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Processo n.º 156/2016
(Recurso Cível)
    
Relator: João Gil de Oliveira
Data : 21/Julho/2016

ASSUNTOS:
- Sigilo profissional do empregado forense
- Contrato promessa como garantia de empréstimo
    
    
    SUMÁRIO :
1. Em princípio o empregado de um escritório forense está abrangido pelo segredo profissional do advogado para quem trabalha.

2. Se as partes celebram um mútuo entre si, mas na mesma data fazem com contrato-promessa sobre um imóvel do vendedor, prevendo apenas um negócio indirecto de garantia, não é possível pretender executar especificamente esse contrato-promessa, mostrando-se que a venda não corresponde à vontade real dos declarantes.

O Relator,





Processo n.º 156/2016
(Recurso Civil)
Data : 21/Julho/2016

Recorrente: (Recurso Final / Recurso Interlocutório)
        - A

Recorrida : - B

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
     1. A, mais bem identificado nos autos, intentou acção ordinária contra
    B, também ele aí mais bem identificado,
    com os fundamentos apresentados constantes da petição inicial de fls. 2 a 8,
    pedindo que fosse julgada procedente por provada a presente acção, e em consequência:
    1. Fosse proferida sentença constitutiva que produza os efeitos jurídicos da declaração negocial da Ré faltosa, do modo a transmitir ao Autor a propriedade da fracção autónoma designada por "A3" correspondente ao terceiro andar "A" do prédio urbano sito em Macau, na Rua da XX, n.ºs XX, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XX5, a fls. 2XXv do Livro B10, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 7XXX6;
    Subsidiariamente, casa assim se não entenda
    2. Fosse declarada resolvido o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre Autor e Ré por culpa exclusiva desta, e, consequentemente, ser ainda a Ré condenada a devolver ao Autor o valor por este pago, em dobro, no montante, portanto, de MOP$412.600,00, nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 436 do CC, acrescido do montante pelo Autor pago para expurgação hipotecário da Ré, no valor de MOP$192.982,78, sob pena de enriquecimento sem causa desta, tudo acrescido dos respectivos juros vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 9,75%..
    
    2. A, Autor e Recorrente nos autos à margem referenciados, vem interpor um recurso interlocutório sobre a admissibilidade de uma testemunha, alegando, em síntese conclusiva:
    A) O sigilo profissional do advogado não é extensível aos seus empregados, não podendo ser aplicada analogicamente a norma que estabelece esse sigilo, dado o seu carácter excepcional face à regra da disponibilidade dos depoimentos.
    B) Em relação a esses empregados a defesa do sigilo põe-se a nível objectivo, ou seja, incumbe ao próprio advogado exigir tal sigilo.
    C) Esta exigência integra-se nas relações laborais do escritório e não pode prevalecer sobre o dever geral de contribuir para a descoberta da verdade
    D) O direito ao sigilo do advogado está na plena disponibilidade da parte que dele pode beneficiar.
    E) O dever de sigilo (do empregado ou de pessoa que colabore com o advogado) não pode prevalecer sobre o dever de depor, que corresponde a um interesse público, que é o da boa administração da Justiça e da descoberta da verdade.
    F) Ademais, não existe qualquer norma que exima o empregado forense do dever de depor.
    G) A decisão recorrida está inquinada por erro de julgamento, por errada interpretação e aplicação das normas supracitadas.
    
    3. B responde, em síntese:
    a) Entende a A., ora recorrida, que o despacho proferido pelo Tribunal Colectivo em 1ª Instância, na audiência de discussão e julgamento de 28 de Maio de 2015 - que não admitiu o depoimento da testemunha do A., C - fez correcta interpretação da lei.
    b) Na verdade, os "colaboradores" dos advogados estão obrigados ao mesmo sigilo profissional dos advogados com quem colaboram.
    c) Outra não poderia ser a interpretação da norma expressa do n.º 3 do art. 5 do Código Deontológico:
    "O advogado deve exigir dos seus associados, empregados ou de qualquer pessoa que consigo colabore na prestação de serviços profissionais, a observância desse segredo profissional".
    d) Na situação em apreço, não foi solicitada à Associação dos Advogados a cessação da obrigação de segredo profissional, pelo que andou bem o Tribunal "a quo" em não admitir aquele depoimento porquanto o mesmo por força do disposto no art. 6° do Código Deontológico - seria nulo.
    Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo A., mantendo-se o despacho recorrido.
    
    4. A, Autor e Recorrente nos autos à margem referenciados, notificado da admissão do recurso que interpôs da douta sentença nos mesmos proferida, vem apresentar as suas alegações de recurso, o que faz, em síntese:
A) O contrato-promessa dos autos pode qualificar-se como um contrato misto e ou atípico, mas nunca como viciado por simulação, conclusão esta do douto Tribunal a quo que conforma uma presunção judicial não admissível.
    B) Se alguma presunção pode acatar-se, é a estatuída no art. 788.° do Código Civil.
    C) A resposta do douto Tribunal a quo aos quesitos 9.ºA a 10.° da Base Instrutória, não foi suportada em qualquer meio probatório.
    D) Nenhum depoimento foi produzido aos mencionados quesitos, nem poderia ter sido, por via da proibição imposta pelo art. 388.° do Código Civil.
    E) A douta sentença recorrida decidiu em violação do disposto no art. 344.° do Código Civil.
    F) Impõe-se, portanto, a modificação da matéria de facto, nos termos do previsto no art. 629.°, n.º 1 do Código de Processo Civil, passando os respectivos quesitos a constar como não provados.
    G) Os factos constantes da Matéria de Facto Assente impõem uma decisão de conteúdo e sentido diverso, consentânea com o pedido inicial do Recorrente.
    Termos em que e nos melhor de Direito que V. Exªs, doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, e, consequentemente, revogar-se a decisão recorrida, com todas as legais consequências, modificando-se a decisão da matéria de facto, devendo dar-se por não provados os quesitos 9.ºA a 10.° da Base Instrutória, e, em qualquer caso, decidindo-se, a final, em conformidade com o pedido inicial do recorrente.
    
