Processo n.º 263/2016
(Recurso Cível)
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 14/Julho/2016
ASSUNTOS:
- Contrato de depósito bancário; sua natureza
- Conta conjunta
- Obrigações conjuntas e indivisíveis
SUMÁRIO :
1. Se um dos titulares de uma conta conjunta - que não solidária - está há mais de 10 anos ausente em parte incerta, não pode o outro co-titular da conta pretender levantar toda a quantia depositada, prevalecendo-se do regime do art. 531º/2 do CC, sem que o ausente seja chamado à acção.
2. Será de aplicar à situação da conta conjunta o regime da compropriedade, o que decorre do art. 1300º do CC, segundo o qual as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles.
O Relator,
Processo n.º 263/2016
(Recurso Civil)
Data : 14/Julho/2016
Recorrente : A ou A1
Recorrida : Banco B S.A.
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. A ou A1, inconformado com a sentença que absolveu da instância o Réu Banco B S.A por falta do co-titular da conta conjunta que o A. detinha naquele banco, pretendendo este o levantamento de todo o numerário ali depositado, alegou, em síntese o seguinte:
1. Os depósitos em causa feitos no Banco Réu em nome da Autora e de seu irmão C ou C1 estão sujeitos à cláusula de conjunção que faz com que o respectivo contrato de depósito seja constitutivo de obrigações indivisíveis entre os depositantes e o Banco depositário.
2. Assim, é aplicável a tal depósito o regime geral de cumprimento de obrigações indivisíveis previsto no artigo 531.° do Código Civil.
3. Regime donde resulta que, no modo de execução voluntária do contrato de depósito, o dinheiro depositado só pode ser pago, total ou parcialmente, por qualquer forma de movimento bancário, pela actuação conjunta dos diversos depositantes perante o Banco Réu.
4. Prevê, porém, o mesmo regime o direito de qualquer dos depositantes, que a Recorrente ora exerce, de exigir judicialmente por inteiro o pagamento do dinheiro depositado, no uso da faculdade de agir por si só concedida pelo n.º 1 do artigo 531.°.
5. O pagamento total que a Recorrente tem o direito de receber mediante o ónus de recurso a juízo não a torna dona de todo o valor recebido, antes a obriga à restituição ao outro depositante da parte que lhe pertencer.
6. Ao decidir pela necessidade de litisconsório obrigatório de ambos os depositantes, como pressuposto da legitimidade processual desta acção, a douta sentença recorrida violou as disposições do artigo 531.° do Código Civil, nomeadamente por não as ter aplicado ao caso sub judice.
7. Razão por que, deve a mesma ser revogada, substituindo a respectiva decisão por outra que ordene ao Banco Réu a restituição à Recorrente da totalidade do dinheiro depositado.
2. Este recurso não foi contra-alegado.
3. Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
- A Autora é co-titular com C ou C1 da conta conjunta n.º 0XXXXX100 aberta em 13/02/1992 no então Banco B, SARL, com o saldo de HKD$28.737,08 reportado a 20 de Maio de 2014. (Artigo 1º)
- A Autora é co-titular com o mesmo C ou C1 do depósito conjunto constituído no mesmo Banco, a prazo de um mês, com o saldo acumulado de HKD$173.518,82 em 11/11/2014. (Artigo 2°)
- Entretanto, o Banco depositário passou a ter a firma Banco B, SA. (Artigo 3°)
- Há cerca de 10 anos, o referido co-titular dos depósitos ausentou-se para parte incerta, impedindo a Autora de dispor da sua parte nos mesmos. (Artigo 4°)
III – FUNDAMENTOS
1. O caso
O Autor e C1 abriram duas contas conjuntas no Banco B com um saldo acumulado de cerca de 200.000,00 HKD.
Há cerca de 10 anos C1 ausentou-se para parte incerta.
O A. demanda o Banco e pretende que este lhe entregue toda a quantia ali depositada.
Quid juris?
2. Na sentença recorrida entendeu-se absolver da instância o Banco demandado por ilegitimidade activa, tendo-se desenvolvida a fundamentação seguinte:
“Da legitimidade da Autora
Antes de abordar a questão do mérito do litígio posto pela Autora, importa averiguar se os presentes autos se reúnem os pressupostos processuais, nomeadamente a legitimidade das partes.
