autor que as fez e tem vindo a fazer por conta e na plena convicção de estar a cuidar do seu imóvel
Passados poucos meses após ter começado a residir na fracção autónoma, o Autor decidiu emigrar para os Estados Unidos da América (EUA) onde, desde então e até hoje, mantém o seu domicílio habitual deixando, como tal, de ter residência no imóvel objecto da presente acção.
Foi nessa convicção que, antes da sua partida para os EUA o Autor encarregou o seu irmão D de, em seu nome, providenciar pelo dito imóvel tendo, para o efeito, entregue as respectivas chaves.
Assim, D passou, em cumprimento das instruções do Autor, a deslocar-se periodicamente à fracção autónoma de modo a certificar-se do seu estado de conservação e a proceder à sua limpeza.
Esta situação manteve-se sensivelmente até ao ano de 2003 altura em que, devido a afazeres profissionais, o irmão do Autor não mais se pôde encarregar da tarefa que este lhe havia incumbido.
Foi então nessa altura que o Autor solicitou a uma sua amiga, de nome Leong X , que passasse a desempenhar as funções que anteriormente eram levadas a cabo pelo seu irmão.
A Sra. Leong acedeu ao pedido do Autor, tendo recebido as chaves da fracção autónoma e passado, a solicitação deste, a deslocar-se uma ou duas vezes por ano ao imóvel a fim de se certificar do seu estado de conservação e zelar pela sua manutenção.
Nesse âmbito, a Sra. Leong continuou, à semelhança do que fazia o irmão do Autor a, em nome e sob as instruções deste, efectuar a limpeza da fracção autónoma e a providenciar pelo pagamento das despesas de condomínio, do abastecimento de água e electricidade.
Acresce que, mais recentemente, uma vez que o contrato de arrendamento relativo à fracção onde residia chegou ao seu termo e face às dificuldades em encontrar outro local para residir em virtude das elevadas rendas que se vêm registando no mercado imobiliário de Macau, a Sra. Leong solicitou ao Autor que a autorizasse a residir temporariamente na fracção autónoma juntamente com o seu marido e os dois filhos.
Em virtude dos laços de amizade que de há longa data o unem à Sra. Leong, o Autor acedeu ao pedido desta autorizando-a a residir a si e ao seu agregado familiar na fracção autónoma.
Após receber esta autorização a Sra. Leong decidiu inclusive instalar na fracção autónoma uma máquina de lavar a roupa e novos armários de forma tomá-la mais confortável.
Concluída a instalação do supra mencionados equipamentos a Sra. Leong e a sua família passara a residir na fracção autónoma no inicio de Outubro de 2012, onde ainda se mantêm, sempre sob a autorização do Autor.
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III – O Direito
1 - A sentença impugnada julgou improcedente o 2º pedido - de levantamento da penhora que incide sobre o prédio, cuja propriedade reconheceu ao autor - com dois fundamentos:
1º- Este pedido deveria ser próprio de uma impugnação no âmbito da execução movida contra a aqui 1ª ré, e não desta acção que é meramente declarativa;
2º - Além disso, o autor/recorrente chegou a instaurar uns embargos de terceiro, que, porém, foram improcedentes, com base na circunstância de o embargante não ter formulado ali o pedido de reconhecimento do direito de propriedade. E como tanto a causa de pedir como o próprio pedido (de levantamento da penhora) são iguais em ambos os processos (este em que nos encontramos e aqueles embargos), não pode o autor obter aqui o levantamento que os embargos lhe negaram, face à excepção de caso julgado (art. 416º do CPC).
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2 - Discorda o recorrente do entendimento do tribunal “a quo”.
Comecemos pelo segundo fundamento.
2.1 - O caso julgado, enquanto excepção dilatória, pressupõe uma tríplice identidade: de “sujeitos”, “pedido” e “causa de pedir”. Tem em vista impedir a repetição de uma causa face ao resultado de outra já decidida e, nesse sentido, vem sendo considerada como excepção com uma vertente negativa (cfr. arts. 416º e 417º, do CPC).
