Proc. nº 398/2016
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Julho de 2016
Descritores:
-Acidente de trabalho
-Junta médica
-Anexo causal entre acidente e incapacidade
SUMÁRIO:
I. Quando o art. 74º do CPT, de acordo com a sua inserção sistemática no quadro de todo o diploma, prevê que, uma vez realizados os exames médicos, o juiz, de acordo com a sua livre convicção, fixe a natureza da incapacidade e o grau da desvalorização, obviamente está a conferir ao titular do processo um poder decisório que, obviamente, assente nos dados recolhidos no processo, entre os quais avulta o exame obtido pela junta médica (art. 72º, CPT), do qual se destaca o laudo de cada um dos peritos.
II. Tendo as partes alcançado acordo na fase conciliatória do processo de que o acidente é de trabalho e que a incapacidade da vítima deriva dele, não podem os senhores peritos que compõem o colégio da junta médica deixar de emitirem, todos e cada um, o seu laudo acerca do grau da respectiva incapacidade.
III. Se algum deles entender que não pode atribuir o grau de incapacidade por entender que inexiste nexo causal entre acidente e a incapacidade, não se pode dar por realizado integralmente o objecto da perícia. E, por isso, não pode o juiz fixá-lo sem esse elemento, devendo antes mandar repetir o seu laudo ou, no caso de persistir a recusa do perito, substituir o próprio perito.
Proc. nº 398/2016
Acordam no Tribunal de Segunda Instancia da R.A.E.M.
I – Relatório
Correu termos no juízo laboral do Tribunal Judicial de Base os autos de acidente de trabalho (Proc. nº LB1-14-0484-LAE) em que era sinistrado A, entidade patronal a “Companhia de B de Macau, SARL” e seguradora a “Companhia de Seguros C, SA”.
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Não foi obtida a conciliação em relação ao grau de incapacidade permanente parcial, face ao resultado da junta médica realizada.
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O Juiz do processo, porém, fixou em 10% o grau de IPP e em MOP$ 126.057,60 o valor da indemnização devida a esse título a cargo da seguradora (fls. 158-160).
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É contra essa decisão que ora se insurge a Seguradora, em cujas alegações de recurso dirigido a este TSI formulou as seguintes conclusões:
«1. O Tribunal a quo entende que a recorrente já confirmou a existência do nexo de causalidade entre a lesão e o acidente do autor na fase de conciliação, pelo que a recorrente concordava indemnizar ao autor, só discordava apenas a avaliação de incapacidade.
2. Mas, de acordo com o exame feito pelos três médicos peritos ao autor, obteve o resultado de dois contra um e elaborado o relatório médico, constante fls. 100 e 101 dos autos.
3. Os dois peritos, Dr. D e Dr. E, ambos acharam que a incapacidade permanente parcial do autor deve ser 0%, porque não houve o nexo de causalidade entre a lesão e o acidente de trabalho, pelo que não efectuaram a avaliação. Quanto ao outro perito, Dr. F, achou com 10% de incapacidade permanente parcial (I.P.P.), nos termos do artigo 71.º, alínea d), 1) da Tabela de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, anexado no Decreto-Lei N.º 40/95/M.
4. Mas, o Digm.º Delegado do Procurador do Ministério Público não concordava a explicação/esclarecimento supra referido, mais indicou que na reunião de conciliação, de 16/02/2015, todas as partes concordaram que constava o nexo de causalidade entre o acidente e a lesão do autor. Os dois peritos declararam que havia contradição em que a dor da coluna lombar do autor não tenha nada a ver com o presente acidente de trabalho, ao mesmo tempo também não fizeram a avaliação nos termos do artigo 8.º, alínea b), do anexo do Decreto-Lei N.º 40/95/M.
5. Quanto ao Tribunal a quo, admitiu na sentença o parecer do Ministério Público supra referido, por entende que o parecer do perito minoritário seja mais convincente, entretanto entende que o autor ficou com 10% de incapacidade permanente parcial (I.P.P.).
6. A recorrente julga que a mesma confirmou na reunião de conciliação, a existência do nexo de causalidade entre as lesões do autor e o acidente, foi baseado por motivo do acidente que ocorreu dentro do local e hora de trabalho, aliás sem qualquer conhecimento médico, é evidente que achava a lesão do autor foi causada pelo presente acidente.
7. A recorrente não possui qualquer conhecimento médico profissional, é impossível saber que a entorse aguda na cintura do autor causada pelo presente acidente de trabalho não consta o nexo de causalidade com o acidente de trabalho, mesmo que não haja ferida exterior também aparece.