Como se sabe, a legitimidade consiste numa posição da parte perante determinada acção, posição que lhe permite dirigir a pretensão formulada ou a defesa que contra esta possa ser oposta.
Assim, no plano de averiguação de legitimidade enquanto pressuposto processual, há que considerar as coisas com base nos factos configurados pelo autor que dá à relação material controvertida, partindo-se em princípio que essa relação material controvertida existe.
Se, na perspectiva fáctica delineada pelo autor, ele próprio é sujeito da relação controvertida, tal basta para lhe conferir legitimidade processual, independentemente das razões de fundo que lhe assistem.
Saliente-se que é com base na factualidade discriminada pelo autor para apurar quem tem legitimidade para ser autor e quem ser o réu. Isso não significa que tem legitimidade substantiva das partes quem o autor assim indicou. São coisas diferentes.
É essa a posição adoptada pelo nosso legislador, no art. 58° do C.P.C.M, que prevê que "Na falta de indicação da lei em contrário, possuem legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor."
Entretanto, há outros casos em que por própria natureza do negócio jurídico ou por estipulação da lei, exige a intervenção de todos que têm interesse na relação jurídica controvertida.
Assim, estipula ainda o art. 61° o seguinte:
"1. Se, a lei ou o negócio jurídico exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade.
2. É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado."
Portanto, no caso de litisconsório necessário, carece de intervenção de todos os potenciais sujeitos da relação controvertida, sob pena de a decisão a proferir não produzir o efeito útil normal. Pois a decisão só se vinculará quem seja parte dos autos mas não vinculará quem está ausente.
Nos presentes autos, segundos os factos alegados pela Autora e considerados por provados, a Autora é co-titular com o C de duas contas conjuntas abertas já em 1992, na instituição bancária do Réu.
A relação jurídica controvertida configurada pela Autora foi estabelecida entre ela, o C e o Réu, sendo esses três os sujeitos dessa relação.
Porém, a presente acção foi instaurada somente pela Autora contra o Réu, sem intervenção do outro co-titular C.
Justifica a Autora que ela pode exigir judicialmente contra o Réu, sem acompanhado do outro co-titular das contas bancárias, a prestação total da obrigação, partindo da ideia de que a obrigação da restituição da quantia depositada por parte do Réu é obrigação indivisível, o Réu ficará exonerada da obrigação da prestação quando for exigido o cumprimento judicial por qualquer um dos credores plurais, encontrando o apoio legal no disposto do art. 531° do C.C...
Na verdade, prescreve-se o art. 531º, n.º 1 do C.C., que "Sendo vários os credores da prestação indivisível, qualquer deles tem o direito de exigi-la por inteiro; mas o devedor, enquanto não for judicialmente citado, só relativamente a todos, em conjunto, se pode exonerar."
Mas, a solução adoptada nesse normativo será aplicável ao nosso caso.
Para responder a esta questão, importa saber a razão de ser desse preceituado.
Como se sabe, nas obrigações plurais, o regime geral é a conjunção. Isto é, a obrigação divide-se em tantos vínculos quantos os sujeitos do lado plural da relação. No caso da pluralildade activa, cada um dos credores pode exigir ao credor a prestação da parte que lhe incumba no crédito global (cfr. Antunes Varelas, in Obrigações em geral, Vol. I, 7ª ed., pg. 745)
No caso de a obrigação ser divisível, a regra de conjunção não causará problema aos credores, cada um deles pode livremente demandar ao devedor a prestação da sua parte. Mas para o caso de obrigação indivisível, a regra de conjunção implica que nenhum dos credores pode vir a juízo a prestação sem o concurso dos demais. (cfr. Antunes Varelas, ob. cit., pg. 813)
Para contornar os embaraços de o credor não poder exigir ao devedor a prestação da quota-parte do crédito que lhe incumba dada a indivisibilidade da obrigação, consagrando essa modificação ao regime de conjunção. Facultará qualquer dos credores o direito de, por si só, exigir ao devedor a prestação por inteiro, e o devedor ficará exonerado da prestação a todos os credores quando for citado judicialmente.
Eis a razão de ser da prescrição do art. 531° do C.C., portanto, esse normativo é válida para obrigações indivisíveis com pluralidade dos credores.