    5. B, R. e recorrida nos autos à margem referenciados, notificada das alegações apresentadas pelo A. e recorrente, A contra-alega:

    1. Insurge-se o recorrente contra a decisão da 1ª Instância quanto à matéria de facto provada e quanto a questões de direito.
    Basicamente, entende o recorrente que a matéria assente nos quesitos 9° A a 10° da base instrutória "não foi suportada em qualquer meio probatório"; que o alegado contrato promessa dos autos é um "contrato misto e ou atípico, mas nunca viciado de simulação"; que a sentença recorrida "decidiu em violação do disposto n.º art. 344° do Código Civil"; impondo-se "portanto, a modificação da matéria de facto, nos termos do previsto no art. 629°, n.º 1 do Código do Processo Civil, passando os respectivos quesitos a constar como não provados".
    Sem razão, contudo, salvo o devido respeito.
    Da simulação
    2. Comecemos pelos pedidos formulados pelo A. Recorrente:
    • execução específica do invocado contrato-promessa nos termos do art. 820° do C.C.; e
    • subsidiariamente, a declaração de resolução daquele contrato-promessa de compra e venda e, consequentemente, a condenação da R. a pagar ao A. o valor do sinal em dobro, no valor de MOP$412,600.00, nos termos do art. 436°, n.º 2 do C.C.; acrescido do montante pago pelo A. para expurgação do hipoteca que incidia sobre o imóvel, no valor de MOP$192,982.78, tudo acrescido dos respectivos juros.
    3. Isto é, quer o pedido principal quer o pedido subsidiário tinham por base a validade do alegado contrato-promessa de compra e venda.
    Ora, é aqui precisamente que a recorrida não concorda com a posição assumida pelo recorrente nas suas alegações, quando afirma que são "frequentes, legítimos e legais" situações em que "os contraentes, mesmo em casos de mútuo, celebram contratos-promessa com eficácia real, respaldados, ainda por procurações irrevogáveis",
    4. É que, como bem se decidiu em 1ª Instância, o alegado contrato-promessa não corresponde à vontade real das partes; antes constituía a garantia do pagamento de uma dívida de valor não inferior a HKD$56,000.00 que a R. havia contraído junto do A..
    5. Na verdade, um imóvel dado de garantia ao pagamento de uma dívida não se faz por meio de um contrato-promessa de compra e venda e procuração irrevogável; mas sim por meio de hipoteca voluntária que é um contrato que deve constar, de escritura pública e registo obrigatório, sob pena de não produzir os respectivos efeitos (art.°s 682°, 683°, 707° e 709° do C.C.).
    6. E estes actos, estes sim, legalmente admissíveis, seja uma compra e venda, seja uma hipoteca, têm custos de diversa índole - v.g., emolumentos, impostos - a que as partes, por acordo entre si, quiseram eximir-se, "enganando, por isso, terceiros".
    Isto é, como refere e bem a sentença recorrida, o documento dos autos "na parte que aponta para a celebração de um contrato-promessa de compra e venda entre as partes, não corresponde à vontade real das partes. Pois as partes queriam estabelecer um contrato de mútuo mas declararam nessa parte que queriam celebrar um contrato-promessa".
    Concluindo que existiu "uma divergência entre a declaração constante do documento junto a fls. 15 e a vontade dos declarantes".
    7. E, mais à frente, "essa não correspondência destina-se a enganar terceiros". " ... designadamente as autoridades administrativas".
    Trata-se, por isso, nos termos do art. 232º do C.C. de um negócio simulado. E o negócio simulado é nulo; não produzindo quaisquer efeitos.
    8. Assim sendo, ambos os pedidos formulados pelo A. recorrente, tendo sempre por base um contrato-promessa simulado - a execução específica do contrato ou a sua resolução e devolução em dobro do "sinal" recebido - nunca poderiam proceder, por se tratarem, ambos, dos efeitos de um contrato nulo.
    9. A "liberdade contratual" prevista no n.º 1 do art. 399º do C.C. não significa a possibilidade de estipulação de quaisquer conteúdos contratuais.
    Como aí se refere, a formação do conteúdo contratual tem de ser feito "dentro dos limites da lei".
    Ao que acresce o disposto no art. 273º do C.C.:
    "1. É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável.
    2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes."
    E o disposto no art. 287º de que também são nulos os "negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo."
    É esta precisamente a situação do contrato em apreço.
    O espaço que se deixa à autonomia privada tem limites cuja determinação tem de ser feita casuisticamente, através de juízos de licitude.
    Foi essa precisamente a posição assumida pelo Tribunal "a quo" na interpretação feita ao documento de fls. 15, cuja nulidade, por simulação, decidiu.
    Da matéria de facto
    10. Entende o recorrente - foi essa a parte levou às conclusões - que a matéria de facto assente em resposta aos quesitos 9°, 9° A, 9°B, 9°C e 10° da base instrutória não teria sido suportada em qualquer meio probatório.
    E para basear a sua afirmação, refere que ao Tribunal "a quo" estava vedado o recurso a presunções judiciais, por força do disposto no art. 344° do C.C..
    Isto é, na óptica do recorrente, não tendo sido admitido o depoimento das testemunhas da R., então, o Tribunal "a quo" estaria impedido de recorrer a presunções judiciais.
    Tudo bem, se assim fosse.
    Só que não foi.
    11. O Tribunal "a quo", ao contrário do que refere o recorrente, não tirou qualquer ilação - presunção judicial - do documento de fls. 15 dos autos, o alegado contrato-promessa.
    Limitou-se, isso sim, o Tribunal "a quo" a interpretar o contexto do documento, nomeadamente, a cláusula 7ª do documento de fls. 15, tudo com base nas normas do disposto no art. 370°, n° 1 e 2 do C.C., segundo as quais os factos compreendidos nos documento particulares cuja autoria seja reconhecida, "… consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante …".
    12. Em nota ao art. 376° do Código Civil de Portugal (com redacção igual ao art. 370° do C.C. de Macau), ensinam Pires de Lima e Antunes Varela ("Código Civil Anotado", pág. 332 – 4ª edição):
    "O n.º 1 deste artigo deve ser interpretado em harmonia com o disposto no n.º 2. Só as declarações contrárias aos interesses do declarante se devem considerar plenamente provadas, e não as favoráveis, como no caso de se declarar que se emprestou a alguém determinada quantia. A força probatória do documento não impede que as declarações dele constantes sejam impugnadas com base na falta de vontade ou nos vícios da vontade capazes de a invalidarem."
    13. A simulação é um vício da vontade.
    O Tribunal "a quo" interpretou correctamente o conteúdo do negócio formulado entre A. e R., concluindo de forma inequívoca, da leitura da cláusula 7ª do documento em causa: "Trata-se de uma cláusula que demonstra inequivocamente a existência de um empréstimo e as restantes cláusulas não passam de um meio para dar uma aparência não conforme à realidade."
    14. O recorrente não concorda é com a convicção do Tribunal "a quo" na apreciação da matéria do facto.
    Mas essa oposição colide com o disposto no art. 588°, n.º 1 do C.P.C., segundo a qual, "o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto".
    E o Tribunal "a quo" não estava impedido de apreciar livremente o conteúdo do documento de fls. 15.
    Tal como apreciou.
    E concluiu que o documento apresentado pelo A., como um contrato-promessa de compra e venda não o era; mas sim que se tratava de um contrato de mútuo, encapotado por uma promessa de compra e venda, que mais não era do que agarantia do pagamento da quantia mutuada.
    Tal como o R. alegou e provou, vendo por isso julgado procedente o seu pedido reconvencional.
    15. Uma última referência à prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
    Como bem refere o acórdão proferido quanto à matéria de facto, "… nada de relevante para o esclarecimento da causa teve a prova testemunhal, visto que a testemunha José Nogueira, além de ter somente conhecimento de agluns dos factos, o conhecimento que tem adveio do que o Autor lhe contara em finais de 20120…".
    Por outro lado, o depoimento da testemunha C foi julgado nulo. Nenhuma consequência se poderá, pois, tirar de um depoimento nulo que, por isso mesmo, não é referido na fundamentação da convicção do Tribunal "a quo".
    16. O recorrente impugna a decisão de facto. Contudo, o que "considera incorrectamente julgado" não advém da prova testemunhal produzida em julgamento.
    A decisão proferida pelo Tribunal "a quo" está devidamente fundamentada e baseia-se na interpretação - que lhe não está vedada - ao conteúdo do documento de fls. 15.
    Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo A., mantendo-se integra a decisão recorrida.
    