Ora, na situação em apreço, não existe a identidade de causa de pedir que a sentença recorrida apontou. Com efeito, a causa de pedir nesta acção são os factos reveladores da aquisição originária da propriedade (usucapião) sobre o bem, ao passo que nos embargos já julgados a causa de pedir foi – como a sentença acaba por reconhecer expressamente a fls. 14 (fls. 234 vº) – a mera posse (foi, aliás, por isso que a decisão dos embargos não deu satisfação ao pedido de levantamento da penhora ali formulado)1.
Por este prisma, a sentença não pode manter-se, uma vez que centrou o fundamento da decisão na ocorrência da aludida excepção, que aqui reconhecemos claramente não ter ocorrido.
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2.2 - Passemos à autoridade do caso julgado.
Como foi dito, no Ac. deste TSI, em 21/05/2015, Proc. nº 261/2015 “Só existe um instituto atinente ao caso julgado: o previsto nos arts. 416º e 417º do CPC. E sobre ele, fala-se em caso julgado formal e material, o primeiro para dizer que tem valor intraprocessual somente, vinculando as partes no próprio processo (são os limites subjectivos e a eficácia relativa do caso julgado), e o segundo para fazer entender que a relação material em litígio, com o trânsito da decisão respectiva, fica definitivamente resolvida, tendo força obrigatória dentro e fora do processo, impedindo que o mesmo ou diferente tribunal possa definir a relação jurídica em moldes diferentes daqueles (estamos já no âmbito dos limites objectivos do caso julgado).
Quando se fala em caso julgado, é basicamente na excepção ali prevista que se pensa. O caso julgado é, nesse sentido, uma excepção dilatória que pressupõe uma tríplice identidade: de sujeitos, pedido e causa de pedir. Tem em vista impedir a repetição de uma causa face ao resultado de outra já decidida e, nesse sentido, vem sendo considerada como excepção com uma vertente negativa.
Por vezes, não se verificam os requisitos do caso julgado, mas ainda assim é necessário estender a eficácia de uma sentença transitada anteriormente, como modo de a fazer impor-se para a solução em outro litigio posterior. Nesse caso, diz-se que o assunto está resolvido pela primeira decisão, que assim se impõe e é, então, que se fala na vertente positiva do caso julgado, através daquilo que se vem convencionando autoridade do caso julgado (…).
Esta autoridade de caso julgado surge assim nalguma doutrina e jurisprudência como modo de estender a eficácia do caso julgado onde, em princípio, ela não iria, face aos requisitos sabidos da excepção prevista nos arts. 416º e 417º acima referidos. Há limitações, porém, que é preciso respeitar. (…).
A circunstância, por exemplo, de numa acção ter sido decidida a favor de uma das partes a aquisição da propriedade pela força da usucapião não obsta a que um terceiro, que não foi parte no primeiro processo venha a adquirir pela mesma via de usucapião a propriedade sobre o mesmo prédio, não se podendo, em tal hipótese invocar aqui nem o caso julgado, nem a autoridade do caso julgado”.
Ora, o facto de os embargos terem sido improcedentes ficou a dever-se à circunstância de neles ter sido invocada a mera posse. Nesse sentido, a sorte sobre o pedido de levantamento da penhora foi o corolário lógico da decisão sobre o pedido principal. Significa isto que aquela decisão dos embargos não constitui obstáculo ou entrave que represente prejudicialidade negativa ao êxito da demanda que teve lugar na presente acção ordinária. E tanto é assim que ela foi julgada procedente quanto ao pedido principal.
Por conseguinte, por a decisão dos embargos não ter feito uma análise de fundo sobre a causa de pedir que ora se ergue como fundamento do pedido de levantamento, também não vemos sequer que se possa invocar aqui a autoridade de caso julgado que impeça a sua procedência na presente acção.
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3 – Vejamos agora o primeiro fundamento utilizado na sentença, referente à propriedade do meio utilizado para o levantamento da penhora. E devemos adiantar, desde já, que o tribunal “ a quo” não tem razão.
Efectivamente, e tal como resulta de Ac. da RP, de 6/12/2004, Proc. nº 0456448 (que aqui citamos em termos de direito comparado) lavrado no âmbito de sobre acção ordinária subsequente a uma execução seguida de penhora, “O Tribunal comum é o competente, em razão da matéria, para conhecer de acção de reivindicação de um imóvel penhorado em execução fiscal, onde, além do pedido de reconhecimento do direito e propriedade, se pede a declaração de nulidade da penhora do imóvel reivindicado”.
