Processo nº 988/2015
(Autos de recurso civil)
Data: 7/Julho/2016
Assuntos: Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Rejeição do recurso (artigo 599º, nº 1 e 2 do CPC)
Litigância de má fé
SUMÁRIO
1. Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
2. Verificando-se que a decisão do Colectivo de primeira instância sobre a matéria de facto controvertida fundamentou-se com base em provas documentais e depoimentos testemunhais, e tencionando os recorrentes impugnar a decisão da matéria de facto, entretanto havendo gravação da prova, eles terão que especificar, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo nele realizado, e indicar as passagens da gravação em que se funda o erro imputado.
3. Não logrando os recorrentes indicar as passagens da gravação que permitam infirmar a decisão sobre a matéria de facto provada, tal implica, a nosso ver, a rejeição do pedido da reapreciação da prova, por inobservância do disposto no artigo 599º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Civil.
4. Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.
5. Actuam como litigantes de má fé, os réus que, na contestação, alegam uma realidade que se provou inexistir e cuja inexistência forçosamente conheciam, o que significa terem eles alterado a verdade dos factos a fim de deduzirem intencionalmente, portanto, com dolo, oposição, cuja falta de fundamento não podiam deixar de conhecer, assim integrando o estatuído na alínea b) do nº 2 do artigo 385º do CPC.
O Relator,
________________
Tong Hio Fong
Processo nº 988/2015
(Autos de recurso civil)
Data: 7/Julho/2016
Recorrentes:
- A e B (Réus)
Recorridos:
- C, D, E, F, G e H (Autores)
Acordam os Juízes do Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I) RELATÓRIO
A e B, Réus na acção especial de despejo a correr termos no Tribunal Judicial de Base da RAEM, inconformados com a sentença que decidiu:
- declarar a cessação por denúncia do contrato de arrendamento estabelecido entre os Autores e os Réus, que tem por objecto as fracções “DER/C”, “CR/C” e “BR/C”, para comércio, do prédio sito em Macau, na XXX, descrito na CRPredial sob o nº XXX, a fls. XX do Livro B33;
- ordenar os Réus a restituir as referidas fracções aos Autores, livre e desocupado de pessoas e bens e no estado de conservação em que as receberam;
- condenar os Réus a pagar aos Autores a quantia mensal de HKD$70.000,00, a título de indemnização, calculada desde 7 de Setembro de 2012 até 24 de Setembro de 2013;
- condenar os Réus a pagar aos Autores a quantia mensal de HKD$76.000,00, a título de indemnização, calculada desde 25 de Setembro de 2013 até efectiva restituição dos imóveis;
- determinar a compensação dos valores acima referidos com as quantias que os Réus depositaram na conta referida em H) dos factos assentes a fazer-se em sede de execução da sentença;
- absolver os Réus do pedido restante formulado pelos Autores; e
- declarar os Réus litigantes de má fé e condená-los na multa de 10 UC,
Vêm interpor o presente recurso ordinário, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
1. Vem o presente recurso da douta decisão proferida no processo n.º CV2-12-0189-CPE a 30 de Março de 2015 que julgou parcialmente procedente a acção e em consequência, “decidiu declarar a cessação por denúncia do contrato do contrato de arrendamento estabelecido entre a Autora C, os intervenientes D, E, F, G e H, e os Réus, A e B, que tem por objecto as fracções, “DER/C”, “CR/C” e “BR/C”, para comércio, do prédio sito em Macau, na XXX, descrito na Conservatória do registo Predial sob o n.º XXX, a fls. XX do Livro B33 em 6 de Agosto de 2012; Ordenar os Réus a restituir as referidas fracções à Autora e Intervenientes, livre e desocupado de pessoas e bens e no estado de conservação em que as receberam; Condenar os Réus a pagar à Autora e Intervenientes a quantia mensal de HK$70.000,00, a título de indemnização, calculada desde 7 de Setembro de 2012 até 24 de Setembro de 2013; Condenar os Réus a pagar à Autora e Intervenientes a quantia mensal de HKD$76.000,00, a título de indemnização, calculada desde 25 de Setembro de 2013 até efectiva restituição dos imóveis; Determinar a compensação dos valores acima referidos com as quantias que os Réus depositaram na conta referida em H) dos factos assentes a fazer-se em sede de execução da presente sentença; Absolver os Réus do pedido restante formulado pela Autora e pelos Intervenientes; e Declarar os Réus litigantes de má fé e condená-los na multa de 10 Ucs.”