No caso sub judice, a relação jurídica estabelecida entre o Autor, C e o Réu é contrato de depósito bancário. Pois, define-se o art. 840° do Código Comercial, "Depósito bancário é o contrato pelo qual uma pessoa entrega a um banco uma soma de dinheiro ou bens móveis de valor, para que este os guarde e restitua quando para tal for solicitado."
As relações entre os bancos e os seus clientes efectivam-se, normalmente, mediante a abertura e a movimentação de contas bancárias.
As contas bancárias podem classificar-se nas contas singulares e contas colectivas, em função do número de titulares. É conta singular se a conta tem um sujeito activo e conta colectiva se o titular de conta for mais de um sujeito.
Das contas colectivas podem ser conjuntas ou solidárias.
Nas contas solidárias, qualquer dos titulares, indistinta e isoladamente, pode movimentar a débito, subscrevendo cheques ou acordos de pagamento, independentemente da autorização ou ratificação dos restantes.
A conta bancária conjunta é aquela para cuja movimentação a débito se exige a actuação unitária de todos os seus titulares, devendo, por conseguinte, os respectivos instrumentos justificativos (recibo, cheque, ordens de pagamento) ser assinados por todos eles.
O regime de conjunção das contas bancárias é efeito de convenção celebrada entre o banco e todos os co-titulares. Nos termos de tal convenção, o banco, em princípio, apenas se pode desonerar relativamente a todos os credores em conjunto, ficando foras das relações internas entre os membros co-titulares, enquanto se mantiver a conjunção .... As contas conjuntas também se denominam contas indivisas, por as partes terem convencionado que a prestação do banco, embora divisível por natureza (trata-se de dinheiro) não pode ser fraccionada, por vontade do mesmo banco. (cfr. José Maria Pires, in Direito Bancário, 2° Vol., pg.149)
As contas conjuntas e as obrigações conjuntas são conceitos diferentes. Conforme os factos tidos por assentes, as contas bancárias abertas pela Autora com outro titular C são contas conjuntas e não contas solidárias, para cuja movimentação carece da assinatura simultânea dos dois titulares.
Nas contas conjuntas, a obrigação da prestação (da restituição da quantia depositada) é, por natureza, susceptível de fraccionamento. Os credores podem exigir uma parte ou a totalidade da prestação debitória. O que não pode é que o devedor, por sua própria vontade, só restitua parte da obrigação, mesmo que seja exigida a sua totalidade. A indivisibilidade, ainda convencional, só existe em relação ao devedor e não ao credor.
Distinta das obrigações indivisível em regime de conjunção, nas contas conjuntas, segundo o acordo estipulado das partes, qualquer um dos credores não pode exigir, por si próprio sem acompanhado com os outros titulares, ao devedor a prestação, seja parcial seja global.
Não é em virtude de a obrigação ser indivisível, quer por natureza quer por convencional, que impedirá a qualquer um dos credores obter por si a satisfação da prestação por parte do devedor. Mas, sim, por vontade de todos os titulares da conta bancária e de acordo com as convenções estipuladas com o banco, por força do princípio de liberdade contratual, segundo as quais carecerá sempre da intervenção de todos os co-titulares para a movimentação da conta, entretanto, todos os credores terão o direito, por sua vez, exigir ao devedor a restituição de uma parte ou a totalidade da prestação.
Portanto, nas contas conjuntas, é a vontade das partes e não a indivisibilidade da própria obrigação que determina a actuação unitária de todos os co-titulares.
Logo, a lógica consagrada no art. 531° do C.C. não valerá para o caso das contas conjuntas.
Nesse caso, conforme o clausulado pelas partes, incumbirão aos credores de exigir, em conjunto, ao devedor a prestação da obrigação debitória, nenhum dos credores poderá, por si só, sem concurso com demais, em contrário aquilo que foi estipulado, exigir ao devedor o cumprimento da obrigação, seja por via extra-judicial seja por via judicial.
Para além disso, se por força do contrato celebrado pelas partes, exigirá à devedora o cumprimento da obrigação em relação a todos os credores em conjunto, se o Réu efectuar a prestação somente em relação a um dos co-titulares, ao arrepio dos termos clausulados do contrato de depósito bancário, o devedor também não se poderá ficar exonerada da sua obrigação perante os demais co-titulares que não tenham actuado. Pois, para a sentença produzirá o efeito útil normal, carecerá também a intervenção de todos os co-titulares.