8. Ajunta médica realizou o exame clínico ao autor, cujo objectivo para saber como é que criou a respectiva lesão, será ou não relacionado com o acidente de trabalho e a respectiva lesão consta ou não a desvalorização de incapacidade permanente parcial.
9. Só que o Tribunal a quo entendendo que a existência ou não do nexo de causalidade, não deve ser confirmada pelos peritos, estes só avaliam a existência ou não de incapacidade do sinistrado. Esta interpretação é incompatível com o objectivo da existência da junta médica.
10. Sempre que houver acidente, se o sinistrado, o empregador ou a entidade seguradora, qualquer uma das partes não concordar a perícia médico-legal, a lei atribuiu a esta parte o direito de apresentação de junta médica para realização do exame ao sinistrado.
11. Ajunta médica deve efectuar uma avaliação objectiva quanto à existência ou não de incapacidade do sinistrado. Caso verificar que a lesão do sinistrado não foi criada pelo acidente em causa, deve explicar sinceramente ou durante no exame verificava que as lesões já existentes no corpo do sinistrado, devia também ser explicado explicitamente;
12. Pois, não deve considerar que as lesões do sinistrado encontradas foram todas ocorridas no local ou hora de trabalho, que resumindo como acidente de trabalho e solicitar a indemnização à entidade seguradora.
13. O Tribunal a quo indicou que maior parte dos peritos não avaliaram a existência de incapacidade do sinistrado, não foi por motivo de inexistência, só que os dois peritos entendiam que a incapacidade e o presente acidente não haviam o nexo de causalidade, pelo que não efectuaram a avaliação. Aliás os dois peritos também não efectuaram a avaliação de incapacidade nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei N.º 40/95/M.
14. A recorrente salienta que desentendia totalmente a interpretação do Tribunal a quo, os dois peritos não efectuaram a avaliação de incapacidade nos termos do artigo 9.º do Decreto-Lei N.º 40/95/M, por este artigo não se aplica ao autor. Desde o princípio até ao fim, os dois peritos entenderam que a lesão não foi causada pelo acidente de trabalho, mas sim causada pelo próprio corpo do autor. Aliás no presente caso não agravou a sua lesão já existente, porque mesmo que não haja qualquer ferida exterior, a dita lesão do autor existiu a muito tempo, por isso é inaplicável o artigo supra referido.
15. Se conforme a interpretação do Tribunal a quo, isto é caso a recorrente confirmava a existência do nexo de causalidade no acidente, mesmo que a junta médica não concordasse, também há-de efectuar a avaliação, porque a mesma não poderia ter opinião contrária ao facto confirmado pela recorrente.
16. A recorrente julga que a interpretação do Tribunal a quo distorceu a finalidade da junta médica, aliás violou o conhecimento profissional do perito, isto impediu gravemente a opinião objectiva do mesmo.
17. Como exposto pela recorrente, se no exame verificava que a lesão do autor não foi causada pelo acidente de trabalho, mas a avaliação continuava a proceder-se, que através desta solicitando a recorrente efectuar a indemnização ao autor pela lesão que não foi causada no acidente de trabalho, isto é evidentemente injusto para a entidade seguradora da recorrente.
18. Por outro lado, o Tribunal a quo não reúne qualquer conhecimento médico profissional, e na altura que proceda a análise ao exame médico da junta médica, é claro que foi feita por convicção do Tribunal, mas não deve efectuar com falta da razão e justiça.
19. A junta médica é necessário ser composto por três peritos, o sinistrado, a entidade seguradora e o Tribunal, cada um designa o seu perito. Sempre houver opinião diferente, deverá ser explicado o resultado do exame.
20. Logicamente, o Tribunal a quo não reúne qualquer conhecimento médico, a fundamentação para a sentença deve ser baseado na conclusão da junta médica e prevalecendo a parte maioritária para a sua decisão, assim que era mais convencida.
21. Por fim, o Tribunal a quo invocou que na fase de conciliação, o Dr. G, realizou o exame físico ao autor, que também obteve a conclusão da existência de 10% de incapacidade no autor. A recorrente salienta que o respectivo esclarecimento e ponto de vista são inaceitáveis.
22. Como no exposto supra referido, sempre que ocorre acidente, se o sinistrado, o empregador ou a entidade seguradora, qualquer uma das partes não concordava a perícia médico-legal na fase de conciliação, a lei atribui a esta parte o direito de apresentação de junta médica para realização do exame ao sinistrado.
