Proc. nº 1001/2015
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 14 de Julho de 2016
Descritores:
-Suspensão da instância
-Outro motivo justificado
SUMÁRIO:
I. Nos termos do art. 223º, nº1, do CPC a suspensão da instância pode verificar-se com fundamento na relação de prejudicialidade da causa em relação a outra interposta ou a interpor (1ª parte), ou com base na ocorrência em “outro motivo justificado” (“fine”).
II. Ao abrigo do art. 223º, nº1, “fine” do CPC faz sentido, é lógica e racional a suspensão da instância da acção de inventário instaurada na sequência de uma acção de divórcio julgada procedente, a fim de que o réu instaure na República Popular da China uma acção tendente a demonstrar a inexistência de casamento invocado pela autora.
Proc. nº 1001/2015
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.
I – Relatório
A, divorciada, de nacionalidade chinesa, titular do BIRPM n.º…, residente no…, Macau, por apenso a processo de divórcio nº CV2-11-0005-CDL, instaurou no TJB (CV2-11-0005-CDL-C) processo especial de inventário contra B, divorciado, titular do BIRM n.º…, residente no…Macau, tel.: …. (adiante designado por “requerido”).
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Nesse processo o requerido deduziu oposição, suscitando a ilegitimidade da requerente, alegando nunca ter contraído casamento com ela e que o divórcio decretado assentou em documentos falsos.
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Por despacho de 22/11/2013, o juiz titular do processo ordenou o prosseguimento dos autos para partilha.
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A fls. 174 dos autos, o requerido veio esclarecer ter intentado uma “acção administrativa” na RPC com vista à revogação do certificado de casamento emitido pelo órgão administrativo identificado e à declaração de que ele e a requerente nunca contraíram casamento entre si. Requereu então a suspensão da instância nos termos do art. 223º, nº1, do CPC.
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Por despacho de fls. 200 foi então ordenada a suspensão da instância.
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Dele foi, porém, interposto recurso jurisdicional pela requerente, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso tem por objecto a decisão da suspensão da instância do despacho proferido pelo TJB em 5 de Junho de 2015.
2. Em primeiro lugar, salvo o devido respeito ao despacho do tribunal a quo, o Tribunal a quo entende que a existência ou não do casamento entre o recorrido e a recorrente é questão prévia do presente processo de inventário, a recorrente não concordou com esta opinião.
3. No processo de divórcio n.º CV2-11-0005-CDL, o recorrido já foi citado, mas não contestou.
4. O recorrido também não interpôs recurso ordinário no prazo legal contra a sentença do divórcio, desistindo voluntariamente do direito de defesa.
5. Este processo de inventário correu por apenso ao processo de divórcio litigioso supracitado.
6. Em função da interpretação sistemática do art.º 1028.º n.º 3 (sic.) do Código do Processo Civil, o processo de inventário foi efeito segundo os factos e a decisão do processo de divórcio litigioso.
7. Já foi provado o facto de casamento sob o registo na autoridade competente do Distrito de Zhongshan da China entre a recorrente e o requerido em 24 de Abril de 1952.
8. Portanto, no presente processo de inventário não de pode levantar impugnação contra os mesmos factos, assim, não se pode considerar “a existência de casamento entre a recorrente e o recorrido” como a questão prévia.
9. Em segundo lugar, conforme os dados dos autos, o recorrido intentou duas acções administrativas no Interior da China: a acção administrativa n.º … no Primeiro Tribunal Popular da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong (adiante designada por “acção administrativa intentada mais cedo”, e a acção administrativa n.º … no mesmo Tribunal (adiante designada por “acção administrativa intentada mais tarde”).
10. O Tribunal a quo entende que a nova acção administrativa intentada pelo recorrido no Interior da China é acção prévia do presente inventário.
11.Face ao exposto, já foi provado o facto de casamento sob o registo entre a recorrente e o recorrido, não devendo ser considerado como questão prévia.
12.A acção administrativa intentada mais tarde visa resolver a questão de “existência de casamento entre a recorrente e o recorrido”, evidentemente não deve ser considerada como acção prévia.