    6. Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:
    Da Matéria de Facto Assente:
    - A fracção autónoma designada por "A3" correspondente ao terceiro andar "A" do prédio urbano sito em Macau, na Rua da XX, n.º's XX, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XX5, a fls. 2XXv do Livro B10, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 7XXX6, da freguesia da Sé (alínea A) dos factos assentes).
    - Através da inscrição n.º 8XXXX0, de 27 de Julho de 2004 na Conservatória do Registo Predial encontra-se registada a aquisição, por compra, a favor da Ré (alínea B) dos factos assentes).
    - Sobre a fracção autónoma referida na alínea A), encontra-se inscrita, sob o n.º 5XXXXC, uma hipoteca, constituída pela Ré, para a garantia de empréstimo bancário seu do valor de MOP$226.930,00 (alínea C) dos factos assentes).
    - Em 6 de Setembro de 2006 o Autor e a Ré assinaram um acordo que tem por objecto a fracção autónoma identificada em A) dos factos assentes, cujo teor consta de fls. 15 dos autos (alínea D) dos factos assentes).
    - As cláusulas 1, 2, 3 do acordo referido têm o seguinte teor (alínea E) dos factos assentes):
    “一) 甲方現承諾將上述單位以港幣貳拾萬元正(HKD$200,000.00),折算澳門幣貳拾萬陸仟叁佰元正 (MOP$206,300.00)之價格出售予乙方,雙方同意以港幣交收, 而乙方亦承諾照價承購,但乙方並不承擔任何由甲方引至之債務及負擔,甲乙雙方同意下列付款方法。
    二) 乙方於即日將訂金港幣伍萬陸仟元正(HKD$56,000.00)繳交予甲方,甲方聲明已收妥該款項,樓款中扣除訂金,尚餘港幣壹拾肆萬肆仟元(HKD$144,000.00)須在簽立公證契約時付清。
    三) 由即日起計甲乙雙方必須於玖拾天內完成辦理簽立公證契約手續,倘經甲乙雙方同意下可延期。"
*
    Da Base Instrutória:
    - No dia 6 de Setembro de 2006, a Ré passou uma procuração a favor do Autor, relativamente à fracção autónoma identificada na alínea A) dos factos assentes, conferindo-lhe poderes para designadamente, prometer vendê-la, vendê-la ou por qualquer forma aliená-la, nas condições que entender (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
    - Em 15 de Agosto de 2007, no uso dos poderes que a Ré lhe conferira através da procuração aludida na resposta ao quesito 1°, o autor deu de arrendamento a fracção autónoma, consignando o contrato em representação da Ré, a D (resposta ao quesito da 7º da base instrutória).
    - Em 28 de Setembro de 2007, o remanescente da dívida referida na alínea C) dos factos assentes, no valor de MOP$192.982,78, foi pago com dinheiro do Autor (resposta ao quesito da 8° da base instrutória).
    - Até à data da entrada da petição inicial em juízo, a Ré nunca se dispôs a outorgar o contrato prometido (resposta ao quesito da 9° da base instrutória).
    - Em data não apurada de 2006, a Ré solicitou ao Autor um empréstimo de valor não inferior a HKD$56.000,00 (resposta ao quesito da 9°A da base instrutória).
    - Para garantir o reembolso do montante referido na resposta ao quesito 9°A, a Ré assinou o acordo referido na alínea D) dos factos assentes e a procuração referida na resposta ao quesito 1° (resposta ao quesito da 9°B e C da base instrutória).
    - Apesar de assinatura do acordo mencionado na alínea D) dos factos assentes, a Ré nunca quis prometer vender e o Autor nunca quis prometer comprar a fracção autónoma identificada na alínea A) dos factos assentes (resposta ao quesito da 10 da base instrutória).
    - O que consta da resposta ao quesito 8° (resposta ao quesito da 11° da base instrutória).
    III – FUNDAMENTOS
     Vêm interpostos dois recursos:
    - Recurso interlocutório que denominaremos de A, relativo à inadmissibilidade de um depoimento de um funcionário do advogado, sendo-lhe extensivo o direito/dever de reserva relativo ao sigilo profissional;
    - um recurso B, da sentença proferida a final.