2. Não se conformam os Recorrentes com a douta decisão que ora se recorre porquanto, salvo melhor opinião e o devido respeito, a referida decisão do douto Tribunal “a quo” padece de nulidade, nos termos do artigo 571º, n.º 1, alínea c) do CPC, pois os motivos estão em oposição com a decisão, tendo o Tribunal “a quo” julgado incorrectamente a matéria de facto perante a prova produzida no processo, verificando-se uma insuficiência de matéria de facto para a decisão, tendo o Tribunal a quo procedido a uma incorrecta aplicação das normas ínsitas nos artigos 1027º do Código Civil.
3. Por outro lado, inconformados ainda com a sentença proferida na parte em que os condenou como litigantes de má-fé, vêm também interpor recurso, nos termos dos arts. 385º, n.º 3 e 613º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC).
4. Confrontando os articulados juntos aos autos pelos Recorrentes e Recorridos e atentando aos argumentos nos mesmos carreados por ambas as partes, com os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal a quo, bem como a sua fundamentação é notória a falta de conformidade existente entre aquilo que é dito pelas partes e confessado por estas com o que é dado como certo pelo Tribunal.
5. Refere a douta sentença que: “Nos termos do artigo 225º do CC, “A aceitação com aditamentos, limitações ou outras modificações importa rejeição da proposta; mas, se a modificação for suficientemente precisa, equivale a nova proposta, contando que outro sentido não resulte da declaração. (…) Tendo em conta que a objecção dos Réus tinha a ver com o montante concreto do aumento (…) está-se perante uma nova proposta feita pelos Réus (…) a Autora e Intervenientes passaram a ser os destinatários a quem cabia decidir aceitar ou não a proposta dos Réus. (…) Feito o julgamento da matéria de facto, ficou provado que a Autora e os Intervenientes informaram aos Réus que não aceitavam o valor de HKD$45.000,00 proposto por estes. Está-se manifestamente perante uma rejeição da proposta, rejeição esta que impediu a renovação do contrato como pretendem os Réus. (…)”
6. De acordo com o acórdão que decidiu sobre a matéria de facto de 17 de Fevereiro de 2015, refere-se que: “Apesar de essas testemunhas não terem sido precisas quanto ao momento em que isso ocorreu, se foi logo depois do 1º depósito de HKD$45.000,00 em Julho de 2012 ou apenas depois de vários depósitos, o certo é que o documento de fls. 46 a 48 reagiram por escrito em 13 de Agosto de 2012, através de advogado. Assim é razoável aceitar que a discussão ocorrida no locado teve lugar antes. Por força do expendido, foi acolhida a versão dos factos da Autora e dos Intervenientes. (…)”.
7. Na sua réplica, os Recorridos vêm alegar que: “A carta remetida pelos Réus aos Senhorios e junta com a contestação (…) constitui uma nova proposta (…) a esta nova proposta, cabia de volta aos Senhorios aceitá-la ou rejeitá-la, sendo certo que o silêncio só poderia valer se fossem preenchidos os critérios do artigo 226º do CC, ou seja teria de haver uma atitude dos Senhorios da qual resultasse que estes aceitavam a referida nova proposta realizada pelos Réus. Refira-se que esta atitude, como resulta da própria letra da lei, deve constituir uma conduta e não falta dela. Tanto mais que o silêncio como meio declarativo só válido nos termos do preceituado no artigo 210º do Código Civil, ou seja, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção, o que não sucede no caso dos autos. (…) No caso dos autos, logo que os senhorios verificaram que na conta bancária onde eram depositadas as rendas havia sido feito um depósito no valor de $45.000,42, que julgavam ter sido feito pelos Réus, informaram que não tinham aceite o aludido valor e que quaisquer valores adicionais que venham a ser depositados na conta bancária não serão havidos como renda. (cfr. Documento 7 junto com a PI) (…)”.