13.Ademais, embora seja condenado procedente a fundamentação do recorrido e a decisão seja confirmada pelo tribunal de Macau, nos termos do art.º 580.º n.º 1 do Código do Processo Civil, deve ainda cumprir a decisão transitada em julgado em primeiro lugar, isto é, a sentença do processo de divórcio litigioso n.º CV2-11-0005-CDL.
14.Sem dúvida, o recorrido só pode interpor recurso de revisão contra a sentença do processo de divórcio litigioso n.º CV2-11-0005-CDL para revogar a tal sentença, e depois a respectiva sentença do Interior da China poderá ser cumprida em Macau.
15. É de indicar que nos termos do art.º 660.º n.º 4 do Código do Processo Civil, o recurso de revisão não tem efeito suspensivo.
16. Portanto, não há nenhum fundamento de direito da suspensão presente processo de inventário para aguardar pela sentença do Interior da China.
17.Nestes termos, esta acção administrativa não deve ser considerada como acção prévia.
18. Por outro lado, para efeito de prudência processual, mesmo que o Tribunal ainda entenda que seja questão prévia “a existência de casamento entre a recorrente e o recorrido, a acção administrativa intentada mais tarde pelo recorrido também não deve ser considerada como acção prévia.
19. De facto, quando o requerido pediu a suspensão de instância (24 de Julho de 2014), ele tomou a acção administrativa intentada mais cedo como acção prévia do presente processo de inventário.
20. Assim, é verdadeira acção prévia invocada pelo recorrido a acção administrativa intentada mais cedo, não a acção administrativa intentada mais tarde.
21. Todavia, a acção administrativa intentada mais cedo pelo recorrido no Interior da China já foi julgada improcedente e o recurso já foi desistido, a respectiva sentença da primeira sentença já transitou em julgado.
22.A sentença da verdadeira acção prévia já transitou em julgado, o que implica que no presente caso já não há mais questão prévia para resolver.
23.No entanto, o recorrido intentou a acção administrativa intentada mais tarde, cuja causa de pedir e pedido são quase iguais à acção intentada mais cedo, quer dizer, o recorrido intentou novamente a acção sobre a “existência de casamento entre a recorrente e o recorrido”.
24. Nestes termos, a acção administrativa intentada mais tarde não deve qualificada como acção prévia, uma vez que o que apenas demorou o andamento do presente processo.
25. Salvo o devido respeito, caso a acção administrativa intentada mais tarde seja qualificada como acção prévia, o recorrente pode intentar repetidamente a acção administrativa e depois desistir da instância, e depois intentar novamente a acção, este processo de inventário será continuado sem fim.
26. Em terceiro lugar, o Tribunal a quo ordenou a suspensão do presente processo de inventário com base meramente na nova acção administrativa intentada pelo recorrido no Interior da China.
27. É de indicar que a recorrente já exprimiu a sua posição na primeira conferência dos interessados no presente processo de inventário, não concordando com a suspensão da instância.
28. No requerimento e resposta seguintes da recorrente, além do pedido de prosseguimento do processo, requereu ainda a partilha provisória devido à menor viabilidade da acção prévia.
29. Aliás, o Tribunal proferiu o despacho recorrido, julgando que a “existência ou não de casamento entre a recorrente e o recorrido” era uma questão prévia e a acção administrativa intentada mais tarde pelo recorrido no Interior da China era uma acção prévia, pelo que nos termos do art.º 223.º n.º 1 do Código do Processo Civil, o Tribunal ordenou a suspensão do presente processo de inventário. (vide fls. 200 dos autos)
30. Salvo o devido respeito, a recorrente entende que o Tribunal a quo não resolveu o pedido de partilha adicional da recorrente, assim, existe a chamada “omissão de conhecimento” na doutrina.
31. Assim, nos termos do art.º 569.º n.º 3 e do art.º 571.º n.º 1 al. d) do Código do Processo Civil, o despacho recorrido deve ser nulo.