23. Atendendo que houve uma das partes não concordava a perícia médico-legal clínica na fase de conciliação, assim que apareceu o relatório do exame pericial da junta médica. Apesar a última não implica a perda de eficácia da primeira, mas esta primeira só foi um perito que realizou o exame, enquanto a última foram três peritos para o efeito, pelo que comparando as duas, parece que o relatório do exame pericial da junta médica seria mais objectiva e admissível.
Nesta conformidade, atendendo que os factos e fundamentos apresentados pela recorrente são suficientes, assim requer ao MM.º Juiz do T.S.I. que condene:
1. A procedência do presente recurso;
2. A anulação da decisão do Tribunal a quo, isto é efectuar o pagamento de MOP126,057.60 ao autor (A) , a título de indemnização dos 10% de incapacidade permanente parcial (I.P.P.)».
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O digno Magistrado do MP respondeu ao recurso, em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.
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Cumpre decidir.
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II – Os Factos
Por acordo obtido na fase conciliatória dos autos, foi alcançado acordo quanto:
- À existência e caracterização do acidente em causa como de trabalho (ocorrido no dia 31/12/2012);
- Ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões sofridas pelo(a) sinistrado(a);
- À retribuição por este(a) auferida à data do acidente (MOP $13.131,00 mensais);
- À transferência da responsabilidade da entidade patronal para a seguradora, atinente ao acidente em referência, pela totalidade do salário dota) sinistrado(a);
- Ao recebimento por parte do sinistrado de uma indemnização por ITA, relativa a 721 dias (cf. fls. 77 e 85);
- Ao recebimento pelo sinistrado, a título de despesas médicas e medicamentosas efectuadas, da quantia de MOP 47.600,00 (cf. fls. 77 e 85);
- À data do nascimento do sinistrado (04/05/1964).
Está, ainda, apurado que:
- Os peritos Drs. D e E que participaram na junta médica, realizada ao abrigo do art. 72º do CPT, consideraram que a invalidez seria de 0%, por entenderem que os ferimentos sofridos pelo sinistrado não provocariam a hérnia discal lombar (fls. 106-108), ou seja, “por não existir o nexo de causalidade entre a situação actual da dor na região lombar e a entorse lombar sofrida” e porque as “lesões agudas como entorse não podem provocar uma hérnia discal lombar”(fls. 123).
- O perito Dr. F considerou que a taxa de incapacidade permanente parcial seria de 10%.
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III – O Direito
1 - Leia-se o que foi explanado no despacho em causa:
“Na junta médica da especialidade de ortopedia, realizada a requerimento da seguradora - requerimento que deu início a esta fase contenciosa um dos Srs. Peritos fixou em 10% o coeficiente de IPP de que o sinistrado se encontra afectado, sendo que os outros dois Srs. Peritos, por força do seu entendimento de que no caso se não verifica o necessário nexo causal, entenderam não fixar qualquer grau de incapacidade. Esta posição foi alvo de um pedido de esclarecimento, cuja resposta em nada acrescentou ao seu parecer inicial, evidenciando os Sra. Peritos em causa o desconhecimento de normas muito relevantes para situações como a presente, nomeadamente, a do art. 9.º do D.L. N.º 40/95/M, além de que contrariam aquilo em as partes deram por assente em sede de tentativa de conciliação, na medida em que foi consensual o estabelecimento do nexo causal entre o acidente e as lesões tudo como, aliás, frisa o digno magistrado do MP na sua promoção de fls. 151 e 152.
Cremos assim estar na posse de todos os elementos que nos permitem concluir ser o sinistrado portador de uma incapacidade de 10%, por tal resultar da avaliação cabal feita por dois Srs. Peritos médicos no processo, sendo a posição assumida, em sede de Junta Médica, por parte de outros dois senhores peritos, sem qualquer fundamento legal, pois excluem a fixação de qualquer incapacidade (não porque esta não exista, mas porque reafirmam a falta de um pressuposto - o nexo causal - cuja afirmação lhes não competia fazer).”
O raciocínio que subjaz à decisão objecto do recurso, se o podemos fielmente traduzir, reduz-se à seguinte expressão:
Se um perito diz que a IPP é de 10%, face aos outros dois não lhe atribuem nenhuma IPP, por entenderem não haver causalidade adequada entre facto e dano, então é de considerar que a IPP é de facto de 10%, desde que as partes tenham chegado a consenso sobre a existência desse nexo causal.
Ora bem.
À partida, um tal entendimento apresenta-se com alguma lógica. Na verdade, aqueles dois peritos médicos só não atribuíram grau de incapacidade permanente parcial porque ajuizaram que não havia qualquer nexo causal entre o acidente e os danos que o sinistrado apresenta.
Só que, em boa verdade, este raciocínio assenta num sofisma. Expliquemos.