Recurso interlocutório A
    1. O douto despacho recorrido decidiu pela inadmissibilidade do depoimento da testemunha em questão, sob pena de nulidade, por lhe considerar aplicável a disposição do n.º 3 do art. 5.º do Código Deontológico dos Advogados, homologado pelo Despacho n.º 121/GM/92, de 31 de Dezembro, o qual reza o seguinte:
    «o advogado deve exigir dos seus associados, empregados ou de qualquer pessoa que consigo colabore na prestação de serviços profissionais, a observância desse segredo profissional.»
    2. Defende o recorrente que o dever de sigilo impende sobre o advogado e não sobre o empregado ou outra pessoa que com aquele colabore. Estes não estão sujeitos à mesma obrigação de sigilo que o advogado.
    Se dúvidas houvesse, as mesmas seriam resolvidas, definitivamente, pelo disposto no n.º 1 do citado artigo:
    «O segredo profissional é um direito e um dever fundamental do advogado (...)»
    Se assim se não entendesse, diz, criar-se-ia para o empregado forense (ou qualquer pessoa que com o advogado colabore... ) um regime mais restrito que o que impende sobre o advogado.
    O dever de sigilo (do empregado ou de pessoa que colabore com o advogado) não pode prevalecer sobre o dever de depor.
    A testemunha C foi quem preparou e redigiu os documentos (contratos, procuração e acordos adicionais) assinados pelas partes neste litígio, cujas minutas foram juntas com a petição inicial.
    Os referidos contratos, acordos e procuração foram outorgados e assinados na presença da testemunha, no escritório forense de que é funcionário.

3. Afigura-se que não assiste razão ao recorrente.
Tratámos já do segredo profissional no Ac. deste TSI, de 9/2/2012, Proc. n.º 616/2007, tendo-se admitido o depoimento, mas num caso diferente em que a foi a parte a quem aproveitaria eventual segredo que apresenta o obrigado ao sigilo, entendendo-se que o dispensaria do mesmo e sem oposição da parte contrária.
    Vale no entanto quanto aí se expõe, ao dizer-se que “O fundamento ético-jurídico do segredo profissional radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense. Traduz-se num dever de guardar os segredos do cliente e só é segredo o que não está divulgado, aquilo que outros não devem saber, o que não é exactamente a mesma coisa daquilo que não se quer que se saiba.”
    No caso “sub judice” a situação é diferente. A matéria é reservada, trata-se de dilucidar um facto ao nível da vontade das partes, expondo eventuais divergências, motivações e confidências, não se podendo aceitar que as partes não estejam à vontade e digam o que entendam dever dizer na defesa dos seus interesses e negócios na presença do advogado não havendo razão para excluir os auxiliares deste desse mesmo sigilo.
     O alegado contrato-promessa, outros documentos e minutas, na versão dos factos carreada aos autos pelo A., foram preparados e assinados em escritório de advogados.
    A testemunha cujo depoimento não foi admitido foi o ''funcionário forense" daquele escritório que foi incumbido de redigir o acordo titulado pelos documentos e minutas em apreço nos autos e de preparar a respectiva assinatura.
    Não se compreende facilmente que o sigilo profissional que rege a advocacia cesse quando, como é o caso, o "empregado forense" tiver conhecimento dos factos relatados ao advogado pelos seus clientes, sabendo nós que muitas vezes o empregado do escritório é até o intermediário privilegiado na relação cliente advogado, o que se reforça quando o advogado não domina a língua do cliente.
    4. Assim se justifica a norma expressa do n° 3 do art. 5 do Código Deontológico:
    "O advogado deve exigir dos seus associados, empregados ou de qualquer pessoa que consigo colabore na prestação de serviços profissionais, a observância desse segredo profissional".
     A extensão, desse dever, como assinala o recorrente, é bem assinalada nas palavras de António Arnault "O espirito da lei e o fundamento do sigilo, alarga a obrigação de segredo aos empregados e colaboradores do escritório e aos juristas ou peritos consultados sobre o caso, quer tenham ou não emitido parecer." 1
    E a dispensa do dever de sigilo pode ser concedida nos termos do art. 5º, n.º 3 do Código Deontológico pelo próprio advogado, o que também se compreende e se isso envolver o seu próprio dever de sigilo deverá pedir o levantamento à Associação dos Advogados.
    5. No caso em concreto, como refere o recorrente, a testemunha cujo o depoimento o A. visaria, "foi quem preparou e redigiu os documentos (contratos, procuração e acordos adicionais) assinados pelas partes neste litígio ... "; e estes documentos "... foram outorgados, e assinados na presença da testemunha, no escritório forense de que é funcionário".
    Acompanha-se ainda aqui a argumentação da recorrida, pois como "colaborador" de um escritório de advogados, ele não deixou de ter um aparticipação activa como executor e, porventura, mentor do negócio.
    E se ele pode ser dispensado do sigilo, comum a ambas as partes envolvidas, vista a natureza do negócio, por uma das partes envolvidas, a parte que o arrola, essa dispensa terá de proceder também da outra parte. Ora, não é isso que se observa no caso presente. Não há obviamente acordo quanto a essa dispensa.
    Não havendo essa dispensa, andou bem o Tribunal "a quo" em não admitir aquele depoimento porquanto o mesmo - por força do disposto no art. 6º do Código Deontológico, o que não deixaria de gerar a nulidade da prova nos termos do art. 6º do Cód. Deontológico do Advogado.
    Temos presente o Ac. do STJ, de 9/12/2004, Proc. n.º 04B2076, segundo o qual, não obstante se dizer que “o sigilo profissional do advogado não é extensível aos seus empregados”, não deixa de proclamar uma dependência da disponibilidade do sigilo nas mãos do advogado, a quem incumbirá exigir tal sigilo, estando na disponibilidade de quem dele pode beneficiar, colocando-se a defesa do sigilo a nível objectivo.
    Como se assinalou, respeitando as razões e motivações do negócio a ambas as partes, opondo-se uma delas à divulgação do que foi dito e não dito, aquando da feitura do contrato, compreende-se que esse empregado forense não possa depor.
    Improcede, pois, este recurso.