8. De acordo com este documento n.º 7 junto com a PI, a fls. 46 a 48, carta enviada pelos Recorridos em 13 de Agosto de 2015, refere-se que: “(…) Os N/Clientes verificaram nesta data que na conta bancária n.º 07-10-10-176364 de que são titulares no Banco da China, consta um depósito no valor de $45.002,42 que julgam ter sido efectuado por V. Exas. (…)”.
9. Esta foi a matéria carreada para os Autos pelos Recorrentes e pelos Recorridos, mas de uma dúvida da testemunha, conforme referido aliás no próprio acórdão de 17 de Fevereiro de 2015, retira-se uma conclusão que salvo o devido respeito, não se afigura razoável, diga-se aliás, desconforme com as provas documentais carreadas para os Autos e com as próprias alegações dos Recorridos, dando como não provado o quesito n.º 1: “Da proposta dos Réus referida na alínea K) dos factos Assentes, não houve objecção por parte da Autora e os Intervenientes.”
10. E dando como provado o quesito n.º 2: “A Autora e os intervenientes informaram aos Réus que aqueles não aceitaram o valor proposto por estes de HKD$45.000,00.”
11. Ora, entende-se aqui sem margem para dúvidas, que apenas naquela data, em 13 de Agosto de 2012, os Recorridos se aperceberam de um depósito que julgavam ter sido efectuado pelos Recorrentes, ou seja, entende-se que os Recorridos nunca poderiam ter tido informado os Recorrentes que não aceitaram o valor proposto por estes de HKD$45.000,00, pelo menos antes de 13 de Agosto de 2012.
12. Pelo nunca se poderia dar por provado que “A Autora e os intervenientes informaram aos Réus que aqueles não aceitaram o valor proposto por estes de HKD$45.000,00”, nos termos fundamentados pelo douto Tribunal a quo.
13. Este procedimento implica violação do princípio do dispositivo. O tribunal está a servir-se de factos não alegados, combinar e articulando os poucos alegados, e em função de factos da experiência corrente, concluir por presunção.
14. Salvo o devido respeito, as presunções só podem ser permitidas se forem retiradas de factos concretos e conhecidos, mas não têm a virtualidade de inverter o ónus da prova, como as presunções legais.
15. Assim, tendo o Tribunal a quo baseado a sua resposta com base em dúvidas e presunções, e elementos imprecisos, não se poderá aceitar como provado o quesito n.º 2.
16. Nestes termos, a Recorrente impugna, pois a decisão da matéria de facto supra referida, com a especificação dos supra referidos meios probatórios, nomeadamente: os articulados dos Recorrentes e dos Recorridos, os documentos juntos à p.i., nomeadamente o documento de fls. 46 a 48, bem como o depoimento da testemunhas I bem como da testemunha J perguntadas a instâncias do Tribunal se sabiam em que momento a Autora e os Intervenientes chegaram a deslocar-se ao locado, onde entraram em discussão com um dos Réus, se foi logo depois do 1º depósito de HKD$45.000,00 em Julho de 2012 ou apenas depois de vários depósitos, responderam que: “não consigo precisar o momento exacto em que isso ocorreu”.
17. Por outro lado, os Recorrentes estão igualmente inconformados ainda com a sentença proferida na parte em que os condenou como litigantes de má-fé, pois contrariamente ao entendimento sufragado na decisão recorrida os Réus não alteraram a verdade dos factos a fim de sustentar a defesa apresentada na contestação.
18. De acordo com o documento n.º 7 junto com a PI, a fls. 46 a 48, carta enviada pelos Recorridos em 13 de Agosto de 2015, refere-se que: “(…) Os N/Clientes verificaram nesta data que na conta bancária n..º 07-10-10-176364 de que são titulares no Banco da China, consta um depósito no valor de $45.002,42 que julgam ter sido efectuado por V. Exas. (…)”.
19. Ora, só por aqui entende-se aqui sem margem para dúvidas, que apenas naquela data, em 13 de Agosto de 2012, os Recorridos se aperceberam de um depósito que julgavam ter sido efectuado pelos Recorrentes, ou seja, entende-se que os Recorridos nunca poderiam ter tido informado os Recorrentes que não aceitaram o valor proposto por estes de HKD$45.000,00, pelo menos antes de 13 de Agosto de 2012.
20. Assim, tendo o Tribunal a quo baseado a sua resposta com base em dúvidas e presunções, e elementos imprecisos, não se poderá aceitar como provado o quesito n.º 2.