Em suma, o contrato de depósito bancário foi estabelecido pela Autora, o outro co-titular C e o Réu, as partes convencionaram que ao banco só pode exigir a prestação sob solicitação conjunta de todos os co-titulares, o próprio negócio jurídico em si exige a intervenção dos todos os co-titulares, a falta de intervenção de qualquer um conduz a ilegitimidade activa, qualquer seja o motivo da sua ausência.
Nestes termos e fundamentos, ao abrigo do disposto do art. 429°, n.º 1, alínea a), 413°, n.º l , alínea e), 414°, todos do C.P.C.M, julga-se verificada a excepção da ilegitimidade e, em consequência, absolvendo o Réu da presente instância. “
3. Somos a sufragar o entendimento vertido na sentença e vamos analisar os argumentos expendidos pelo recorrente.
Em mui douta alegação, o recorrente faz radicar a sua pretensão no enquadramento que faz do regime a que entende estar sujeita a abertura de uma conta conjunta que diz ser fonte de uma obrigação indivisível, sujeita ao regime do art. 531.º do CC.
Atentemos nas linhas mestras da douta argumentação expendida:
- a sentença incorre no erro de não considerar obrigações indivisíveis as constituídas pelo contrato de depósito em nome de diversos depositantes em que foi estipulada a cláusula de conjunção;
- aí se faz uma distinção entre "contas conjuntas" e "obrigações conjuntas" que não tem sentido jurídico.
- quando se fala de "contas conjuntas" a respeito do depósito bancário com pluralidade de depositantes quer-se dizer o mesmo que contrato de depósito com cláusula de conjunção, logo, constitutivo de obrigações indivisíveis, ou seja, "conta conjunta" é outro modo de dizer, mas com terminologia contabilística, "depósito conjunto".
- a indivisibilidade de que trata a lei no regime das obrigações indivisíveis é indivisibilidade em sentido jurídico, que pode referir-se, como no caso, a um objecto da prestação naturalmente divisível, como é, em expressão máxima, o dinheiro.
- não se logrou na sentença partir para as regras igualmente aplicáveis ao contrato de depósito com pluralidade de depositantes, como o dos autos, em que a indivisibilidade resulta da cláusula de conjunção, como em qualquer outro contrato constitutivo de obrigações indivisíveis com pluralidade de credores.
- sendo-lhe aplicáveis as regras que resultam do regime do art. 531º do CC.
- radica o regime do actual art. 531º do CC (art. 538º do CC de 1966) no art. 1444.° do velho Código de 1867:
Se os depositantes forem solidários, ou a coisa for indivisível, observar-se-á o que fica disposto nos artigos 750.º e 751.º
E o artigo 750.° dizia:
“Sendo diversos os credores, com direito igual a receber a prestação por inteiro, pode o devedor satisfazer a qualquer deles, se já não tiver sido requerida judicialmente por outro.
Aqui nasce a regra da faculdade de qualquer co-credor de uma obrigação indivisível poder exigir o cumprimento total da respectiva prestação.
E, citando, MANUEL DE ANDRADE1, pretende ver aí a sua extensão analógica a todas as obrigações indivisíveis com pluralidade activa.
- Aduz ainda o recorrente o facto de o recurso à via judicial ser o meio que a lei lhe faculta, face à impossibilidade de contar com a intervenção do co-depositante para obter a restituição pelo modo voluntário.
- Ainda, que embora peça o levantamento da totalidade não deixa de assumir a obrigação junto do outro co-titular sobre a parte que eventualmente lhe caiba.
4. Comecemos pela interpretação histórica do preceito – 521- do CC - e sobre quanto foi dito nada haverá a dizer, reconhecendo-se que o regime das obrigações indivisas vem do CC de Seabra, tal como eloquentemente evidenciado nas peças do recorrente.
Não sem que se diga, no entanto, que já o Código de Seabra distinguia entre depositantes solidários e não solidários. A norma apontada, o art. 1444º do Código de Seabra contempla uma relação de solidariedade e o recorrente não refere a norma do art. 1443º que era muito clara, já nessa altura, ao estabelecer que “ Se forem vários os depositantes, mas não solidários, e se a coisa depositada admitir divisão, não poderá o depositário entregar a cada um deles senão a sua respectiva parte.” Claro, sabemo-lo bem, que o recorrente parte de uma indivisibilidade que não é só uma qualidade material ou física da coisa, também o podendo ser juridicamente.