Recurso B
Impugnação da matéria de facto.
1. Numa alegação algo confusa, vem o recorrente impugnar a matéria de facto, mas, no fundo acaba por ter razão quanto ao elemento essencial relativo à intenção de celebração do contrato promessa.
A lei processual é muito clara, impondo um ónus de impugnação especificada dos concretos pontos da matéria de facto considerados incorrectamente julgados e qual a concreta base probatória para se aferir desse julgamento de facto, o que resulta do disposto no art. 599.º, n.º 1, a e b) e n.º 2, ainda do art. 629, n.º 1, a) do CPC.
Se o primeiro pressuposto se mostra observado, já não assim, com igual clareza, o segundo dos apontados requisitos.
O que se pretende com o referido ónus é que a parte diga que foi considerado este facto provado ou não provado e devê-lo-ia ter sido de modo diferente, com base nesta específica base probatória, porque esta testemunha disse isto, aquela disse aquilo, desta cláusula concreta do documento X resulta este ou aquele facto.
Ora o que resulta é uma certa amálgama, misturando-se presunções, conclusões, documentação na generalidade, mais se preocupando o recorrente em comentar os raciocínios desenvolvidos pelo Colectivo do que demonstrar e convencer que os factos deviam ter sido outros.
Mas vamos fazer um esforço e tentar responder às dúvidas que se colocam.

2. Os factos de que o recorrente discorda são os seguintes: quesitos 9.ºA a 10.° da Base Instrutória.
    Em audiência de julgamento não foi produzido qualquer depoimento, designadamente aos quesitos 9.° A a 10.º, como diz o recorrente.
    Resta a prova documental sobre a qual diz genericamente que não justifica conclusões retiradas pelo tribunal.
    Atentemos na motivação da convicção, cuidada e criteriosamente exposta:
“A convicção do Tribunal baseou-se nos documentos juntos aos autos e no depoimento das testemunhas ouvidas em audiência que depuseram sobre os quesitos da base instrutória, cujo teor se dá por reproduzido aqui para todos os efeitos legais, o que permitiu formar uma síntese quanto aos apontados factos.
Da prova produzida, nada de relevante para o esclarecimento da causa teve a prova testemunhal visto que a testemunha José Nogueira, além de ter somente conhecimento de alguns dos factos, o conhecimento que tem adveio do que o Autor lhe contara em finais de 2012; e as 2 testemunhas da Ré, nada sabem sobre o facto às mesmas perguntado.
Portanto, foi apenas a prova documental a qual demonstra a assinatura
do acordo referido em D) e do contrato de arrendamento referido no quesito 7° da base instrutória bem como que a dívida hipotecária foi paga com dinheiro do Autor.
Relativamente à procuração, consta dos autos apenas uma minuta da mesma não assinada. Contudo, o tribunal teve em conta tanto o acordo referido
em D) e como o contrato de arrendamento acima referido fazem referência à procuração, o tribunal considerou que a mesma foi efectivamente assinada.
O tribunal não deu como provado os acordos e o seu teor referidos nos quesitos 2° a 6° porque apenas foram juntas duas minutas dos acordos não assinadas, facto que impede que se afirme que as mesmas foram efectivamente assinadas.
Quanto aos factos invocados pela Ré, foi o teor do acordo referido em D) dos factos assentes que levou o tribunal a considerar que entre as partes existiu, pelo menos, um empréstimo e este acordo foi assinado para garantir o pagamento da dívida. É que, não obstante o acordo conter as cláusulas típica de um contrato-promessa de compra e venda, consta do mesmo uma cláusula (a cláusula 7") depois destas cláusula típicas com o seguinte teor: se a Ré devolver a quantia de HK$S6.000,OO ao Autor no prazo de 90 dias, as partes concordam em cancelar o acordo devendo o Autor restituir a procuração e cancelar o registo predial; se a Ré não devolver essa quantia no prazo de 90 dias ou as partes não acordarem na prorrogação do prazo nem a Ré tomar iniciativa de contactar o Autor é considerado que houve incumprimento contratual por parte da Ré podendo o Autor munir-se da procuração e vender a fracção autónoma a terceiro e devendo a Ré entregar a mesma. Trata-se de uma cláusula que demonstra inequivocamente a existência de um empréstimo e as restantes cláusulas não passam de um meio para dar uma aparência não conforme à realidade. Com efeito, a cláusula 4' estipula que a fracção autónoma deve ser entregue no dia da celebração do contrato definitivo e a falta de entrega da mesma é considerado não cumprimento do acordo por parte da Ré devendo esta restituir o dobro do sinal ao Autor. Sendo assim não se
compreende como é que se aceita a restituição do sinal em singela sem qualquer sanção e o cancelamento do acordo.
Ademais, o próprio Autor alega ter despendido muito mais do que o preço acordado para adquirir a fracção autónoma. Com efeito, alega o mesmo que pagou inicialmente HK$56.000,00, depois mais HK$99.200,00 e finalmente, em 10 de Agosto de 2007, algo mais perfazendo HK$200.000,00 e, em beneficio da Ré, o remanescente da dívida hipotecária, no valor de MOP$192.982,78. Está apenas provado que o Autor desembolsou as quantias de HK$56.000,00 e de MOP$192.982,78. Mesmo sem ter em conta as outras duas quantias que o próprio Autor alega ter pago, no valor total de HK$144.000,00, o Autor despendeu mais do que estava acordado sendo certo que o acordo referido na alínea D) dos factos assentes estipula que o pagamento da dívida hipotecária é da responsabilidade da Ré. Nada justifica tal atitude.
Foi por força das considerações referidas nos dois parágrafos anteriores que o tribunal considerou que as partes não queriam prometer comprar ou prometer vender a fracção autónoma através do acordo referido em D) dos factos assentes.”
    3. Vejamos ponto por ponto.
Quesito 9ºA – Na data não apurada de 2006, a Ré solicitou ao Autor um empréstimo de HKD$200.000,00, por um ano, para fazer face a despesas familiares urgentes?
A resposta está dada acima, parecendo irrepreensível o acordo expresso que refere o empréstimo de HKD$56.000, mais se aludindo a que o contrato não teria efeitos se o empréstimo fosse pago.
Diz o recorrente que essa é a prática. Empresta-se dinheiro e promete-se uma venda, por vezes com procuração até para negócio consigo mesmos, pelo que nada estranharia que isso também aqui acontecesse. Pretende o recorrente retirar dessa prática uma conclusão para rebater aquela a que o Tribunal chegou, mas essa conclusão não merece qualquer cítica, pois está devidamente documentada e não choca com a lógica das coisas.
Quesito 9ºB – Para garantir o reembolso do montante referido no art.º 9ªA, o Autor exigiu à Ré que formalizasse consigo um pretenso acordo que tem por objecto a compra e venda da fracção autónoma referida na alínea A)?
Quesito 9º - C- A Ré aceitou e, por isso, assinou o acordo mencionado na alínea D) dos Factos Assentes?
A resposta dada conjuntamente aos quesitos B e C parece coerente: - “Para garantir o reembolso do montante referido na resposta ao quesito 9º A, a Ré assinou o referido na alínea D) dos factos assentes e a procuração referida na resposta ao quesito 1º.
Pretende o recorrente que a lógica não exclui a existência de um contrato-promessa para garantia, mas o que se trata de saber é qual a primeira vontade dos contraentes. E aí parece não haver dúvida de que o que houve foi um empréstimo. Só se este não fosse cumprido, foi o recorrente autorizado a poder vender.
Quesito 10º - Apesar da assinatura do acordo mencionado na alínea D) dos Factos Assentes, a Ré nunca queria vender e o Autor nunca queria adquirir a fracção autónoma identificada na alínea A) dos factos assentes?
A resposta dada – “PROVADO que apesar de assinatura do acordo mencionado na alínea D) dos factos assentes, a Ré nunca quis prometer vender e o Autor nunca quis prometer comprar a fracção autónoma identificada na alínea A) dos factos assentes. – parece já não se compatibilizar com o teor dos documentos, com o acordo com o celebrado, com os restantes factos e com a normalidade da vida e da experiência comum. Aí, aceita-se que o recorrente tem razão, parecendo já não tão coerente a resposta dada, evidenciando-se claramente que, não obstante as partes terem querido um empréstimo, não deixaram de querer, se ele não fosse cumprido, que aí surgiria a possibilidade de se realizar um contrato de venda do imóvel como garantia das obrigações não cumpridas.
Tem, pois, razão o recorrente no que concerne a este ponto da matéria de facto.