32. Em quarto lugar, Caso entenda que a opinião supracitada invocada pela recorrente não é suficiente, solicita ao MM.ºs Juízes que considerem mais a sentença da acção administrativa intentada mais cedo.
33. De facto, a recorrente solicitou ao tribunal a quo em 16 de Fevereiro de 2015 que ordene o recorrido a entregar a situação do acompanhamento da questão prévia e os respectivos dados da sentença, de forma a decidir se deve continuar ou não o presente processo.
34. Todavia, o recorrido apenas entregou a decisão administrativa sobre o recurso interposto contra a sentença, não apresentou a respectiva sentença.
35. Para apurar a verdade, a recorrente obteve, através da investigação no Interior da China, a cópia da sentença administrativa da acção administrativa intentada mais cedo pelo recorrido.
36. Na sentença administrativa, o pedido deduzido na acção administrativa não foi admitido por exceder o prazo legal para intentar acção.
37. Portanto, o recorrido intentou uma nova acção administrativa contra o mesmo acto comprovativo de casamento (isto é, acção administrativa intentada mais tarde), a acção não deve ser admitida nos termos legais por exceder o prazo legal para intentar acção.
38. Portanto, não devem considerar a acção intentada mais tarde como acção prévia.
39. Nestes termos, a recorrente pediu aos MM.ºs Juízes do TSI, nos termos dos art.º 616.º e 451.º do Código do Processo Civil, que autorizem a junção da cópia da sentença administrativa proferida pelo Primeiro Tribunal Popular da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong aos autos, para verificar a pretensão da recorrente.
40. Caso entenda que a cópia da sentença administrativa entregue pela recorrente não tem força probatória, nos termos dos art.ºs 455.º e 458.º do Código do Processo Civil, solicitou ao MM.ºs Juízes do TSI que ordenem o recorrido a entregar o original da respectiva sentença ou certidão válida, ou notifiquem o Primeiro Tribunal Popular da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong a fornecer a certidão válida da respectiva sentença.
41. Em quinto lugar, quer a acção administrativa intentada mais cedo, quer a intentada mais tarde, ambas acções têm por objecto o mesmo acto comprovativo da competente autoridade.
42. O pedido deduzido na acção administrativa intentada mais cedo foi julgado improcedente por exceder o prazo para intentar acção.
43. Portanto, podemos deduzir que a viabilidade da acção administrativa intentada mais tarde é extremamente menor.
44. Nestes termos, para o efeito da prudência da acção, caso entenda que a acção administrativa intentada pelo recorrido seja acção prévia, devido à sua menor viabilidade, nos termos do art.º 970.º n.º 3 do Código do Processo Civil, deve proceder ao processo de inventário para efectuar a partilha provisória.
45. Face ao exposto, quer a existência ou não de casamento entre a recorrente e o recorrido é ou não questão prévia, quer a acção intentada pelo recorrido no Interior da China é ou não acção prévia, a resposta de ambas é negativa, não podendo ser fundamento da suspensão do presente processo de inventário.
46. Caso não se entenda assim, deve prosseguir o processo de inventário devido à menor viabilidade da acção administrativa intentada mais tarde, de forma a proceder à partilha provisória.
Solicita aos MM.ºs Juízes do TSI que julguem procedente o recurso e decidem:
1. Julgar procedente o recurso e revogar o despacho recorrido, ordenando o prosseguimento do presente processo de inventário; ou ordenar o prosseguimento do presente processo de inventário e efectuar a partilha provisória nos termos do art.º 970.º n.º 3 do Código do Processo Civil;
2. Autorizar a junção da cópia da sentença da acção administrativa n.º … do Primeiro Tribunal Popular da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong da China, para provar a pretensão da recorrente.
3. Caso entendam que a cópia da sentença administrativa entregue pela recorrente não tem força probatória, nos termos dos art.ºs 455.º e 458.º do Código do Processo Civil ordenam o recorrido a entregar o original da respectiva sentença ou a certidão válida, ou notificar o Primeiro Tribunal Popular da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong da China de fornecer a certidão válida de tal sentença. Façam justiça costumada!».