5. Detenhamo-nos um pouco nesta noção da obrigação indivisível.
É verdade que a indivisibilidade de uma obrigação, para além dos casos de indivisibilidade natural, pode resultar da lei, do negócio jurídico ou da própria natureza da prestação, como será o caso da indivisibilidade legal da hipoteca ( art. 692º), negocial (1311º e 1939, n.º 3).2
A questão continua em aberto.
O que importa saber é se o regime do contrato de depósito bancário em causa constitui fonte de uma obrigação indivisível ou não. Se é possível o devedor prestar o devido na totalidade em relação a cada um dos credores conjuntos; se o deve fazer na quota parte ideal, presumida ou comprovada de cada um deles; ou se só o poderá fazer aos credores aparecendo eles a reclamar o devido em conjunto.
Na primeira solução, a questão reconduz-se ao regime da solidariedade e é isso que, no fundo, acaba por defender o recorrente; no segundo caso, salvaguardam-se as hipóteses de pôr termo a indefinições de situações jurídicas que se podiam eternizar no caso de desentendimento entre os co-titulares ou desaparecimento de um deles, obviando-se uma situação de impossibilidade de liquidação dos activos como poderia resultar da aplicação estrita da 3.ª solução.
Começamos a delinear a possibilidade de uma indivisibilidade negocial inicial poder abrir a possibilidade a uma divisibilidade material e concreta e continuar a ser compatível com a natureza da relação jurídica em presença, já que a essa divisibilidade não se opõe à natureza das coisas.
Donde não se ter de impor necessariamente a aplicação analógica de que falava Manuel de Andrade, na certeza de que não era sobre o contrato em causa que ele eloquentemente laborava.
6.Temos que ir à caracterização e natureza do contrato de depósito bancário.
O contrato de depósito bancário não se assume como um depósito normal e regular sujeito ao regime do art.1111º do CC.
O C. Comercial define-o como “o contrato pelo qual uma pessoa entrega a um banco uma soma de dinheiro ou bens móveis de valor, para que este os aguarde e restitua quando for solicitado” (art. 840º) e, tratando-se de dinheiro, terá por “efeitos a aquisição da propriedade da respectiva quantia pelo banco e a obrigação deste de a restituir em moeda da mesma espécie, em conformidade com o estabelecido pelas partes ou pelos usos.”(841º).
Este contrato encontra-se associado a uma abertura de conta, que é, no fundo, tal como bem diz o recorrente, a sua expressão e concretização contabilística.3
A sua natureza tem levantado muitas dúvidas, assumindo a forma de um depósito, como uma figura unitária, típica, autónoma e próxima do depósito irregular, 4 havendo quem defenda a sua natureza como próximo do mútuo:5
“O contrato de depósito bancário reveste a natureza de um verdadeiro contrato de mútuo. É o contrato pelo qual uma das partes (cliente) empresta à outra (banco) dinheiro, ficando esta obriga da a restituir outro tanto do mesmo género ou qualidade (artigo 1142.º do Código Civil). A definição, assim como o regime deste contrato, adequa-se perfeitamente ao depósito bancário, bem como a todo o regime deste contrato.
“Na verdade, tal como no contrate de mútuo, a propriedade da quantia entregue transfere-se para o banco (mutuário), podendo este livremente utilizá-la. O motivo que leva o cliente a depositar uma quantia no banco é não só obter a segurança do seu dinheiro (tal como aconteceria num genuíno contrato de depósito, mas também investir essa quantia, tal como o mutuante num contrato de mútuo oneroso, uma vez que recebera um juro e, eventualmente, beneficiar de um conjunto de serviços acessórios que o banco lhe poderá proporcionar.
“Além disso, o interesse neste contrato não é exclusivamente o do cliente (tal como acontece nos contratos de depósito, em que o interesse é do depositante). À semelhança do mútuo, existe também um interesse do banco (mutuário) na obtenção de fundos necessários ao financiamento das suas operações de crédito, sendo mesmo frequente o recurso a meios publicitários para "recrutar" novos clientes (potenciais depositantes).
“Há ainda dois argumentos que afastam a tese do depósito irregular, aproximando o depósito bancário do contrate de mútuo.