4. Pretende o recorrente a execução específica do contrato promessa, porque a Ré não pagou o empréstimo, isto, na lógica de um contrato misto de mútuo com garantia concretizada na transferência da propriedade que serviria de garantia.
Atentemos na fundamentação vertida na sentença recorrida:
    “Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
    Pela presente acção, vem o Autor pedir a execução específica do contrato-promessa alegadamente celebrado entre as partes em 6 de Setembro de 2006.
    Pretende, portanto, a execução específica desse contrato-promessa.
    A título subsidiário, pede a resolução do contrato bem como a condenação da Ré no pagamento do dobro da quantia entregue a este, acrescido do montante de HK$192.982,78 pago pelo Autor para expurgar a hipoteca e dos respectivos juros.
    Contestando a acção, defende a Ré que nunca prometeu vender essa fracção autónoma ao Autor tendo apenas solicitado a este um empréstimo de HKD$200.000,00 em 2006 e, para garantir o respectivo pagamento, a Ré aceitou assinar com o Autor o contrato-promessa sub judice tendo depois contraído um outro empréstimo junto do Autor no valor de HK$192.982,76.
    Com base nesses factos, pede a Ré que sejam julgados improcedentes os pedidos do Autor atenta a nulidade do contrato-promessa invocado pelo A e, em reconvenção, reconhecido o contrato celebrado entre o Autor e Ré era um contrato de mútuo.
*
    Tendo em conta o expendido, para a apreciação dos pedidos formulados pelas partes, segue-se a seguinte análise:
    1. Em primeiro lugar, apura-se se o Autor é titular do direito de aquisição da fracção autónoma sub judice. Mais precisamente, há que responder à questão de saber se o Autor e a Ré celebraram o citado contrato-promessa ou, contrariamente, tal contrato é simulado;
    2. Se se concluir que não houve qualquer simulação e, portanto, o Autor é titular do direito de aquisição em discussão, procurar-se-á saber se a Ré deixou de cumprir a promessa feita nesse contrato; caso contrário, entra-se imediatamente no ponto 3; e
    3. Finalmente, debruçar-se-á sobre os pedidos formulados pelas partes.
*
    Direito de aquisição vs simulação
    Conforme o Autor, o direito de aquisição ora em discussão resultou da celebração de um contrato-promessa de compra e venda, em 6 de Setembro de 2006, entre o Autor e a Ré, que tem por objecto a fracção autónoma, designada por "A3" correspondente ao terceiro andar "A" do prédio urbano sito em Macau, na Rua da XX, n.ºs XX, encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 2XX5, a fls. 2XXv do Livro B10, inscrito na matriz predial sob o artigo n.º 7XXX6, da freguesia da Sé.
    Resulta dos factos assentes que as partes, efectivamente, assinaram o documento junto a fls. 15 parte do qual em termos literais indica que o Autor prometeu comprar à Ré a fracção autónoma acima referida e a Ré prometeu vender este imóvel ao Autor, pelo preço de HK$200.000,00, tendo o Autor pago a quantia de HK$56.000,00 e devendo a compra e venda do imóvel ser celebrado no prazo de 90 dias.
    Numa primeira aproximação, dir-se-ia que entre as partes foi celebrado um contrato-promessa como vem alegado pelo Autor devendo, portanto, a Ré cumprir a promessa de venda feita.
    Contudo, consta também da matéria provada que, em data não apurada de 2006, a Ré contraiu um empréstimo de valor não inferior a HK$56.000,00 e, para a garantia do pagamento desta dívida, a Ré assinou o documento junto a fls. 15 e que, apesar da assinatura deste documento, a Ré nunca quis prometer vender e o Autor nunca quis prometer comprar o citado imóvel. Trata-se de uma conclusão a que o tribunal chegou, em sede de julgamento da matéria de facto, cujos fundamentos constam dos parágrafos 5° e 6° da parte da fundamentação sobre a matéria de facto de fls. 145 a 146v.
    Vê-se que o documento, na parte que aponta para a celebração de um contrato-promessa de compra e venda entre as partes, não corresponde à vontade real das partes. Pois, as partes queriam estabelecer um contrato de mútuo mas declararam nessa parte que queriam celebrar um contrato-promessa.
    Há, portanto, uma divergência entre a declaração constante do documento junto a fls. 15 e a vontade dos declarantes.
    Por outra banda, essa não correspondência destina-se a enganar terceiros. Com efeito, terceiros, designadamente as autoridades administrativas, confrontados com o documento são levados a acreditar que as partes quiseram celebrar um contrato-promessa. O facto de ter sido registada a celebração do contrato-promessa junto do Conservatória do Registo Predial com base no documento demonstra claramente essa intenção (cfr. registo provisório lavrado a fls. 128 posteriormente cancelado oficiosamente) bem como a interposição da presente acção.
    Nos termos do artigo 232º do CC "1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo."
    Pelo que, é de concluir que o acordo celebrado entre as partes em 6 de Setembro de 2006 e constante do documento de fls. 15 é simulado e, como tal, nulo e que o verdadeiro acordo estabelecido é, antes, um contrato de mútuo.
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    Pedido das partes
    Tendo em conta o já expendido, é manifesto que os pedidos do Autor não podem proceder visto que os mesmos têm por base a celebração de um contrato-promessa de compra e venda que, de acordo com o acima expendido, é simulado e, como tal, nulo e não produtor de quaisquer efeitos.
    No que se refere ao pedido reconvencional, é de ter presente o disposto no artigo 233º do CC.
    Segundo essa norma "1. Quanto sob o negócio simulado existia um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado. 2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei. 3. Para efeitos do número anterior, considera-se suficiente a observância no negócio simulado da forma exigida para o dissimulado, contanto que as razões determinantes da forma do negócio dissimulado não se oponham a essa validade."
    No presente caso, as partes celebraram um contrato de mútuo mas deram ao acto uma aparência de contrato-promessa. Portanto, o contrato-promessa foi celebrado para dissimular o contrato de mútuo.
    Por força da norma transcrita deve-se dar prevalência à vontade real das partes reconhecendo que as partes celebraram na realidade um contrato de mútuo se nenhum obstáculo ocorrer.
    Nada consta dos autos que demonstra a existência de qualquer impedimento para a celebração deste negócio jurídico designadamente requisitos formais não cumpridos.
Assim, é de julgar procedente o pedido reconvencional reconhecendo que as partes celebraram um contrato de mútuo.”