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Não houve resposta a este recurso.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
1 – No processo de inventário que correu por apenso ao Proc. nº CV2-11-0005-CDL (divórcio litigioso), o requerido B deduziu oposição, suscitando a ilegitimidade da requerente, alegando nunca ter contraído casamento com ela e que o divórcio decretado assentou em documentos falsos.
2 - Por despacho de 22/11/2013, o juiz titular do processo ordenou o prosseguimento dos autos para partilha.
3 - A fls. 174 dos autos, o requerido veio esclarecer ter intentado uma “acção administrativa” na RPC com vista à revogação do certificado de casamento emitido pelo órgão administrativo identificado e à declaração de que ele e a requerente nunca contraíram casamento entre si. Requereu então a suspensão da instância nos termos do art. 223º, nº1, do CPC.
4 – Fê-lo nos seguintes termos:
«1. O ora exponente intentou uma acção administrativa para revogação, por falso, do certificado emitido pelo “中山市大涌鎮人民政府婚姻登記處” (Doc. n.º 1, ora junto).
2. Na mesma acção pretende ainda o ora exponente que seja declarado que este e a cabeça-de-casal nunca casaram em Zhongshan (cfr. Doc. n.º 1).
3. Sendo certo que o julgamento daquela acção terá lugar no dia 30 de Julho de 2014, conforme Doc. n.º 2, que ora se junta.
4. Ora, tais factos são da maior relevância para o presente processo, uma vez que se discute a partilha de bens adquiridos, em Macau e na República Popular da China, durante a constância do suposto casamento celebrado em Zhongshan.
5. Assim sendo, atento o motivo apresentado, requer-se a V. Ex.ª se digne a suspender presente pleito, nos termos do disposto no artigo 223.º, n.º 1, in fine, do Código de processo Civil.».
5 - Por despacho de 6/06/2015 (fls. 200 dos autos) foi então ordenada a suspensão da instância, com o seguinte teor:
«Nos presentes autos de inventário, o Requerido requer a suspensão de instância por alegar existir a questão prejudicial, a inexistência do casamento entre a cabeça-de-casal e o Requerido, o certificado de casamento apresentado pela cabeça-de-casal é falso. Para os efeitos, o Requerido apresentou vários documentos às fls. 176 a 181, 191 a 195.
Foi ouvido da cabeça-de-casal e vem ele opor-se. (cfr. fls.198) Cumpre decidir:
Nos presentes autos, vem o Requerido alegar que inexiste o casamento entre ele e a cabeça-de-casal, para os efeitos, ele intenta a acção administrativa para revogação, por falso, deste certificado emitido na autoridade administrativa da RPC.
Face ao teor dos documentos se juntem, sobretudo o documento n.º 2 a fls. 193 a 195, que descreve haver pendência duma nova acção interposta pelo Requerido junto do Tribunal da R.P.C., com vista ao reconhecimento de falta de fundamento de emissão de certificado entre as partes. E tal acção foi admitida pelo Tribunal da R.P.C. e se encontra a aguardar os seus ulteriores termos.
Está evidente, essa questão mostra-se prejudicial ao normal andamento da presente acção de inventário, motivo porque deve a presente acção ser suspensa.
Do art.º 223, n.º 1 do CPCM, “O Tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.”
Assim, o Tribunal ordena-se a suspensão da presente instância, nos termos do art.º 223º, nº 1, in fine, do Código de Processo Civil.
Notifique e D.N.».
6 – No Tribunal Popular da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong foi pelo aqui recorrido intentada a acção nº …, com fundamento no facto de a certidão “98” emitida pelo Governo da vila de Dayong sem ter sido feito o devido exame e autenticação da cópia apresentada pela ali requerente, ora recorrente.
7 – Nessa acção viria a ser proferida em 11 de Agosto de 2014 sentença de rejeição do pedido ali apresentado pelo ali requerente B, ora recorrido com base em extemporaneidade da sua apresentação.