Foi, aliás, dito noutro processo:
“A acção para a aquisição por usucapião do direito de propriedade das fracções penhoradas (Proc. n.º 153/2000 do 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais), intentada depois dos embargos de terceiro, é autónoma em relação à acção executiva, da qual os embargos de terceiro são um incidente __ mais especificadamente de intervenção de terceiros (art.ºs 351º e segs.) __, embora continuem a ser uma acção declarativa com a finalidade de verificar a existência de um direito ou de uma posse. Esta tem reflexos directos na acção executiva. A outra também os pode ter se for julgada procedente primeiro que os embargos de terceiro, ou, sendo-o depois, se estes tiverem sido julgados improcedentes e a acção for julgada procedente. No primeiro caso a procedência acção leva ao levantamento da penhora, e torna os embargos de terceiro supervenientemente inúteis, por extinção do seu objecto [art.º 287º, n.º 1 al. e) do Cód. Proc. Civil], visto que são um meio de tutela contra a apreensão judicial e ilegal dos bens de terceiro[ Vd. Salvador da Costa, Os incidentes da instância, Liv. Almedina, Coimbra – 1999, pág. 179.], visando levantar essa apreensão. No segundo caso não. A acção apenas tem reflexos directos na acção executiva: pode anular a venda se esta entretanto tiver ocorrido. No caso dos embargos de terceiro serem julgados primeiro que a acção e forem julgados procedentes, levantam a penhora, impedem que a acção tenha reflexos sobre a acção executiva __ a acção não levantará a penhora que já foi levantada pela procedência dos embargos de terceiro __, mas, fundando-se in casu em serem as embargantes possuidoras-proprietatárias (aquisição derivada do direito de propriedade), e sendo a posse uma posse causal, não atacam os pressupostos necessários da acção, nomeadamente a posse boa para usucapião, e, por conseguinte, não prejudica o conhecimento desta, pois se se verificar a posse e o decurso do tempo necessário, produz-se a aquisição por usucapião do direito de propriedade. Mas mais, no caso dos autos as embargantes deduzem-nos com base em que são possuidoras-proprietárias (aquisição derivada do direito de propriedade). E estes podem ser apenas procedentes quanto à posse e não quanto à propriedade por aquisição derivada. Também aqui a posse boa para usucapião como pressuposto necessário para a aquisição do direito de propriedade por usucapião (aquisição originária ex novo) fica intocável, não sendo afectado pelos embargos de terceiro.” (Ac. RL, de 16/12/2003, Proc. nº 7724/2003).
Daqui decorre, portanto, que nenhum obstáculo parece existir a que nesta acção declarativa, uma vez procedente o pedido tendente à aquisição da propriedade por usucapião, se ordene o levantamento da penhora.
Ao ser decretada a propriedade originária a favor do autor, com efeitos reportados ao início da posse (cfr. arts. 1213º e 1242º, al. c), do CC) a penhora deixa de poder subsistir. Como é dito no Ac. do STJ, de 5/06/2007, Proc. nº 07A1473 “Porque na ordem jurídica portuguesa a usucapião prevalece sobre o registo, o comprador que não registou a aquisição de um imóvel mas logrou fazer prova da aquisição originária (usucapião), não vê o seu direito afectado por ulterior penhora daquele bem…”
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, em consequência do que revogamos a sentença na parte aqui impugnada e julgamos procedente o pedido de levantamento da penhora efectuado e o respectivo cancelamento na Conservatória do Registo Predial de Macau a que corresponde a inscrição nº …, dlo livro ….
Custas totais em ambas as instâncias pela 1ª ré da acção, “Empresa de Fomento e Investimento C (Macau), Limitada”.
TSI, 07 de Julho de 2016
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 No mesmo sentido, da inexistência da identidade da causa de pedir entre embargos fundados na posse e acção declarativa fundada na propriedade, no direito comparado o Ac. RP, de 27/03/1995, Proc. nº 9451191
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372/2016 21