21. Ora, só por aqui entende-se aqui sem margem para dúvidas, que apenas naquela data, em 13 de Agosto de 2012, os Recorridos se aperceberam de um depósito que julgavam ter sido efectuado pelos Recorrentes, ou seja, entende-se que os Recorridos nunca poderiam ter tido informado os Recorrentes que não aceitaram o valor proposto por estes de HKD$45.000,00, pelo menos antes de 13 de Agosto de 2012.
22. Para que se verifique esta litigância de má-fé é necessário que a parte tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso, não apenas reprovável, mas manifestamente reprovável. Mas tal não aconteceu, pelo que salvo o devido respeito, estamos em crer que não há elementos que possam sufragar o entendimento do Tribunal a quo em declarar os Recorrentes como litigantes de má fé.
23. Estão assim reunidos os pressupostos da impugnação da matéria de facto, previstos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 599º do CPC, estando o Tribunal “ad quem” em condição de determinar “a renovação dos meios de prova produzidos em primeira instância que se mostrem indispensáveis ao apuramento da verdade, (…), ao abrigo do artigo 629º, n.º 3 do CPC.
24. Deverá pois a douta sentença objecto do presente recurso ser revogada e substituída por outra que conclua pela improcedência da acção e a consequente absolvição dos Recorrentes.
Concluem, pedindo que se conceda provimento ao recurso.
*
Devidamente notificados, os Autores ofereceram resposta, formulando as seguintes conclusões alegatórias:
1. Em sede de alegações a que ora se responde alegam os Recorrentes que não se conformam com a decisão recorrida porquanto (i) esta padece de nulidade, nos termos do artigo 571º, n.º 1, alínea c) do CPC, pois os motivos estão em oposição com a decisão, (ii) tendo o Tribunal a quo julgado incorrectamente a matéria de facto perante a prova produzida no processo, (iii) verificando-se ainda uma insuficiência de matéria de facto para a decisão, (iv) tendo o Tribunal a quo procedido a uma incorrecta aplicação das normas ínsitas nos artigos 1027º do Código Civil, não se conformando ainda com a decisão proferida na parte em que os condenou como litigantes de ma fé.
2. Sendo pelas conclusões que se afere a pretensão dos Recorrentes e se delimita o objecto do seu recurso – conforme resulta do preceituado no n.º 3 do artigo 589º do CPC – parece evidente que o mesmo está limitado ao invocado erro de julgamento da matéria de facto e reapreciação da prova e à condenação como litigantes de má fé, porquanto, apesar de começarem por invocar que a decisão recorrida é nula por oposição entre os fundamentos e a decisão, que o Tribunal procedeu à errada aplicação das normas ínsitas no artigo 1027º do CC e que se verifica uma insuficiência de matéria de facto para decisão, a verdade é que nem na parte dispositiva do recurso nem nas suas conclusões se tece uma linha sobre os invocados vícios.
3. A nulidade prevista na alínea c) do artigo 571º do CPC só existe quando se verifica uma contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, ou seja, quando os fundamentos que serviram para fundamentar a decisão estão em oposição com esta própria, o que não sucede in casu.
4. Da sentença recorrida o que resulta é precisamente que os fundamentos adoptados pelo Tribunal a quo conduzem logicamente à decisão tomada, pelo que não há o invocado vício.
5. Entendem os Recorrentes que não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado que a Autora e os intervenientes informaram aos Réus que aqueles não aceitariam o valor proposto por estes de HKD$45.000,00 (resposta ao quesito 2º da base instrutória), pretendendo, inverter o sentido dessa decisão com base (i) nos articulados dos Recorrentes e Recorridos, (ii) nos documentos juntos à PI nomeadamente o documento de fls. 46 a 48 e (iii) nos depoimentos da testemunha I, bem como da testemunha J, perguntadas a instancias do Tribunal se sabiam em que momento a Autora e os Intervenientes chegaram a deslocar-se ao locado onde entraram em discussão com os Réus, se foi logo depois do 1º deposito de HKD$45.000,00 em Julho de 2012 ou apenas depois de vários depósitos, responderam que: não consigo precisar o momento exacto em que isso ocorreu.