8 – Contra essa decisão o aqui recorrido apresentou recurso para o Tribunal Popular de Segunda Instância de Zhongshan da Província de Hong Kong, mas, na fase do respectivo julgamento, viria a desistir do recurso, o que foi aceite por decisão judicial de 21 de Novembro de 2014.
9 – O recorrido apresentou, posteriormente, nova acção a que coube o nº 23 no Primeiro Tribunal Popular da cidade de Zhongsham em 9/01/2015, tendo os fundamentos desta vez sido a falta de competência do Governo da Vila de Dayong para emitir a referida certidão “98”, que, em sua opinião, pertence ao Governo do Distrito de Zhongshan, bem como a alegação de estar casado desde 11/10/2002 com C.
10 – A recorrente (requerente do processo de inventário) instaurou acção declarativa sob a forma de processo ordinário contra o aqui recorrido, B e D, pedindo a nulidade dos negócios jurídicos celebrados pelo ex-marido por escrituras de compra e venda de 3/01/2012 e 7/02/2012.
11 – Por sentença proferida em 4/03/2015, foi essa acção julgada provada e procedente e decretada a anulação dos negócios de compra e venda das fracções ali identificadas em que o recorrido participou como vendedor (fls. 208 a 214).
12 – Esta sentença transitou em julgado em 5/06/2015 (fls. 207).
13 - Segundo o que consta da referida sentença proferida em 4/03/2015 no processo nº CV-12-0104-CAO (fls. 208 e sgs.), o recorrido acabou por rectificar o seu estado civil, alterando o de casado para o de solteiro, e proceder à venda das fracções imobiliárias neste “novo” estado civil.
14 - Na acção nº 128 referida no ponto 6 supra o ali autor (ora recorrido) invocou ser casado com A.
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III – O Direito
1 – O caso dos autos
Na sequência de divórcio decretado no TJB em 2/05/2012, a interessada requereu o inventário e partilha de bens comuns, entre os quais duas fracções autónomas.
Mas porque tivessem sido vendidas pelo ex-marido, a autora requerera a suspensão dos autos a fim de ir discutir a legalidade da alienação.
Houve oposição ao inventário deduzida pelo requerido, nomeadamente suscitando a questão da ilegitimidade da autora e informando que irá interpor um recurso de revisão com vista a que seja proferida sentença que reconheça a falsidade dos documentos com base nos quais o tribunal os julgou casados entre si.
Na oportunidade, o interessado B, ora recorrido, requereu a suspensão do processo nos termos do art. 223º, nº1, do CPC a fim de ser concluída uma acção administrativa instaurada na RPC para revogação, por falso, de determinado documento que os dava por casados entre si por casamento celebrado em Zhongshan.
Foi, então, por despacho de 6/06/2015 decretada a suspensão da instância (fls. 200) e é dele que vem interposto o presente recurso jurisdicional.
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2 – A impugnação
A recorrente considera:
Principalmente, que
a) - A questão da existência de casamento não é questão prévia no presente processo de inventário;
b) - A acção administrativa intentada pelo recorrido não é questão prévia;
c) - O despacho recorrido padece do vício previsto no art. 571º, nº1, al. d), do CPC;
e subsidiariamente, que
d) - O tribunal a quo não conheceu da razão do decaimento na 1ª instância dos tribunais da RPC;
e) – Menor viabilidade da acção intentada pelo recorrido na RPC após a desistência na 2ª instância do recurso interposto da decisão que julgou extemporânea a acção.
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3 – 1º Fundamento impugnativo
Considera a recorrente que a existência ou não do casamento não é questão prévia no processo de inventário.
Vejamos.
Qualquer questão atinente com a inexistência do casamento deveria ter sido discutida no processo de divórcio. Com efeito, todo o divórcio assenta no pressuposto fáctico de um casamento. Ora, o recorrido, que foi citado regularmente nesse processo, não deduziu nenhuma matéria exceptiva, sendo certo que, relativamente a esta, era seu o respectivo ónus (art. 335º do CC; 412º, nº3, do CPC).