Quando o art. 74º do CPT, de acordo com a sua inserção sistemática no quadro de todo o articulado, prevê que, realizados os exames, o juiz fixa a natureza da incapacidade e o grau da desvalorização, obviamente está a conferir ao titular do processo um poder decisório que, obviamente, assente nos dados recolhidos no processo. E entre esses dados avulta, compreensivelmente, o exame obtido pela junta médica (art. 72º), do qual se destaca o laudo de cada um dos peritos. Ou seja, o legislador parte sempre do princípio de que existe um exame completo em que cada um dos peritos emite a sua opinião técnico-científica acerca da natureza das lesões e do grau percentual da incapacidade. E será em função dos juízos emitidos acerca desses dados relevantes que o juiz atribui o coeficiente de desvalorização.
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2 - No caso em apreço, houve dois peritos médicos que não quiseram atribuir nenhuma incapacidade, não porque considerassem que o acidentado não sofresse dela, mas porque entendiam que as queixas e as lesões apresentadas no momento da junta médica não tinham relação causal com o acidente.
Ora, pensamos que tendo as partes alcançado um acordo sobre as matérias em relação às quais, nos termos do art. 56º, n.1, do CPT, têm esse poder dispositivo – nomeadamente, a existência e caracterização do acidente, do nexo de causalidade entre lesão – parece ter ficado definido que o acidente é de trabalho e que a lesão apresentada deriva do facto danoso.
E, nesse caso, parece que apenas ficaria a faltar a fixação da incapacidade (art. 71º, n.2, do CPT).
É nesse plano que se justifica a intervenção dos peritos médicos: pede-se-lhes que apurem, face aos elementos que lhe sejam disponibilizados, qual o grau de incapacidade de que sofre a vítima em causa, ainda que, na opinião deles, a incapacidade não se funde no acidente.
É que para os peritos da junta médica não pode haver preocupação sobre se existe ou não nexo de causalidade entre o acidente e as lesões que afectam o sinistrado (neste sentido, Ac. RL, de 7/07/1994, Proc. nº 00015744; Ac. RL, de 24/09/1997, Proc. nº 0033534).
Pensamos pois que, tendo as partes acordado na causalidade entre acidente e incapacidade, não podiam os peritos médicos deixar de emitir o seu juízo sobre qual o grau desta. Efectivamente, se a lei quis que fosse um colégio a emitir parecer sobre o grau de incapacidade da vítima, não pode uma parte valer pelo todo, isto é, não pode a opinião isolada de um substituir a dos restantes.
Perante três opiniões díspares de cada um dos peritos, pode o juiz optar fundamentadamente por qualquer delas e até fixar grau de incapacidade diferente daquele a que chegaram os peritos médicos, porque só deve obediência à sua livre convicção (Ac. RC, de 9/07/2009, Proc. nº 825/07; RP, de 21/05/2012, Proc. nº 1439/10).
O que o juiz não pode é alinhar no grau de incapacidade atribuído unicamente por um deles, sem que os restantes tenham emitido pronúncia sobre o objecto da junta médica. Pense-se na possibilidade de, caso aqueles dois médicos terem emitido parecer, ambos poderem vir a atribuir simultaneamente um grau de 1% ou, até mesmo, de 40% (são números aleatórios e que apenas se citam a título meramente exemplificativo). Como poderia o juiz sentir-se “confortável” em atribuir um grau de 10% apenas com base no único médico que se dispôs cumprir o objecto da perícia?!
Quer isto dizer que, face à lei, tem o juiz o poder de decisão em face de um resultado pericial que contemple necessariamente os laudos (mesmo que divergentes) de cada um dos especialistas, mas já não tem o poder de suprimento da omissão de qualquer deles. O contrário equivaleria a concluir-se que o juiz estaria a utilizar um poder próprio de uma legis artis que não domina ou significaria que se poderia substituir a algum perito. O que seria um absurdo, salvo o devido respeito.
Parece, pois, ser de concluir que deveria ser exigido àqueles dois peritos que se pronunciassem especificamente sobre o grau de incapacidade parcial permanente. E caso eles persistissem na sua recusa em atribui-lo, deveriam ser substituídos a fim de cumprirem o objecto da junta médica.
Somos, pois, com estes fundamentos a reconhecer razão à recorrente. O que tem por consequência que os autos devam prosseguir nos apontados termos, uma vez que se não pode considerar realizada cabalmente a junta médica.
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IV – Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida e se determina a baixa dos autos à 1ª instância para prosseguimento nos sobreditos termos.
Custas a cargo da parte vencida a final.
TSI, 07 de Julho de 2016
José Cândido de Pinho
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
398/2016 15