6. Competia aos Recorrentes, conforme preceituado no artigo 599º do CPC, indicar com exactidão as passagens da gravação dos depoimentos testemunhais em que se funda o alegado erro de julgamento, o que não fizeram.
7. Nesta parte será de rejeitar a reapreciação da prova.
8. Também os documentos de fls. 46 a 48 invocados pelos Recorrentes como fundamento do alegado erro de julgamento não servem para alterar o sentido da decisão.
9. Conforme foi bem notado pelo Tribunal a quo, o aludido documento demonstra que os Recorridos, por escrito e através de advogado, manifestaram objecção ao valor proposto pelos Recorrentes para a nova renda no montante de HKD$45.000,00.
10. Não resulta dos autos, nem os Recorrentes indicam, qualquer outro meio de prova (seja ele documental, seja ele testemunhal) que infirme o facto dado como provado.
11. O que ressalta da petição de recurso é que os Recorrentes se insurgem essencialmente contra a convicção do Tribunal a quo na apreciação da prova produzida, sem que tenham fundamento para o efeito.
12. Apenas a inobservância de regras de experiência ou lógica poderiam impor um diverso entendimento do acolhido pelo Tribunal recorrido o que não sucede in casu.
13. Não tendo os Recorrentes cumprido o ónus que lhes era imposto pelo Tribunal pelo artigo 599º do CPC e em face da prova documental junta aos autos é de concluir que a decisão do julgamento da matéria de facto se mostra inatacável, inexistindo qualquer fundamento para que a mesma seja alterada nos termos pretendidos pelos Recorrentes, o que leva, consequentemente, à improcedência do recurso em toda a sua extensão.
Concluem, pugnando pela negação de provimento ao recurso e confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
***
II) FUNDAMENTAÇÃO
Provada está a seguinte factualidade relevante para a decisão da causa:
As fracções “DER/C”, “CR/C” e “BR/C” destinadas a Comércio, do prédio sito em Macau na XXX, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia de Sto. António, descrito na Conservatória do Registo Predial e Matricial, sob o nº XXX a fls. XX do Livro B33 (alínea A) dos factos assentes).
Sob a inscrição nº XXX, a Autora e os intervenientes D, E, H, F e G são registados como proprietários da fracção autónoma “DER/C” do prédio descrito na alínea A) dos Factos Assentes (alínea B) dos factos assentes).
Sob a inscrição nº XXX, a interveniente D é registado como proprietário da fracção autónoma “CR/C” referida na alínea A) dos Factos Assentes (alínea C) dos factos assentes).
Sob a inscrição nº XXX, o interveniente E é registado como proprietário da fracção autónoma “BR/C” referida na alínea A) dos Factos Assentes (alínea D) dos factos assentes).
Por escrito particular de 21 de Julho de 2010 celebrados entre a Autora e as intervenientes, D, H, G, F e E, na qualidade de Senhorios e os Réus, na qualidade de arrendatários, nos termos do qual aqueles proporcionaram a estes o gozo temporário das fracções autónomas mencionadas na alínea A) dos Factos Assentes (alínea E) dos factos assentes).
Pelo período de 2 anos, com início em 7 de Agosto de 2010, e termo em 6 de Agosto de 2012 (alínea F) dos factos assentes).
E mediante o pagamento de renda mensal no período de vigência do contrato no valor de HKD$38.000,00 (alínea G) dos factos assentes).
O pagamento da renda mensal seria realizado através de transferência bancária para a conta bancária aberta no Banco da China n.º 07-10-10-176364, antes do dia 7 de cada mês (alínea H) dos factos assentes).
Estipula a cláusula 2ª do acordo mencionado na E) que “租賃期為兩年,即由2010年8月7日起至2012年8月6日止,租賃期屆滿前如甲、乙任何一方無意續約,必須於三個月前以郵寄掛號信方式通知對方收回或遷出,屆時本約即告自動失效,乙方須無條件如期遷出,將承租舖位交回甲方,無權要求任何賠償,否則須承擔一切法律責任及賠償甲方由此而引致之損失,若雙方均同意續約,條件及租金屆時另議及須另訂新訂合約。” (alínea H)1 dos factos assentes)
No momento da celebração do acordo referido na alínea E), os Réus efectuaram a favor da Autora e dos Intervenientes um depósito no montante de HKD$70.000,00, sendo o mesmo montante devolvido no momento da cessação do contrato (alínea I) dos factos assentes).