Aliás, questão similar a esta, pelo menos nalguns dos seus contornos, já foi estudada neste mesmo TSI, tendo então sido afirmado que “parece que se impunha, a não existir casamento, que [o réu] tivesse suscitado essa questão e tivesse deduzido a falsidade do certificado matrimonial” (Ac. TSI, de 26/03/2009, Proc. nº 614/2008).
O recorrido ao pretender apresentar a acção na RPC para demonstrar a falsidade do documento, mais não queria do que obter uma sentença na posse da qual se sentiria legitimado para brandir a superveniência de um documento capaz de sustentar um recurso extraordinário de revisão (cfr. art. 6º do requerimento de fls. 93).
Só que isso deveria ter sido motivo para travar o curso normal do divórcio, a título de questão prejudicial (cfr. art. 27º do CPC), tal como foi concluído no aresto deste tribunal acima referido. Ora, se o réu então citado não suscitou na altura própria essa questão prejudicial – nem sequer contestou a acção de divórcio – mal se vê como possa aceitar-se que o fundamento que pudesse servir de questão prejudicial ao divórcio, pudesse ser agora utilizado como questão prejudicial à acção de inventário.
Acontece, porém, que o tribunal “a quo”, embora tenha dito na sua fundamentação a fls. 200 que “essa questão mostra-se prejudicial ao normal andamento da presente acção de inventário”, a verdade é que na parte decisória do despacho respectivo acabou por invocar o disposto no art. 223º, nº, “in fine” (sic) do CPC para decretar a suspensão. Quer dizer, a suspensão acabou por ser baseada, não na prejudicialidade da acção a instaurar na RPC em relação ao divórcio (pelo menos, não apenas nesse motivo), mas sim (também) por o tribunal entender “ocorrer outro motivo justificado”.
Ora, esse outro motivo – que devia ter sido explicado, mas que facilmente se adivinha - ter que ver com uma razão de pura lógica, racionalidade e verdade material. É esta: Se o inventário radica num divórcio judicialmente decretado, a partilha de bens subsequente só tem sentido se, efectivamente, os interessados tiverem sido unidos pelos laços do matrimónio. Ou seja, a preocupação do tribunal a quo manifestou-se implicitamente na procura do verdadeiro estado civil do requerido.
E concordamos. Mostrar-se-ia, na verdade, pouco compreensível a pressa na divisão de bens perante a mera possibilidade de vir a ser demonstrado que o casamento nunca existiu.
É que a partilha, numa tal situação, poderia vir a ser extremamente prejudicial ao recorrido. Basta pensar que os bens que coubessem à recorrente fossem logo por ela alienados (com prejuízo para aquele, mesmo que lograsse obter êxito no recurso extraordinário de revisão), com os riscos próprios da acção de anulação do negócio por ela celebrado a interpor pelo interessado recorrido.
Assim, desde que o recorrido viesse a obter uma sentença favorável no tribunal popular da RPC, logo após viesse a pedir a sua revisão e confirmação ao abrigo do disposto nos arts. 1199º e sgs. e, finalmente, obtivesse a revisão extraordinária da sentença de divórcio nos termos do art. 653º e sgs. do CPC, teria o tribunal “a quo” contribuído para a tutela judicial efectiva e para a realização da justiça no caso concreto.
É claro que o recorrido, segundo o que consta da sentença proferida em 4/03/2015 no processo nº CV-12-0104-CAO, já transitada em 5/06/2015 (fls. 208 e sgs.), acabou por rectificar o seu estado civil, alterando o de casado para o de solteiro, e proceder à venda das fracções imobiliárias neste “novo” estado civil. Todavia, a sentença citada acabou por anular o negócio nessa acção de anulação instaurada pela aqui recorrente. De qualquer maneira, voltando os bens à titularidade de ambos os cônjuges nessa altura por iniciativa anulatória da aqui, o recorrente mantém o interesse em ver suspenso o processo de inventário, nos termos atrás explicados.
Nesta óptica, o despacho em causa não sofre de errada aplicação do art. 223º, nº1, “fine”(salvo no que concerne à ausência de fixação do prazo de duração da suspensão, face ao disposto no nº3, matéria, porém, aqui fora do objecto do recurso).