5. À primeira vista, mesmo adoptando a perspectiva do recorrente, o pedido formulado esbarra com o facto de não se poder avançar para uma situação de execução específica em relação a um pretenso contrato-promessa, por incumprimento do pagamento das quantias mutuadas, pois, não obstante a falta de pagamento dado como provado, o certo é que não se observa uma situação contratual de onde resulte a possibilidade de executar esse contrato.
Em abstracto, a possibilidade de realizar os chamados contratos indirectos, retratando situações usuais em Macau, foi já objecto de tratamento nesta instância. Por isso passamos a transcrever a posição aí anteriormente tomada2, citando o entendimento vertido na Jurisprudência Comparada:3 “ A análise dos factos provados aponta sem dúvida para a conclusão de que o contrato-promessa em análise configura um “negócio indirecto”. Em termos gerais poderá definir-se como tal o negócio cujos efeitos são queridos pelas partes sendo certo que foi todavia celebrado para desempenhar uma função que não corresponde em princípio àquela que a lei lhe atribuiu. Trata-se de uma figura contratual que radica no instituto do Direito Romano denominado “fiducia cum creditore”. No cerne do contrato estava a finalidade exclusiva de servir como garantia da obrigação comprometendo-se o beneficiário da mesma a só a executar em caso de incumprimento do negócio que a mesma visa assegurar.
     Não foi pacífica, desde logo a nível da Doutrina o acolhimento da figura em análise; a posição tradicional rejeitava esta garantia como fraude, à lei constituindo assim um pacto nulo. Progressivamente o “pacto fiduciário” veio a ter aceitação com base na ideia da respectiva neutralidade. O mesmo é em princípio axiologicamente neutro e à partida permitido, atento o princípio da liberdade contratual consignado no artigo 405º do Código Civil; o fim para que for conferido é que lhe confere carácter lícito ou ilícito, o que aliás encontra eco no artigo 280º nº 2 do Código Civil.”
No acordo referido em D) não se configura qualquer procuração de negócio consigo mesmo, situação sobre a qual já nos pronunciámos no Proc. n.º 362/2013:
“Uma procuração para negócio consigo mesmo (mesmo para transmissão da coisa para a sua esfera jurídica), feita no interesse do procurador, na sequência de um empréstimo que este fizera ao representado, assume a natureza de irrevogável e não se extinguirá enquanto se mantiver a relação jurídica subsistente - artigo 258º, n.º 1 e 3 do CC, mesmo para lá da extinção do sociedade.”