Em 14 de Fevereiro de 2012, a Autora e os intervenientes enviaram aos Réus, com o seguinte teor (alínea J) dos factos assentes):
「致 A(澳門永久性居民身份證No.XXX),B(澳門永久性居民身份證No.XXX)
澳門柯利維喇街,XXX
茲因有關 閣下租賃澳門柯利維喇街,門牌XXX號,渡船巷,門牌XXX號,地下“DER/C”座,渡船巷,門牌XX號,地下“CR/C”座,渡船巷,門牌XX號,地下“BR/C”座三間舖位(下稱「舖位」)事宜。
按照 閣下與業權所有人D、H、G、F、C、E(下稱「業權所有人」)於2010年07月21日所簽訂之“租賃舖位合約”內第二條所訂,租賃期兩年將於2012年08月06日屆滿。
現根據澳門民法典規定,謹此代表業權所有人專函通知 閣下,租賃期屆滿後,倘 閣下願意繼續租賃上述舖位,租金將適當增加至每月港幣伍萬元(HKD$50,000.00),加幅約為13.2%屬可接受合理幅度,亦比對同區相同面積商舖之租值為低,新租賃合約的租賃期訂為兩年,由2012年08月07日至2014年08年06日止,敬請 閣下收到本通知函10天內(以郵政局雙掛號郵遞之郵戳日期為準)到本律師樓簽立新租賃合約。
倘 閣下未於上述指定日期到本律師樓簽立新租賃合約,則視為放棄繼續租賃上述舖位,為著產生適當的法律效力,現根據“租賃舖位合約”第(二)條之規定,以書面方式提前通知閣下,本“租賃舖位合約”將於2012年08年06日租賃期屆滿而終止,並不予續期。為此,敬請 閣下按照“租賃舖位合約”之規定,於2012年08月06日或之前遷出上述舖位,並清潔完整地交還予業權所有人。同時必須繳付清租賃期內之租金、水、電、電話費、政府稅項及應付之費用等,否則,閣下須負起由此引致之法律及賠償責任。
當 閣下遷出時與業權所有人核妥上述舖位相關費用後,業權所有人將無息退還有關按金,若按金不足支付 閣下仍須負責餘數。
順頌
商安!」
Os Réus não aceitaram a nova renda mensal no valor de HKD$50.000,00 proposta pela Autora e Intervenientes, tendo apresentado uma contraproposta no valor de HKD$45.000,00 (alínea K) dos factos assentes).
No dia 13 de Agosto de 2012, a Autora e os intervenientes, através de carta registada com aviso de recepção, interpelaram os Réus para desocuparem de imediato o imóvel, e para o entregarem livre e devoluto de pessoas e bens (alínea L) dos factos assentes).
Os Réus receberam a referida comunicação em 14 de Agosto de 2012 (alínea M) dos factos assentes).
Os Réus, no dia 19 de Julho de 2012, procederam ao depósito do valor de MOP$45.002,42 na conta bancária indicada na alínea H) (alínea N) dos factos assentes).
A partir de Setembro de 2012 os Réus efectuaram o pagamento do montante proposto por estes no valor de HKD$45.000,00 (alínea O) dos factos assentes).
A Autora e os intervenientes informaram aos Réus que aqueles não aceitaram o valor proposto por estes de HKD$45.000,00 (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
Logo que a Autora e os intervenientes verificaram que na conta bancária onde eram depositadas as rendas havia sido feito um depósito no valor de MOP$45.000,42, que julgavam ter sido feito pelos Réus, informaram-nos os Réus que não tinham aceite o aludido valor e que quaisquer valores adicionais que venham as ser depositados na conta bancária não serão havidos como renda (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
Estando a Autora e os intervenientes impedidos de arrendar as fracções autónomas referidas em A) dos factos assentes atenta a ocupação dos imóveis pelos Réus (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
Os ainda Réus não desocuparam o locado (resposta ao quesito da 6º da base instrutória).