“O depósito bancário a prazo nunca poderia ser considerado como depósito irregular uma vez que neste, mesmo quando é fixado um prazo ao contrato,. o depositante pode,. a todo o tempo, exigir a restituição da coisa. Ora, tal não acontece no depósito bancário, onde o termo é, também, estipulado no interesse do banco (mutuário).
“Por outro lado, se há lugar ao pagamento de juros, tal implica que se considere que o interesse prevalecente no contrato é o do accipiens e que, deste modo, o contrato deverá ser considerado como um mútuo.”
7. Obrigações decorrentes do contrato de depósito
Em qualquer das perspectivas, desse contrato vão resultar obrigações do banco para com os depositantes, entre elas avultando a da restituição do dinheiro depositado, coisa necessariamente fungível, que, pela natureza da abertura de conta ,deve ser satisfeita junto dos dois depositantes.
Na verdade, nas contas bancárias conjuntas, a mobilização e disponibilidade dos fundos depositados exige a simultânea intervenção da totalidade dos titulares, enquanto nas contas solidárias basta para o efeito a intervenção de qualquer dos titulares, indistinta e isoladamente, subscrevendo cheques ou acordos de pagamento, independentemente da autorização ou ratificação dos restantes; e isto, independentemente de quem seja de facto e juridicamente o proprietário desses valores, ou seja, a natureza solidária da conta releva apenas nas relações externas entre os seus titulares e o banco, quanto à legitimidade da sua movimentação a débito, e nada tem a ver com o direito de propriedade das quantias depositadas.6
O depósito conjunto é aquele que só pode ser movimentado a débito por actuação conjunta de todos os seus titulares.7
8. Fala o recorrente numa obrigação indivisível, critério aferido pelo seu objecto, mas podemos perspectivar também essa obrigação em função dos respectivos sujeitos. Desse contrato celebrado resultará então uma obrigação conjunta ou parciária, caracterizada por a prestação se fixar globalmente, em que a cada um dos sujeitos compete apenas uma parte do crédito/débito comum, integrando-se num vínculo jurídico unitário.8
No caso, há duas pessoas que são titulares da mesma conta de depósito bancário, e que consequentemente comungam no direito de crédito de que são titulares em relação ao Banco depositário. Só a vontade das duas é apta a produzir efeitos sobre a conta, situação que se aparta de uma situação de solidariedade em que qualquer uma delas o pode fazer.
Se o recorrente se pretende fazer prevalecer do art. 531º do CC, ainda que se perspective aí uma situação de indivisibilidade negocial, não obstante a citação do devedor, tal não implica o afastamento de quem não se sabe qual a posição que o co-credor venha a tomar sobre a pretensão. É que a razão de ser, da norma, como observa, Almeida Costa, visa evitar conluios entre concredores em prejuízo dos restantes. 9
De qualquer modo, como já se aflorou, as razões que podem levar à integração de uma situação de indivisibilidade negocial inicial, deixarão porventura de existir a partir do momento em que em juízo se passa a concretizar o direito de cada um dos titulares da conta.
9. Como se sabe, a conjunção á a regra e a solidariedade a excepção – art. 506º do CC.
Acontece que só uma delas pretende que o Banco lhe entregue todo o dinheiro que ali está depositado.
Como vimos, o contrato de depósito bancário assume uma natureza mista e complexa com laivos obrigacionais e até reais quanto à entrega e propriedade da coisa entregue ao banco, quando se trate de dinheiro.
Não podemos perder de vista o activo do crédito conjunto que deve ser exercido em conjunção pelos co-titulares da conta, havendo uma dupla intervenção nas relações externas com o banco e nas relações internas entre si, tendo em vista a concretização da quota de cada no património comum.
Tal como em bens de comunhão, imóveis, móveis, sociedades, há regras de administração, de disposição e de regulação e termo da indivisão que nos podem servir de farol ao impasse criado, como na situação presente, em resultado da ausência de um dos titulares.
Esta constatação, leva-nos a acompanhar a posição que foi defendida em solução da Jurisprudência Comparada10, respeitante a uma situação das chamadas contas conjuntas, em oposição às chamadas contas solidárias. Assim, nos termos do art.º 1300º do Cód. Civil, "as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles". E uma dessas regras é a do art.º 1299º, n.º 2, do mesmo diploma: "os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo".