Nem sequer se verifica que tenha sido conferida qualquer procuração para o A., passados os 90 dias a que o contrato aludia para o pagamento do empréstimo, quantia essa que foi configurada como o sinal no contrato-promessa celebrado, desde logo, porque a mesma não se mostra assinada. Na verdade, resulta de fls 16 e segs dos autos que terá havido apenas uma minuta da procuração, pelo que ficamos sem saber como pôde o Tribunal dar como provada a existência de uma procuração – resposta ao quesito 1º da base instrutória – sem documento válido e necessário para comprovar esse facto. Tanto assim, que se essa procuração existisse realmente, não teria o A., ora recorrente necessidade de vir pedir a execução específica de um contrato, se, realmente, tivesse poderes para o efeito. Somos, assim, nesta conformidade a considerar esse quesito como não provado.
É certo que estamos perante uma situação de um contrato-promessa que, em princípio, não deixa de ser possível, estando sujeito a uma condição, qual seja a do não pagamento do empréstimo. Isto é, se a R. não paga a dívida, executa-se o contrato, se a tal não obstarem outras razões.
Embora não haja aqui uma procuração para negócio consigo mesmo, existe uma promessa que não deixa de funcionar como garantia, passível de poder ser configurada e querida pelas partes como promessa sujeita a uma condição.
O mútuo não deixou de existir, mas uma vez que não foi pago no prazo de 90 dias, conforme resulta do contrato-promessa e do acordo comprovado, poder-se-á configurar a possibilidade de dar cumprimento ao contrato-promessa, como contrato indirecto que sempre funcionaria sujeito à condição de não pagamento. Se sobreviesse pagamento do empréstimo no prazo estipulado, resolver-se-ia a promessa de alienação do imóvel; se não sobreviesse tal pagamento cumprir-se-ia a promessa de alienação.
Sabe-se que o mútuo não foi cumprido no prazo estipulado.
A pretensão do A. esbarra desde logo com o facto de não ser possível executar especificamente o contrato, pois dele não consta que a Ré tivesse prometido vender ao A., antes dali resulta que a promessa de venda é feita para terceira pessoa, que não o A.
Não havendo procuração é certo que também não pode o A. vender a terceiro, nem pode o tribunal suprir essa falta, para além de que nem sequer vem formulado esse pedido na acção.
Há aqui uma impossibilidade sucessiva que não permite a satisfação do pedido, na medida em que não há procuração, o contrato é para a venda a terceiro e, não obstante, decorrido o prazo fixado para o pagamento do mútuo efectuado, não houve interpelação susceptível de resolução do contrato promessa por culpa exclusiva da promitente vendedora, como pretende o A. no pedido subsidiário, já que não obstante a existência de mora em relação ao cumprimento do mútuo, não se mostra comprovada culpa da Ré, de forma a conforma o incumprimento do contrato-promessa gerador da indemnização pelo dobro do sinal.
Não se acompanha, assim, o entendimento vertido na douta sentença recorrida, enquanto considerou que existiu um negócio simulado e consequentemente nulo o aludido contrato-promessa.
Houve, na verdade, um empréstimo que tinha um prazo para ser pago. Findo esse prazo que era de 90 dias, as partes converteram o mútuo em contrato-promessa em que a Ré se comprometia a vender a terceiro a fracção, o que se poderá até entender que no fundo esse contrato serviria de garantia no caso de não pagamento. É certo que se foge ao contrato clássico da hipoteca, mas foi mesmo isso que as partes quiseram celebrar, considerando-se que esse negócio só seria proibido se fosse feito para fugir a regras imperativas de forma ou outras, com o intuito de enganar terceiros. Não se deixa de reconhecer que será algo forçado concluir por um intuito de enganar terceiros e reconduzi-lo ao desiderato de fuga aos custos emolumentares e fiscais que a celebração de uma escritura de hipoteca sempre reclamaria, matéria que nem sequer alegada ou comprovada se mostra.
Razão por que somos a apartar-nos da douta sentença recorrida, entendendo que não se comprova a simulação respeitante à celebração do contrato-promessa e considerando-se que realmente existiu um mútuo, mas que as partes também não deixaram de querer um contrato promessa de venda do imóvel em causa para o caso de aquele empréstimo vir a não ser pago.
Nesta conformidade, esse contrato não deixará de ser válido, em função da vontade das partes, pois foi um contrato querido e celebrado como tal, sujeito a uma condição e só quando esta se verificar, qual seja o não pagamento do mútuo, é que pode ser dado à execução ou resolvido como se pede subsidiariamente.
Ora, como se viu, não se verificam os respectivos requisitos, seja para a sua execução específica, seja para a sua resolução, pois há que colocar o promitente vendedor em incumprimento definitivo do contrato-promessa, pois o incumprimento do mútuo, esse, decorrido o prazo não se deixa de observar a partir desse momento, face ao disposto no art. 794º, n.º 2/a do CC.
Sabe-se que o devedor ainda não pagou, estando, portanto, em mora, mas para resolver o contrato tem de ser colocado em situação de incumprimento definitivo, pois a simples mora gera apenas o dever de indemnizar os danos causados – art. 793º, n.º 1 do CC.
Não obstante esse decurso do prazo, haverá ainda possibilidade de o devedor pagar e o credor aceitar esse pagamento? Terá o credor de revelar uma perda de interesse no negócio, objectiva ou negocial, interpelando neste caso o devedor para que cumpra, sob pena de resolver esse contrato e passar a executar o contrato indirecto?
Como salienta lapidarmente Galvão Telles, o devedor que não realize a prestação no momento devido, ainda que materialmente possível, pode perder interesse para o credor. Essa perda de interesse terá de ser apreciada objectivamente ou então o credor comunicar essa perda de interesse, através de uma advertência admonitória no prazo que venha a fixar.4
Na verdade, a mora gera apenas o dever de indemnizar e só a impossibilidade da prestação, perda de interesse e interpelação admonitória, podem implicar a resolução do contrato – art. 797º, n.º e 2 e 790º do CC. Mas se foi fixado um prazo para o cumprimento da prestação, há que ver se esse prazo tem natureza absoluta ou relativa, tudo dependendo da natureza do negócio. E em caso de dúvida, se foi fixado um prazo, ter-se-á esse prazo como absoluto.5
De qualquer modo, tal como negócio foi configurado pelas partes, visto os termos do contrato, estamos em crer que esse prazo assume natureza absoluta, pelo que o credor, aqui A., podia passar ao cumprimento do contrato-promessa. Só que, neste passo, não deixamos de esbarrar com as dificuldades acima apontadas.
Pelo que, ainda que com outros fundamentos - os que vêm acima apontados - , não se deixará de confirmar parcialmente o decidido, na certeza de que não há simulação.
O contrato de mútuo foi realmente celebrado e o contrato promessa não pode ser executado como pretende o A., não só por falta de procuração, como por não ter sido prometida a venda para o A., nem sequer havendo lugar à sua resolução por incumprimento culposo da promitente vendedora, no que respeita ao contrato-promessa (que não em relação ao mútuo) ou impossibilidade.

IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em alterar a matéria de facto nos termos acima consignados; ainda, com fundamentos diferentes, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, julgando improcedente o pedido de nulidade do contrato promessa por falta de comprovação de negócio simulado e o pedido subsidiário de resolução desse contrato por falta de fundamento para tal, mantendo-se a decisão recorrida na parte restante.
    Em relação ao pedido reconvencional, reconhece-se que foi celebrado o mútuo nos termos e condições que resultam do enquadramento dado ao negócio, em conformidade com o desenvolvimento supra.
    Custas pelo recorrente e recorrido na proporção dos decaimentos.
Macau, 21 de Julho de 2016,

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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
_________________________
Ho Wai Neng
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José Cândido de Pinho



1 - Iniciação à Advocacia, 7.ª ed., Coimbra Ed., 81

2 - Ac. do TSI, de 23/10/2014, Proc. n.º 91/2014
3 - Ac. do STJ, Proc. n.º 1942/06.5TBMAI.P1.S1, de 23/2/2012
4 - Cfr. Galvão Telles, Dto das Obrigações, 7.ª ed. Coimbra Ed., 311 e 312
5 - Ac. STJ, de 12/1/2010, proc. n.º 628/09.3YFLSB
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156/2016 1/38