Desde 25 de Setembro de 2013, o valor locatário das fracções é de HKD$110.000,00 (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
*
Alegam os recorrentes que a decisão recorrida padece dos seguintes vícios: nulidade, nos termos do artigo 571º, nº 1, alínea c) do CPC, por os motivos estarem em oposição com a decisão; erro no julgamento da matéria de facto face à prova produzida no processo; insuficiência da matéria de facto para a decisão; incorrecta aplicação das normas ínsitas nos artigos 1027º do Código Civil; e finalmente, não se conformando ainda com a decisão proferida na parte em que os condenou como litigantes de ma fé.
Mas pelo conteúdo das conclusões apenas se verifica que o objecto do seu recurso está limitado ao invocado erro no julgamento da matéria de facto e reapreciação da prova e à condenação dos Réus como litigantes de má fé, uma vez que nem na parte dispositiva do recurso nem nas suas conclusões se logrou tecer considerações sobre os invocados restantes vícios.
*
Da impugnação da matéria de facto
Os Réus ora recorrentes começam por impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto provada, alegando ter havido erro na apreciação da prova, na medida em que o Tribunal a quo fundamentou a sua resposta ao quesito 2º da base instrutória com base em dúvidas e presunções, pugnando pela alteração da resposta ao referido quesito para “não provado”.
O Colectivo de primeira instância respondeu ao quesito 2º da seguinte forma:
“A Autora e os intervenientes informaram os Réus que aqueles não aceitaram o valor proposto por estes de HKD$45.000,00.”
Vejamos.
Vigora, no processo civil, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 558º do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que formou acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
E a parte que não está conformada com a decisão da matéria de facto pode, em sede de recurso, impugná-la, “incumbindo-lhe a indicação precisa, clara e determinada dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do tribunal, devendo fundamentar a sua divergência com expressa referência às provas produzidas…”1.
Isto é o que resulta dos nºs 1 e 2 do artigo 599º do Código de Processo Civil:
“1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios de probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.”
No caso vertente, os recorrentes vêm questionar sobre a resposta dada pelo Colectivo de primeira instância ao quesito 2º da base instrutória, alegando que o Tribunal a quo deu a sua resposta com base em dúvidas e presunções, bem como em elementos imprecisos.
Ora bem, não há margem para dúvidas que, para além da prova documental, a decisão proferida pelo Colectivo de primeira instância sobre a matéria de facto controvertida fundamentou-se ainda com base em depoimentos testemunhais.
E atendendo ao facto de inexistir qualquer disposição expressa na lei que exija para determinados factos certa espécie de prova ou que fixe a força probatória de qualquer meio de prova, é admissível qualquer meio de prova e cuja valoração encontra-se submetida ao princípio da livre apreciação do juiz.
Sendo assim, tencionando os Réus ora recorrentes impugnar a decisão da matéria de facto, e havendo gravação da prova, eles terão que especificar, na alegação de recurso, não só os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, mas também os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo nele realizado, e indicar as passagens da gravação em que se funda o erro imputado.
Conforme referiu Lopes de Rego, “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo pura e simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância manifestando genérica discordância com o decidido.”2
No presente caso, embora os Réus tenham lançado mão do depoimento das testemunhas I e J, para tentar inverter o sentido da decisão de facto vertida na resposta ao referido quesito, mas a verdade é que não lograram indicar as passagens da gravação que, eventualmente, impunham decisão diversa da recorrida.
Em boa verdade, a razão de ser dessa exigência é permitir ao Tribunal de recurso identificar qual a parte concreta do depoimento que o Tribunal a quo teria julgado ou valorado incorrectamente.
Considerando que os recorrentes não lograram indicar as passagens da gravação que permitam infirmar a decisão sobre a matéria de facto provada, tal implica, a nosso ver, a rejeição do pedido da reapreciação da prova, por inobservância do disposto no artigo 599º, nº 1, alínea b) e nº 2 do Código de Processo Civil.
No mesmo sentido, decidiu o Acórdão do Processo nº 765/2014 deste TSI.
E em relação aos documentos, embora se determine na lei (artigo 629º, nº 2, alínea b) do CPC) que o Tribunal ad quem pode alterar a decisão do tribunal de primeira instância se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, mas não é o caso.
Em boa verdade, entendemos que os documentos valorados pelo Tribunal a quo, por si só, não são suficientes para permitir a alteração da decisão da matéria de facto.