Aquela expressão genérica "comunhão de quaisquer outros direitos" inculca que a disciplina jurídica ali consagrada, se bem que prevista em princípio para as hipóteses de compropriedade e de outros direitos reais, se aplica mesmo a direitos de outra natureza, sendo localizada na regulamentação da compropriedade por uma questão de sistematização por ser em relação ao domínio, especialmente sobre coisas imóveis, que as situações de contitularidade de direitos surgem com mais frequência e assumem maior relevo. Por isso se entende que essa disciplina se aplica mesmo quando o direito em causa, integrado na titularidade simultânea de mais que uma pessoa, seja de natureza creditória, como é a hipótese do direito dos depositantes sobre o Banco precisamente no caso das contas bancárias conjuntas, referido de forma expressa por Pires de Lima e Antunes Varela. 11
Apesar de não ser de ter em conta a presunção do art.º 509º, tem de se considerar a norma daquele art.º 1299º, n.º 2, aplicável à hipótese dos autos por não deixarmos de nos encontrar perante um caso de comunhão de direitos, e que, adaptada à presente situação, apontará afinal no mesmo sentido daquela, por inexistência de indicação ou prova em contrário, sem que, face a tal presunção, se possa fazer recair sobre a parte ausente as consequências da falta de prova de ilisão da presunção de contitularidade sobre o dinheiro à data em que o depósito foi efectuado.
Daqui decorre a necessidade de a parte ausente estar na acção, para poder fazer valer os seu direitos em relação ao património comum, créditos comuns, sendo completamente diferente receber do devedor, na hora, ou vir a exercer eventual direito posterior sobre o co-titular, relegando a satisfação do seu direito para as meras relações internas entre os co-titulares da conta conjunta. Até para poder comprovar qual a expressão da sua quota, ilidindo a presunção da quota proporcional supletiva e dando-se-lhe a oportunidade de se opor à entrega do dinheiro a quem não pertença, já que a abertura de conta e a celebração do contrato de depósito bancário não determina necessariamente que o beneficiário da conta seja o dono do dinheiro, bem se podendo demonstrar qual o motivo pelo qual foi efectuada a tradição do dinheiro revelada através do próprio depósito nos termos em que foi concretizado.
10. Somos, pois, a entender que, no caso, mesmo a considerar-se uma situação de indivisibilidade negocial por aplicação do regime do art. 531º, n.º 2 do CC, não podemos perder de vista que a obrigação deve ser satisfeita em conjunção dos credores titulares da conta que não podem deixar de estar presentes na acção.
Exactamente para poderem defender o exacto alcance do crédito, da sua comparticipação nele e da satisfação do mesmo, ainda que negocialmente indivisível, aqui com o alcance de separadamente.
A relação substantiva em presença pressupõe a presença dos co-titulares da conta na acção e não é a sua ausência que obsta ao seu chamamento e sua representação processual na acção.
Razões por que somos a considerar que, independentemente da possibilidade de satisfação do crédito global na pessoa de um dos co-titulares - questão de que ora não se cura -, a tratar-se de uma indivisibilidade negocial, tal não dispensa a intervenção do outro co-titular na acção e assim se sufraga o douto entendimento vertido na decisão ora recorrida.
IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 14 de Julho de 2016,
_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
_________________________
Ho Wai Neng
_________________________
José Cândido de Pinho
1 - Teoria Geral das obrigações, 2.ª ed., 178 e 179
2 - Cfr. Manuel Trigo, Lições de Dto das Obrigações, 2014, 424
3 - Menezes Cordeiro, Manual de Dto Bancário, 3ª ed., 480
4 - Menezes Cordeiro, ob. cit. 482
5 - Paula Ponces Camanho, Contrato de Depósito Bancário, Almedina, Reimp., 2005, 209
6 - Ac. do STJ, de 11/1072005, Proc. n.º 04B1464
7 - Paula Camanho, ob. cit., 139.
8 - A. Varela, das Obrigações em Geral, 10ª ed., 2006, 748 e segs
9 - Almeida Costa, Obrigações, 230
10 - Ac. do STJ, de 3/6/2003, Proc. n.º 03A1615
11 - . Código Civil Anotado", Vol. III - 2.ª ed., pgs. 350-351
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263/2016 24/24