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4 - 2º Fundamento da impugnação
Diz a recorrente neste passo que a acção administrativa instaurada na RPC não é questão prejudicial.
Repetimos, porém: O que está na base da decisão impugnada no recurso jurisdicional não é uma relação de prejudicialidade da acção a instaurar nos tribunais populares da RPC em relação ao divórcio e ao inventário. Foi, como se disse, o “outro motivo justificado” que levou o tribunal a decidir a suspensão e sobre isso não vale a pena repetirmo-nos.
A verdade é que aquela acção foi instaurada1, cabendo-lhe em distribuição o nº …, no Tribunal Popular de 1ª Instância da Cidade de Zhongshan da Província de Guangdong. Na oportunidade foi proferida sentença que rejeitou o pedido por caducidade do direito de acção (por ter excedido o prazo de 5 anos nos termos dos arts. 42º, 44º, nº1, al. 6) e 63º, nº 1, al. 2) das “Interpretações de Algumas Questões Relativas à Execução da Lei do Processo Administrativo Contencioso da República Popular da China”.
O recorrido interpôs recurso jurisdicional, mas dele veio a desistir, o que foi aceite por decisão judicial de 21 de Novembro de 2014.
Posteriormente, instaurou nova acção a que coube o nº 232 no Primeiro Tribunal Popular da cidade de Zhongsham em 9/01/2015.
Ora, a circunstância de ter sido instaurada nova acção, na sequência da desistência do recurso interposto da decisão proferida na primeira, deveria levar o tribunal a não decretar a suspensão decretada?
A pergunta parece ser pertinente, na medida em que perdendo eventualmente esta acção, outra se admite que possa ser intentada e depois outra e outra ainda, numa cadeia infindável, o que pode ter o sentido de se estar a protelar o desfecho dos autos.
Contudo, a solução do tribunal “a quo” é compreensível. A desistência do recurso jurisdicional interposto da sentença proferida na primeira acção não podia precludir o direito de propor uma outra acção com base em diferentes fundamentos. E assim aconteceu, como se viu.
É claro que tudo o que possa surgir após esta 2ª acção deverá servir de reponderação. Quer dizer, se a essa acção outra se seguir, terá que ser o juiz titular do processo, oficiosamente ou sob impulso de alguma das partes nele envolvidas, a reequacionar a situação e concluir sobre a eventual (in)subsistência das razões da suspensão antes decretada e sopesar se não estará em presença de uma atitude meramente dilatória que trave o andamento do processo de inventário.
Por parte do TSI, apenas nos resta concluir pela existência de razões que justificavam a suspensão na ocasião em que o despacho em crise foi produzido, face aos fundamentos do pedido ali apresentado pelo requerido3.
De qualquer modo, cumpre-nos por ora concluir que a recorrente não tem razão no fundamento suscitado.
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5 - 3º Fundamento da impugnação
Considera a recorrente que o despacho em causa padece do vício contemplado no art. 571º, nº1, al. d), do CPC. E isto porque, tendo o interessado formulado o pedido a suspensão dos autos, a ele a recorrente se opôs, pedindo o prosseguimento dos autos até à partilha, sem que o juiz do processo lhe dedicasse uma palavra sobre esta pretensão.
Entende este TSI, porém, que o despacho em causa só tinha que responder ao pedido apresentado pelo interessado. O tribunal “a quo” apenas tinha que decidir o pedido do recorrido nesse processo, que era no sentido de suspender a tramitação normal do inventário. Bem ou mal, foi o que o tribunal fez: decidiu esse pedido e outro não havia que decidir, por prejudicada que estava a respectiva matéria (nomeadamente a da partilha adicional).
A resposta que a recorrente deu a tal pedido, quando muito podia servir de estímulo a uma decisão de sinal contrário, caso ela acompanhasse os respectivos argumentos. Contudo, o juiz, ao acolher o pedido do interessado acabou por, implicitamente, não sufragar a posição da autora. Efectivamente, ao suspender o inventário, obviamente estava a dizer que não iria proceder à partilha.