Por exemplo, o documento de fls. 44 consiste numa carta em que os Autores propuseram aos Réus a nova renda no caso de renovação do contrato; o documento de fls. 46 a 48 demonstra que os Autores manifestaram por escrito objecção ao valor proposto pelos Réus ora recorrentes para a nova renda no valor de HKD$45.000,00; e os documentos de fls. 177 a 183 são meros relatórios periciais de avaliação de imóvel.
Há-de apontar aqui que os elementos fornecidos pelo processo não permitem, por si só, impor decisão diversa da recorrida.
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Da litigância de má fé
Os Réus foram condenados como litigantes de má fé, por terem os mesmos voluntariamente alterado a verdade dos factos a fim de sustentar a defesa apresentada na contestação.
Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave, entre outras razões, tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa (alínea b) do nº 2 do artigo 385º do CPC).
Como observam Cândida da Silva Antunes Pires e Viriato Manuel Pinheiro de Lima3, “É que, no plano processual, a alteração, por qualquer das partes, da verdade dos factos, se feita com dolo ou negligencia grave, integra a chamada má fé substancial, potenciando a condenação da parte como litigante de má fé (artigo 385º), Trata-se da violação do chamado dever de veracidade, amplamente tratado na doutrina jurídica alemã e que já em J. Alberto dos Reis foi assimilado ao dever de probidade.”
Portanto, a má fé substancial prevista na alínea b) do nº 2 do artigo 385º do CPC desdobra-se em duas modalidades: deturpação da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa, ambas assumidas deliberadamente com dolo ou negligência grave.
Decidiu o Acórdão nº 294/2013 deste TSI que, “a condenação por má fé tem ínsita uma ideia de consciência e de vontade de agir contra aqueles valores, enfim supõe uma noção de malícia, no caso do dolo. E quando assente em “uma culpa grave (culpa lata), a lei não se contenta com qualquer indiferenciada espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira.”
Também num Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.2.2015, citado para efeitos de direito comparado, decidiu-se que “atuam como litigantes de má fé, os réus que, no articulado contestação, alegam uma realidade que se provou inexistir e cuja inexistência forçosamente conheciam, o que significa terem eles alterado a verdade dos factos a fim de deduzirem intencionalmente, portanto, com dolo, oposição, cuja falta de fundamento não podiam deixar de conhecer, assim integrando o estatuído nas alíneas a) e b) do nº 2 do art. 456º do CPC, na redação anterior, que corresponde ao actual art. 542º do NCPC (2013)”.
No caso vertente, a razão de o Tribunal a quo ter condenado os Réus como litigantes de má fé resulta do facto de que quando se fez a exposição das posições das partes, os Réus alegaram que os Autores não manifestaram qualquer objecção à proposta apresentada pelos Réus, mas feito o julgamento, esse facto não ficou provado, antes ficou assente que os Autores informaram aos Réus que aqueles não aceitavam o valor de HKD$45.000,00 proposto por estes.
Em nossa modesta opinião, entendemos que a questão de saber se os Réus foram ou não informados pelos Autores sobre a não aceitação do valor da renda proposto por aqueles é um facto pessoal, e que os Réus não podiam ignorar.
Pelo que forçoso é concluir que os Réus faltaram à verdade ao afirmarem que os Autores não manifestaram qualquer objecção à proposta apresentada pelos Réus, se bem que provado está que os Autores comunicaram aos Réus que não aceitavam a tal contraproposta dos últimos.
Tudo ponderado, somos a entender que a situação em causa não pode deixar de integrar no conceito de litigância de má-fé previsto na alínea b) do nº 2 do artigo 385º do CPC, improcede, pois, o recurso quanto a esta parte.
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III) DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelos recorrentes A e B contra os recorridos C, D, E, F, G e H, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes nesta instância.
Registe e notifique.
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RAEM, 7 de Julho de 2016
Tong Hio Fong
Lai Kin Hong
João A. G. Gil de Oliveira
1 José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Coimbra Editora, página 53
2 Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2004, 2ª edição, Almedina, página 584
3 Código de Processo Civil de Macau, Anotado e Comentado, Volume I, FDUM, 2006, pág. 68
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Recurso Civil 988/2015 Página 26