Deste modo, não concordamos que tenha havido violação do art. 571º, nº 1, al. d), do CPC.
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6 - 4º Fundamento da impugnação
Subsidiariamente, a recorrente suscita aquilo a que chamou “violação do princípio do inquisitório”.
Se bem percebemos a invocação, o que a1 move nesta invocação reside na circunstância de o recorrido não ter entregado nos autos a petição da acção nº 128, nem a sentença respectiva, mas apenas a decisão que autorizou a desistência do recurso jurisdicional que dela interpôs. E isso, apesar de a recorrente ter requerido essa junção.
Parece querer dizer a recorrente que o tribunal deveria ter obrigado o recorrido a juntar aqueles elementos (que ela mesmo agora anexa com as alegações de recurso), ao abrigo do princípio do inquisitório.
Vejamos.
O inquisitório serve para o juiz se documentar com vista ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio (art. 6º, nº3, do CPC).
Ora, é verdade que o despacho apenas tomou em consideração a propositura da segunda acção na RPC. Em todo o caso, isso não pode significar que a presença da petição inicial e da decisão tomada naquela primeira acção pudesse levar o tribunal a encaminhar-se noutra direcção, designadamente no sentido de indeferir o pedido de suspensão da instância do processo de inventário. Com efeito, o tribunal não podia dar mais relevância à primeira acção do que deu à segunda. A primeira acção já revelava a intenção do recorrido em se inconformar com os documentos apresentados pela recorrente alegadamente comprovativos sobre o seu estado civil. E a segunda apenas se deveu ao facto de a primeira ter sido rejeitada com fundamento em caducidade. E de qualquer maneira, tendo a segunda um fundamento novo, é de aceitar como possível que ela venha a ser levada até ao fim. Portanto, o que interessa destacar é o propósito de demonstrar o estado civil da recorrente.
Sendo assim, se o tribunal “ a quo” entendeu que bastaria a prova da segunda acção, após a desistência do recurso jurisdicional interposto da decisão de rejeição, não se pode dizer que violou o princípio do inquisitório, se o espírito que percorria a primeira se mantém actuante na segunda.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
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7 – 5º Fundamento da impugnação
O que finalmente preocupa a recorrente neste fundamento do recurso jurisdicional é a inviabilidade da 2ª acção interposta no tribunal da RPC. Quer dizer, para a recorrente, da mesma maneira que não se justificaria desde logo a suspensão da instância do processo de inventário, assim também haveria motivo para a suspensão face à propositura da 1ª acção.
Ora, o raciocínio que a recorrente não tem o menor sentido. Realmente, a 1ª acção foi rejeitada por caducidade, tendo em atenção a causa de pedir nela formulada. Mas nada nos diz que a segunda tenha o mesmo desenlace, pois o que nela se discute já não é a falta de averiguação e/ou exame da cópia da certidão entregue pela interessada parta obter uma certidão nova e original, mas sim a falta de competência do órgão administrativo que a emitiu. Sendo assim, temos que admitir que a segunda acção possa colher êxito.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.
TSI, 14 de Julho de 2016
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
1 Como se viu da factualidade provada, o fundamento foi o da falta de verificação e exame da cópia por parte do Governo da Vila de Dayong de uma certidão apresentada pela então requerente (dizendo ter perdido o original) para que lhe fosse passada outra certidão, o que veio a acontecer, sendo emitida a certidão “98”.
2 E desta vez os fundamentos foram a falta de competência do Governo da Vila de Dayong para emitir a referida certidão “98”, que acha caber ao Governo do Distrito de Zhongshan, bem como a alegação de estar casado desde 11/10/2002 com C.
3 Curioso é notar que o recorrido tenha invocado em 9 de Janeiro de 2015 na acção nº 23 acima referida, movida na RPC, ter casado com C em 11/10/2002 e em 2011 ter obtido a rectificação do seu estado civil por averbamento, passando a figurar como solteiro em 2011, para proceder à venda dos bens (venda anulada, porém, como já referido acima)… Isso, porém, não está por ora em apreciação.
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1001/2015 22